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Carta de dentro do barril de cimento

  • Foto do escritor: Barravento Revista
    Barravento Revista
  • 21 de jun. de 2023
  • 5 min de leitura

Atualizado: 23 de ago. de 2023

Yoshiki Hayama


1924



Carta de dentro do barril de cimento, de 1924, é uma síntese de parte estrutural e unificadora das ideias contidas nas expressões literárias do movimento proletário japonês, que durou até o início da década de trinta. Encerrado pela repressão policial, o movimento contava com militantes do partido comunista, integrantes da classe operária, e trabalhadores inseridos nas lutas sindicais, que se propagaram e tomaram corpo na época. Expor o conflito de classes, inserir a política na literatura e tecer as narrativas pelo ponto de vista do trabalhador, o texto é um exímio exemplo da aplicação de tais práticas, que conta ainda com a potência de ter sido escrito por um autor operário. Yoshiki Hayama trabalhou como marinheiro em banco de carga, trabalhador em uma central de energia elétrica, e, além de outros, como operário numa fábrica de cimento. Foi preso por crimes contra a paz e ordem pública, enquanto em atividades sindicais relacionadas ao partido comunista japonês. Alguns de seus contos mais famosos, como A prostituta (inbaifu 淫売婦) e As pessoas que vivem no mar (umi ni ikuru hitobito 海に生くる人々) foram escritos enquanto ele estava preso em Nagoya, (Sorte Junior 2021).


Hayama foi um dos mais expressivos escritores proletários. Com sua escrita corporal, que alarga incômodos minuciosos e que comprime neles as grandes atrocidades contra a classe trabalhadora, o autor coloca as coisas como são. E seus escritos ecoaram pelas entranhas da luta de classes, inflamando trabalhadores, mas, figura complexa que era, abandonou a causa. Foi enviado para Manchúria em 1943, forte indício de apoio à guerra imperialista. Já não escrevia mais sobre trabalhadores. Em 1945, morreu em decorrência da pobreza



Youzo Matsudo esvaziava barris de cimento. As marcas de cimento no resto do corpo não eram tão aparentes, mas os cabelos da cabeça e debaixo do nariz estavam completamente tingidos de cinza. Ao colocar o dedo no nariz, os pelos estavam enrijecidos como concreto. Queria remover o concreto mas, para acompanhar o misturador, que cuspia dez cargas por minuto, não tinha tempo de ficar com os dedos nas narinas.

Enquanto ele se preocupava com os buracos do nariz, já deram onze horas. Nesse período, só havia o almoço e a pausa das três horas. No almoço, por causa da fome, primeiro por ter de limpar o misturador e não ter tido folga, não pode levar a mão ao nariz, e portanto, não o limpou.

Quando estava terminando, tirou de dentro do barril de cimento uma pequena caixa de madeira, a qual moveu com as mãos esgotadas

“O que será?” pensou com leve suspeita, mas não podia se preocupar com aquilo. Com a pá, ele pesou o cimento na caixa medidora. Depois transferiu o cimento da caixa para o barco, para logo transferir de novo.

“Mas espera! Não há como uma caixa sair de um barril de cimento.” Pegou a caixa e arremessou dentro do bolso de seu avental. A caixa estava leve. “Pela leveza, não deve ter dinheiro”.

Ele não tinha tempo para pensar, esvaziar o próximo barril, pesar a próxima caixa medidora.

O misturador começou a girar inutilmente. O concreto terminou e chegou o horário de encerramento.

Ele lavou o rosto e as mãos com a água da mangueira de borracha no misturador. Com a marmita enrolada no pescoço, ele voltou para seu cortiço pensando em comer e beber. A usina dava na rua Hachibu. O monte Ena, elevando-se na escuridão da noite, estava coberto de neve branca. De repente, o corpo completamente suado começou a sentir frio. Sob seus pés o rio Kiso rugia enquanto mastigava a espuma branca.

"Ah, não! Eu não consigo! Minha esposa está de novo com a barriga inchada…" Ele pensou nas crianças rastejando, nas crianças que nasceram para enfrentar esse frio, pensou na esposa que dará a luz nessa bagunça e ficou completamente desapontado.

Dentre os um iene e noventa centavos de salário diário, come duas medidas de arroz de cinquenta centavos por dia, e veste e vive com noventa centavos. "Idiota! Como você pode beber? "

Mas, ele lembrou da pequena caixa dentro do bolso. Esfregou o cimento da caixa com a barra da calça.

Não havia nada escrito nela. Estava firmemente pregada.

“É sugestivo estar pregada desse jeito.”

Ele golpeou a caixa no topo de uma pedra. Como ela não quebrou, por estar inserido nesse mundo, ficou com vontade de pisar e quebrar, e pisou desesperadamente.

Dentro da pequena caixa havia um pedaço de papel embrulhado em trapos, em que estava escrito:


Eu sou uma trabalhadora que costura sacos de cimento para a N Cimento Company. Meu namorado trabalhava colocando pedras no triturador. Sendo assim, na manhã do dia sete de outubro, no momento de colocar uma grande pedra, ele ficou preso junto a ela no triturador.

Os colegas tentaram ajudar mas, como se estivesse afogando dentro d'água, meu namorado afundou debaixo da pedra. A pedra e o corpo dele se desfizeram em finas pedrinhas vermelhas que caíram na correia. A correia levou para o cilindro de trituração. Lá, foi despedaçado junto com as balas de aço, enquanto gritava uma voz amaldiçoada em meio ao som afunilado. E então foi cozido e transformado em cimento de qualidade.

Seus ossos, a sua carne e a sua alma se transformaram em pó. Meu namorado virou cimento por completo. Tudo que restou foram os trapos das roupas de trabalho. Estava costurando uma bolsa para ele.

Meu namorado virou cimento. No dia seguinte, escrevi esta carta e guardei dentro do barril.


Você é um trabalhador? Como você é um trabalhador, fique com pena de mim e por favor me dê uma resposta.

Gostaria de saber para que serve o cimento dentro desse barril. Em quantos barris de cimento meu namorado se transformou e quantas pessoas vão usá-lo? Você é o estucador, ou será que é o arquiteto?

Eu não aguentaria ver meu namorado virando o corredor de um teatro ou a parede de alguma mansão. Mas como posso impedir isso? Você, se você é um trabalhador, por favor não use o cimento nestes locais.

Na verdade, não importa. Use em qualquer lugar. Em qualquer lugar que meu namorado esteja incorporado, tenho certeza que fará coisas boas. Não importa, ele tinha temperamento firme, com certeza fará um bom trabalho.

Ele era gentil, uma boa pessoa. E era um homem viril. Ainda era jovem. Tinha acabado de fazer dezesseis. Eu não sabia o quanto ele me amava. E, no entanto, em vez de vesti-lo com uma mortalha, coloquei-o em um saco de cimento! Ao invés de entrar num caixão, ele acabou entrando no forno rotativo.

Por que eu…Devo entregá-lo. Ele está enterrado no leste, no oeste, longe e perto.

Se você for um trabalhador, por favor me responda. Em troca, darei a você a roupa de trabalho rasgada que meu namorado usava. São neles que a carta está envolvida.

Os trapos estão encharcados de pó de pedra e do suor daquele homem. Com que força ele já me abraçou com essas roupas de trabalho?

Eu estou te implorando. Se você não se importar, informe-me a data e a hora em que usou este cimento, o local específico em que o usou, o local em que o usou e seu nome. Por favor, cuide-se.

Adeus.

Matsudo Yozo lembrou-se do barulho das crianças ao seu redor. Enquanto via o endereço e o nome no final da carta, soltou um gemido num suspiro com o sake derramado em sua tigela.

"Vou ficar bêbado feito louco e quebrar tudo para ver!", Gritou.

"Então você acha que pode encher a cara e ficar enfurecido? E o que será das crianças?", disse a esposa.

Ele viu o sétimo filho na grande barriga de sua esposa.


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