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Fanon sobre o suposto complexo de dependência do colonizado: por uma crítica à metafísica racial.

  • Foto do escritor: Lígia Cerqueira Fernandes
    Lígia Cerqueira Fernandes
  • 21 de jul. de 2024
  • 15 min de leitura

Atualizado: 3 de nov. de 2024

por Marcos Castilho.


Fanon discursando em Acra, capital de Gana, 1958. Foto: desconhecido.


"Eu, homem de cor, quero apenas uma coisa:

Que o instrumento jamais domine o homem. Que cesse para sempre a escravização do homem pelo homem. Ou seja, de mim por outro. Que me seja permitido descobrir e desejar o homem, onde quer que se encontre.


Frantz Fanon, À guisa de uma conclusão in Pele negra, máscaras brancas, 2020, p. 242.


Em Pele negra, máscaras brancas (Peau noire, masques blancs), Fanon está preocupado em contribuir com a “desalienação do negro”, portanto, de fazer com que o negro, em especial o negro das colônias francesas, se veja e se coloque para além da mistificação que está posta pela colonização. Claro, Fanon mesmo reconhece que essa alienação tem bases materiais, encarnadas pelo colonialismo, que opera um processo de interdição do reconhecimento do negro como humano, e que “a verdadeira desalienação do negro requer um reconhecimento imediato das realidades econômicas e sociais” (Fanon, 2020, p. 25). Noutra passagem o autor menciona que “o problema negro não se desfaz no problema dos negros vivendo entre os brancos, mas sim no problema dos negros sendo explorados, escravizados, desprezados por uma sociedade capitalista, colonialista, acidentalmente branca”. Portanto, o mito do negro, criado pelo branco, que no ato da criação do Outro cria a si próprio, corresponde à vida material que produz e reproduz o capital (Cf. Rodrigues Barros, 2019). Fanon quer o fim do mundo. A desmistificação que ele propõe resulta do fato de que “o meio e a sociedade é que são responsáveis por sua mistificação” (Fanon, 2020, p. 226). É preciso acabar com esse mundo, e que mundo é esse? Ora, é o mundo da sociedade burguesa:


(...) a alienação intelectual é uma criação da sociedade burguesa. E chamo de sociedade burguesa qualquer sociedade que se esclerosa em formas específicas, impedindo qualquer evolução, qualquer avanço, qualquer progresso, qualquer descoberta. Chamo de sociedade burguesa uma sociedade fechada, em que a vida não é boa, onde o ar é pútrido, com as ideias e as pessoas em putrefação. E creio que um homem que se posiciona contra essa morte é, de certo modo, um revolucionário (ibidem, p. 236).


A empreitada fanoniana, inicialmente intitulada de Essai sur la désalienation du Noir [Ensaio sobre a desalienação do negro], sob a forma de dissertação para conclusão do curso de medicina, do início da década de 50, não teve boa recepção no meio acadêmico da França, e sequer viu a luz do dia naquele momento já que seu orientador a rejeitou por confrontar certas convenções acadêmicas, e especialmente por se opor ao positivismo que imperava na psiquiatria francesa, que reduzia os aspectos psicológicos tão somente aos fenômenos fisiológicos, sendo obrigado a apresentar outro trabalho para a conclusão de seu curso (Cf. Faustino, 2015). O trabalho de Fanon se opõe ao essencialismo racial, que aqui chamamos de metafísica racial, por procurar um elemento dado na biologia ou cultura do negro e pretender torná-lo estanque, fixado à “alma do negro”, de forma trans-histórica. Disso compreendemos a resistência da intelectualidade francesa vigente na psiquiatria da época em receber tal obra. Aqui nos preocupamos com um aspecto específico da crítica fanoniana, que consiste em sua objeção em relação ao assim chamado¹ complexo de dependência do colonizado, capítulo 4 do Pele negra, máscaras brancas.


Tal capítulo nos parece relevante sob dois aspectos: primeiro, pela análise concreta de um pensamento que explica a colonização a partir de uma suposta condição psicológica do colonizado, nisso explicitamos como a crítica de Fanon a Mannoni é também uma crítica, em um plano mais amplo, à metafísica racial; segundo, por restar claro nesse momento da obra o caráter materialista do pensamento fanoniano, que busca a todo tempo remeter a questão psicológica do colonizado às condições materiais que lhe são subjacentes, sem recair em uma patologização típica da psiquiatria de seu tempo, muito pelo contrário, o autor tem por central a crítica dessa patologização. 


Para tratar da questão, a obra à qual o pensador martinicano se refere (e em alguma medida combate) é Psychologie de la colonisation (em inglês Prospero and Caliban: The psychology of colonization), de Octave Mannoni. Em tal obra o psicanalista francês busca analisar psicologicamente aquilo que ele chama de situação colonial, que pode ser descrita como o encontro entre “civilizados” e “primitivos”, do qual decorre uma série de ilusões e erros (Mannoni, 1990). Contudo, Fanon já aponta uma fragilidade na obra em seu ponto mais fundamental, ou seja, naquilo com o qual ela se propõe a lidar, haja vista que o autor francês busca estabelecer na forma de ser do malgaxe (o exemplo utilizado de “povo não civilizado”) um complexo de inferioridade que remonta à sua infância, em seu próprio desenvolvimento cultural e, portanto, em algo que está dado anteriormente à colonização.


Essa problemática inicial leva Fanon a confrontar a posição de Mannoni acerca da relação entre racismo e economia, que em um plano mais amplo refere-se à responsabilidade da Europa sobre o racismo colonial empreendido contra os “povos não civilizados” das colônias. Mannoni defende, por exemplo, que tanto não é verdade que a “civilização europeia” é a responsável pelo racismo colonial, bem como que o racismo não reproduz a situação econômica, que isso é algo perpetrado por funcionários menores, pequenos comerciantes e colonos fracassados, e cita a situação da África do Sul, em que “os trabalhadores brancos são tão racistas quanto seus empregadores e gerentes, e muita das vezes até mais” (Mannoni, 1990, p. 24)². Fanon nos remete a uma questão mais profunda para criticar Mannoni e resolver ambas as questões (a reprodução da situação econômica pelo racismo e a Europa enquanto responsável pelo racismo colonial): a estrutura econômica. 


(...) poderíamos retorquir que esse deslocamento da agressividade do proletariado branco para o proletariado negro é, fundamentalmente, uma consequência da estrutura econômica da África do Sul.

O que é a África do Sul? Um caldeirão no qual 2 530 300 brancos espancam e confinam 13 milhões de negros. Se os brancos pobres odeiam os negros, não é porque, como Mannoni daria a entender, “o racismo é obra dos pequenos comerciantes e pequenos colonos que trabalharam muito, mas sem grande sucesso”. Não, é porque a estrutura da África do Sul é uma estrutura racista (Fanon, 2020, p. 102).


A partir de Césaire³, Fanon responsabiliza a civilização europeia e seus representantes mais qualificados pelo racismo colonial, pois o fato de esses grandes representantes não praticarem por eles mesmos a violência que constitui o racismo, é porque outros, ao seu mando, o fazem, e os beneficiam por o fazerem. Disso nosso autor extrai algo que após a exposição do argumento nos parece óbvio, mas que é catártico para aquele momento e também explica a rejeição da própria obra: a Europa tem uma estrutura racista. Não adianta dizer que a França é o país menos racista do mundo, para Fanon “uma sociedade é racista ou não é” (2000, p. 101), e é inócuo verificar no que um comportamento desumano se diferencia de outro, ou mesmo possíveis gradações entre desumanidades. Tais abstrações acerca do racismo não lhe parecem razoáveis, é preciso que a questão ganhe um caráter concreto: o objeto das formas de exploração é um só, o homem, e nas tentativas de “considerar no plano da abstração a estrutura desta ou daquela exploração, mascara-se o problema capital, fundamental, que é o de restituir o homem a seu devido lugar” (ibidem, p. 103).


Em ato contínuo, para contraditar a tese de Mannoni sobre o complexo da inferioridade vinculado à cor da pele aparecer somente entre indivíduos em minoria que vivem entre uma maioria predominante de outra cor, Fanon suscita o fato de que um branco nas colônias jamais se sentir inferior em relação ao negro no que quer que fosse. Cita como exemplo sua terra natal, a Martinica, onde naquele tempo havia duzentos brancos que se consideravam superiores a 300 mil pessoas negras. Portanto, para o autor martinicano, o complexo da inferioridade não está vinculado a uma questão demográfica, é produto daquilo que lhe é correlato, qual seja, da superioridade europeia. Em síntese, “é o racista que cria o inferiorizado” (ibidem, p. 107).


Resta ainda em Mannoni o caso excepcional, em que mesmo em um meio homogêneo sobre a cor de pele de seus integrantes o complexo de inferioridade aparece, acerca do qual Fanon se pronuncia:


O que quer dizer dos casos excepcionais de que nos fala Mannoni? São simplesmente aqueles em que o evoluído de repente se descobre rejeitado por uma civilização que ele, no entanto, assimilou. De modo que a conclusão seria a seguinte: na medida em que o verdadeiro tipo malgaxe do autor assume suas “condutas dependentes”, tudo corre bem; porém, se ele esquece o seu lugar, se decide se equiparar ao europeu, então o dito europeu se irrita e rejeita o insolente – que, nesse momento e nesse “caso excepcional”, paga com um complexo de inferioridade por sua recusa à dependência (Fanon, 2020, p. 108).


Nesse imbróglio, Mannoni coloca o malgaxe em um beco sem saída: ou ele “escolhe” a dependência ou a inferioridade. Para o autor francês, existe em determinados povos a necessidade da colonização, motivada pelo complexo de dependência, e os lugares onde a Europa fundou colônias eram ambientes propícios a isso, em que os colonizados tinham marcado em seus mitos o desejo inconsciente de receberem os colonos, encarnados no branco com complexo de autoridade, a fazer sua chefia recair nos colonizados, previamente dotados do complexo de dependência, afeitos pela relação de exploração antes mesmo de ela se concretizar, portanto, um elemento fixado em seu ser, algo como um “destino manifesto” à colonização.


Fanon combate essa posição essencialista tratando a gênese das raças a partir da colonização. A raça, seja branco ou negro, é relacional, está dada na cisão do homem que o branco opera, e que no processo cria não apenas o negro como a si próprio, e para tanto aliena o outro e a si: “a alteridade para o negro não é o negro, mas o branco” (2020, p. 111). No caso da colonização de Madagascar, a vinda do europeu não significa uma somatória ao que estava preestabelecido, mas uma decomposição da personalidade do malgaxe. Nosso autor pega a exemplo a religião, da desarmonia que está colocada entre o negro colonizado com a doutrina cristã, e se o malgaxe (ou o negro colonizado no geral) não apreende os ensinamentos de Cristo, isso não se deve a uma incapacidade de assimilação, mas por essa apreensão exigir uma nova conformação, não apenas a assimilação de certos valores abstratos à sua visão de mundo (Weltanschauung), enquanto esses colonizados mal conseguem saciar sua fome.


Mannoni ignora o aspecto relacional da identidade malgaxe, que de forma nenhuma está posta em si mesma, como um dado de uma metafísica racial, expressa em uma visão de mundo, e nessa ignorância contribui com a mistificação das relações raciais. Sobre isso Fanon é implacável:


Após ter encerrado o malgaxe em seus costumes, após ter realizado uma análise unilateral da sua visão de mundo, após ter descrito o malgaxe em um círculo restrito, após ter dito que o malgaxe mantém relações de dependência com os ancestrais, características essas altamente tribais, o autor, ao arrepio de toda e qualquer objetividade, aplica suas conclusões a uma compreensão bilateral – ignorando deliberadamente que, desde Gallieni, o malgaxe não existe mais. (...) o malgaxe existe com o europeu (Fanon, 2020, p. 109, 111).


Se chegada do branco a Madagascar é a satisfação de um desejo inconsciente, dado por “mecanismos mágico-totêmicos”, ou por um complexo de dependência que se expressa no plano mitológico, na constituição cultural do povo, nada disso importa primariamente, mas sim o significado prático da realização de uma ferida absoluta cujas consequências não são apenas psicológicas, mas que formam novas relações sociais. O malgaxe sequer era malgaxe antes da chegada do branco. Aliás, o malgaxe é malgaxe na medida em que o branco é branco. O sofrimento psíquico que Mannoni aponta na passagem da dependência à inferioridade malgaxe só existe quando o colonizador impõe em todas as instâncias sua discriminação, que torna o malgaxe um colonizado que tenta ascender à condição de humano pela tentativa desesperada de se tornar branco. 


Na busca da apreensão do inconsciente do malgaxe, Mannoni traz sete sonhos, seis de crianças e um de um adulto, os quais não nos interessa trazer na íntegra, para tanto, basta conferir as páginas 89, 90 e 91 da obra do autor francês (Mannoni, 1990). Nos interessa aqui a análise de Fanon a respeito e a crítica à psicanálise freudiana que dela decorre. Em resumo, são sonhos aterrorizantes, em que as figuras que operam o terror são negras, sejam elas humanas ou não. Para Fanon, a questão se apresenta através da repressão a atos insurrecionais praticados pelos colonizados, mobilizando, para tanto, soldados negros. O objetivo era certo: criar antagonismos entre as tentativas de libertação dos “povos de cor” e a repressão como resposta a tais tentativas praticadas por outros “povos de cor”.


O intuito do pensador martinicano ao trazer tal fato é situar o sonho em seu tempo e lugar. No caso, o tempo era um “período em que 80 mil nativos foram mortos, isto é, um a cada cinquenta habitantes”, e o lugar “é uma ilha de 4 milhões de habitantes, onde nenhuma relação genuína pode ser instaurada” (Fanon, 2020, p. 117). Portanto, o sonho tem base real: “O touro negro furioso não é o falo. (...) O fuzil do soldado senegalês não é um pênis, mas realmente um fuzil Lebel 1916” (ibidem, p. 120). Os fantasmas que permeiam os sonhos retratados por Mannoni são reais, apontam para as condições econômicas e sociais das lutas de classes¹⁰.


Um exemplo oposto na forma de lidar com o sonho é citado por Fanon, em referência a um paciente seu, um homem negro, que lhe contou:


“Caminho por muito tempo, estou muito cansado, tenho a impressão de que algo me espera, atravesso barreiras e paredes, chego a um cômodo vazio e, detrás de uma porta, escuto um barulho, hesito antes de entrar, por fim me decido, entro, há brancos nesse segundo cômodo, percebo que eu também sou branco”, e quando busco compreender esse sonho, analisá-lo, sabendo que esse amigo tem dificuldades para progredir, concluo que esse sonho realiza um desejo inconsciente. No entanto, fora do meu laboratório de psicanalista, quando a questão for integrar minhas conclusões ao contexto do mundo, direi:

1º Meu paciente sofre de um complexo de inferioridade. Sua estrutura psíquica corre o risco de se dissolver. É preciso preservá-la e, pouco a pouco, libertá-la desse desejo inconsciente.

2º Se ele encontra a tal ponto imerso no desejo de ser branco, é porque vive em uma sociedade que torna possível seu complexo de inferioridade, uma sociedade que extrai sua consistência da preservação desse complexo, uma sociedade que afirma a superioridade de uma raça; é na exata medida em que essa sociedade lhe cria dificuldades que ele se vê colocado numa situação neurótica (Fanon, 2020, p. 109, 113-114).


O pensador martinicano remete a questão constitutiva do sonho, qual seja, o complexo de inferioridade, à realidade material, ao processo de colonização. Em relação aos malgaxes não é diferente, a conclusão é que o “sentimento de inferioridade”, decorrente do suposto complexo de dependência, experimentado pelo povo de Madagascar, é uma criação do colonialista, que geralmente é um traficante, que reduz o malgaxe a sua identidade, interditando na colonização o reconhecimento desse outro como humano.


Em síntese, Fanon aponta que esses supostos complexos, seja o de dependência ou o consequente de inferioridade, que levam o negro a querer se embranquecer, estão consubstanciados em uma sociedade que torna possível seus respectivos desenvolvimentos, portanto, a questão fanoniana torna-se mais nítida ainda. O psicologismo que unilateraliza a condição do negro e encerra sua identidade em si mesma, produzindo uma metafísica racial, é o grande alvo da crítica do pensador martinicano nesse capítulo. A desalienação do negro, a recuperação da humanidade perdida (que não redunda em um restabelecimento de estruturas sociais anteriormente postas, na tentativa de ressuscitação de uma cultura assassinada) tem por condição a superação da sociedade burguesa, das estruturas sociais que possibilitam o estabelecimento de relações de inferioridade racial. Entre as alternativas dadas ao negro, de embranquecer-se ou desaparecer, Fanon pretende expor outra, que tem por necessário trazer à consciência o que está no inconsciente, de apresentar como resposta para a questão da interdição do reconhecimento a luta política com um objetivo: o fim do mundo.


Notas:

¹  Usamos a expressão “o assim chamado” em referência ao capítulo XXIV de O Capital de Karl Marx, intitulado A assim chamada acumulação primitiva. Capítulo no qual Marx trata daquilo que ele chama de expropriação originária, que nos remete em alguma medida à gênese do capitalismo, mas não somente a ela, contrastando ao trato que Adam Smith, em A riqueza das nações dá à questão, mistificando a história ao tratar o surgimento da burguesia e do operariado como um fenômeno decorrente da perspicácia de determinados indivíduos, que entesouravam suas riquezas pensando no futuro, enquanto outros, vadios, punham-se a gastar tudo o que tinham até não terem mais nada a vender senão sua força de trabalho (Cf. Marx, 2013). Acreditamos que a comparação vem a calhar tendo em vista especialmente que no capítulo 4 da obra de Fanon o autor também se opõe a uma mistificação da história, mas em outro sentido, conforme será abordado ao decorrer do presente texto.


²  “(...) in South Africa the white labourers are quite as racialist as the employers and managers and very often a good deal more so” (tradução nossa).


³  Aimé Césaire nesse momento traz à tona a hipocrisia europeia que se horroriza com o terror nazismo, mas que legitima aquilo que a gestou, o colonialismo: “As pessoas espantam-se, indignam-se. Dizem “Como é curioso! Ora! É o nazismo, isso passa!”. E aguardam, e esperam; e calam em si próprios a verdade – que é uma barbárie, mas a barbárie suprema, a que coroa, a que resume a quotidianidade das barbáries; que é o nazismo, sim, mas que antes de serem as suas vítimas, foram os cúmplices; que o toleraram, esse mesmo nazismo, antes de o sofrer, absolveram-no, fecharam-lhe os olhos, legitimaram-no, porque até aí só se tinha aplicado a povos não europeus; que o cultivaram, são responsáveis por ele, e que ele brota, rompe, goteja, antes de submergir nas suas águas avermelhadas de todas as fissuras da civilização ocidental e cristã” (Césaire, 1978, p. 17-18).


 Mannoni inicia o segundo capítulo dizendo: “France is unquestionably one of the least racialist-minded countries in the world”. (“A França é inquestionavelmente um dos países menos racistas do mundo”) (1990, p. 110, tradução nossa).


 Fanon diz que Mannoni não se dá conta de que “para um judeu, as diferenças entre o antissemitismo de Maurras e o de Goebbels são imperceptíveis” (2020, p. 101).


 “In practice, therefore, an inferiority complex connected with the colour of the skin is found only among those who form a minority within a group of another colour. In a fairly homogeneous community like that of the Malagasies, where the social framework is still fairly strong, an inferiority complex occurs only in very exceptional cases” (“Na prática, portanto, um complexo de inferioridade conectado com a cor da pele é encontrado apenas entre aqueles que formam uma minoria dentro de um grupo de outra cor. Em comunidades bastante homogêneas como a malgaxe, onde as estruturas sociais ainda são bastante fortes, um complexo de inferioridade ocorre somente em casos muito excepcionais”) (Mannoni, 1990, p. 39, tradução nossa).


 Fanon remete a Sartre nesse ponto, pensador pelo qual tem em grande estima e cita positivamente em várias partes de sua obra, e aqui especificamente tendo em vista A Questão Judaica, no qual a frase “o antissemita é quem faz o judeu” (Cf. Sartre, 1995) é levada até as últimas consequências por nosso autor. É também o branco quem faz o negro, não somente em seu caráter mistificado, como referimo-nos no início desse texto, mas em todas as suas instâncias, daí a frase de Fanon: “O negro não existe. Não mais que o branco” (2020, p. 242), que além de uma constatação é uma chamada para a luta política conjunta tendo em vista a desalienação de ambas as raças, pelo fim da cisão do homem em raça e a reconciliação da unidade desse homem, do humano: “É por meio de um esforço de resgate de si mesmo e de depuração, é por meio de uma tensão permanente da sua liberdade que os seres humanos podem criar as condições ideais para a existência de um mundo humano” (ibidem).


 “To mind there is no doubting the fact that colonization has always required the existence of the need for dependence. Not all peoples can be colonized: only those who experience this need. (...) Wherever Europeans have founded colonies of the type we are considering, it can safely be said that their coming was unconsciously expected – even desired – by the future subject peoples. Everywhere there existed legends foretelling the arrival of strangers from the sea, bearing wondrous gifts with them” (“Não há dúvidas no fato de que a colonização sempre requereu a existência da necessidade por dependência. Nem todos os povos podem ser colonizados: apenas aqueles que experenciaram essa necessidade. (...) Onde quer que os Europeus tenham fundado colônias do tipo que nós estamos considerando pode se dizer seguramente que sua chegada era inconscientemente esperada - até desejada - pelos futuros povos colonizados. Em todos os lugares existiam lendas de estrangeiros que vinham do mar, trazendo presentes maravilhosos com eles”) (Mannoni, 1990, p. 85-86, tradução nossa).


 Em um dos casos o sonho é sobre um boi negro que persegue raivosamente a pessoa que sonha (Mannoni, 1990, p. 91).


¹⁰  Fanon faz citação a uma obra de Pierre Naville aqui: Psychologie, marxisme, matérialisme: Essais critiques (1948).


¹¹  A questão não estava colocada concretamente para Fanon quando da escrita de Pele negra máscaras brancas, pois não havia a vista nenhuma luta anticolonial com a qual pudesse contribuir. A situação muda com a eclosão da Revolução Argelina dois anos após a publicação do referido livro, pelo que Fanon, em 1955, adere à luta e ingressa na FLN (Frente de Libertação Nacional). Acreditamos que, teoricamente, o resultado dessa participação na luta política argelina é Os Condenados da Terra (Cf. Fanon, 2022), publicado em 1961. Portanto, demarcamos nossa posição de discordância em relação ao corte epistemológico que é feito na obra de Fanon, especialmente pelos pós-coloniais.


Referências


CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Trad. de Noémia de Sousa. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1978.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. de Ligia Fonseca Ferreira e Regina Salgado Campos. São Paulo: Zahar, 2022.

_____. Pele negra, máscaras brancas. Trad. de Sebastião Nascimento e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

FAUSTINO, Deivison Mendes. Por que Fanon? Por que agora? Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil. Tese de doutorado. UFSCar, 2015.

MANNONI, Octave. Prospero and Caliban: The psychology of colonization. Trad. de Pamela Powesland. Ann Arbor: University of Michigan, 1990.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de reprodução do capital. Trad. de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.

NAVILLE, Pierre. Psychologie, marxisme, matérialisme: Essais critiques. Paris: Marcel Rivière, 1948.

RODRIGUES BARROS, Douglas. Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial. São Paulo: Hedra, 2019.

SARTRE, Jean-Paul. A Questão Judaica. Trad. de Mário Vilela. São Paulo: Editora Ática, 1995.

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