Instruções para os quadros destinados ao trabalho urbano - Che Guevara
- Igor Dias
- 30 de jan.
- 7 min de leitura

Tradução: Igor Dias Domingues de Souza
Como recentemente apontado em nossa revista, a questão da organização adequada da vanguarda revolucionária é um problema candente de nosso movimento. Há uma dificuldade considerável de obter saldo a partir da experiência histórica revolucionária no que podemos chamar de Estudos Organizacionais Partidários, de tal modo que o tradicionalismo e a autoproclamação têm superado em alta conta a cientificidade na análise da forma organizativa. Deve-se notar que o movimento de arregimentação das tropas deve anteceder, sob quaisquer circunstâncias, a ordem derradeira de encetar a contenda; um exército que não compreende como deve se posicionar para alcançar seus objetivos, não tem a capacidade de executar sua tática, quanto menos de cumprir com sua estratégia.
É nesse espírito que realizamos a tradução do presente texto de Che*. Redigido no ano de 1967, provavelmente em 15 de janeiro desse ano (de acordo com seus diários), o que se segue é uma carta de orientação organizativa para os militantes do Exército de Liberação Nacional da Bolívia que se encontravam em atuação urbana durante a Guerrilha de Ñancahuazú. Como o leitor observará, este não é um estudo sistemático acerca de toda a organização do ELN, mas uma diretiva sobre o modo que os trabalhos deveriam ser conduzidos e algumas das principais razões pelas quais a organização deveria tomar a forma indicada nas cidades como meio de apoiar à guerrilha. Fortemente marcado pelo contexto da clandestinidade e do confronto armado rural nos territórios do Exército, Che expressa efetiva preocupação com a necessidade da organização para o momento revolucionário em que se encontrava. 58 anos depois, poderíamos nos deparar com a criação de redes de apoio igualmente efetivas ou disciplinadas para as tarefas de seu próprio tempo?
Instruções para os quadros destinados ao trabalho urbano
A formação de uma rede de apoio do caráter que queremos formar deve guiar-se por uma série de normas cuja generalização faremos a seguir.
A ação será fundamentalmente clandestina, mas se alternará com certos tipos de trabalho em que será necessário o contato com indivíduos ou entidades que obrigará certos quadros a saírem à superfície. Isto obriga-nos a ser muito rígidos em nosso fracionamento, isolando cada uma das frentes de atuação.
Os quadros devem aderir rigorosamente à linha geral de conduta ordenada pela chefia do Exército por meio dos centros dirigentes, mas terão total liberdade na forma prática de levar a cabo essa linha.
Para poder cumprir as difíceis tarefas atribuídas e sobreviver, o quadro clandestino deve ter muito desenvolvidas as seguintes qualidades: disciplina, hermetismo, dissimulação e sangue frio e praticar métodos de trabalho que os protejam de contingências inesperadas.
Todos os companheiros que realizem trabalhos semipúblicos terão um escalão superior clandestino que os dará instruções e controlará seu trabalho.
Dentro do possível, tanto o chefe da rede como os diferentes gestores terão uma só função e os contatos horizontais se realizarão por meio do chefe. Os cargos mínimos para uma rede já organizada são os seguintes:
O Chefe.
Um gestor de suprimentos.
Um gestor de transportes.
Um gestor de informações.
Um gestor de finanças.
Um gestor de ação urbana.
Um gestor encarregado de auxiliar os simpatizantes.
À medida que se desenvolver, será necessário um gestor de comunicações, dependente, em geral, do chefe.
O chefe receberá as instruções da direção do exército e as colocará em prática por meio dos diferentes encarregados. Ele deve ser conhecido somente desse pequeno núcleo dirigente para evitar colocar toda a rede em perigo com sua eventual captura. Se os gestores se conhecerem, mesmo assim seu trabalho será conhecido dentre eles e qualquer alteração não será comunicada.
Serão tomadas medidas para que a detenção de um membro importante da rede provoque a mudança da residência ou dos métodos de contato do chefe e de todos aqueles que o conheceram.
O gestor de suprimentos terá a tarefa de abastecer o Exército, mas sua tarefa é organizativa: a partir do centro irá criando redes menores de apoio que cheguem aos confins do ELN, seja uma organização puramente camponesa, seja com a ajuda de comerciantes ou outros indivíduos ou organizações que prestem assistência.
O gestor de transporte se ocupará da movimentação dos suprimentos dos centros de armazenamento para os pontos onde serão coletados pelas redes menores ou diretamente para o território liberado, dependendo do caso.
Esses companheiros devem trabalhar sob disfarces sólidos, por exemplo, organizando pequenos empreendimentos comerciais que os protejam das suspeitas das autoridades repressivas quando a magnitude e os objetivos do movimento se tornem públicos.
O gestor da informação centralizará toda a informação militar e política recebida por meio dos contatos adequados (em ação semipública de contato com simpatizantes do Exército ou do governo, o que torna o cargo particularmente perigoso). Todo o material recolhido será remetido ao encarregado de informação de nosso Exército. Este gestor estará sujeito a uma dupla chefia; a de chefe da rede e a de nosso serviço de inteligência.
O gestor de finanças deve controlar os gastos da Organização. Este companheiro deve ter uma clara visão de quão importante é sua função, pois o quadro clandestino, apesar de estar sujeito a muitos perigos e exposto a uma morte obscura, pelo ato de viver na cidade, não passa pelas penalidades físicas do guerrilheiro e pode se acostumar a conduzir despreocupadamente as quantidades de suprimentos e de dinheiro que passem por suas mãos, correndo o risco de que sua estatura revolucionaria decresça em contato permanente com fontes de tentação. O gestor de finanças deve analisar até o último peso gasto, evitando que mesmo um único centavo seja entregue sem justificativa. Além disso, será o gestor de administrar o dinheiro proveniente de arrecadações ou impostos e organizar sua cobrança.
O gestor de finanças está sob as ordens do chefe da rede, mas também será seu inspetor no que se diz respeito às despesas. De tudo isto se conclui que o gestor de finanças deve ser ideologicamente muito firme.
A tarefa dos gestores da ação urbana estende-se a tudo o que seja ação armada na cidade: repressão de algum informante, de um torturador notório ou um líder do regime, sequestro de alguma pessoa com o fim de obter resgate; a sabotagem de alguns centros de atividade econômica do país, etc. Todas as ações serão ordenadas pelo Chefe da rede; este companheiro não poderá atuar por iniciativa própria, salvo casos de urgência extraordinária.
O gestor dos simpatizantes terá as funções mais públicas dentro da rede e estará em contato com elementos pouco firmes, aqueles que lavam sua consciência entregando somas de dinheiro ou fazendo contribuições que não os comprometam. São gente com as quais se pode trabalhar, mas sem esquecer nunca que seu apoio estará condicionado pelo perigo que possam correr e procedendo de acordo, tratando de transformá-los lentamente em militantes ativos e incitando-os a realizar contribuições substanciais ao movimento, não somente de dinheiro, mas também de medicamentos, esconderijos, informações, etc.
Neste tipo de rede, há gente que deve trabalhar muito unida. Por exemplo, o gestor de transporte está organicamente ligado ao de suprimentos, que será seu chefe imediato; o gestor dos simpatizantes dependerá de finanças; ação e informação atuarão em contato direto com o chefe da rede.
As redes estarão sujeitas à inspeção de quadros enviados diretamente pelo Exército, que não têm função executiva, mas que verificarão o cumprimento das instruções e normas lhes forem emitidas.
As redes deverão "caminhar" ao encontro do Exército da seguinte maneira:
A chefia superior dá ordens ao chefe da rede; este se encarrega de organizá-la nas cidades importantes; destas partem ramais até os povoados e dali até as aldeias ou casas de camponeses que entrarão em contato com nosso Exército e onde se ocorrerá a entrega física de suprimentos, dinheiro ou informação.
À medida que a zona de influência de nosso Exército avance, avançarão até a cidade os pontos de contato e crescerá proporcionalmente a área de controle direto deste; num longo processo que terá altos e baixos e cujo desenvolvimento, como o de toda esta guerra, de mede em anos.
A sede da rede ficará situada na capital; a partir dela se organizarão redes nas cidades que no momento nos são mais importantes: Cochabamba, Santa Cruz, Sucre, Camiri, ou seja, o retângulo que engloba nossa zona de operações. Os responsáveis destas quatro cidades devem ser quadros provados na medida do possível; eles se encarregarão de uma organização semelhante, porém mais simplificada. Suprimentos e transportes sob uma direção; finanças e os simpatizantes sob outra; uma terceira de ação urbana e a de informação pode ser suprimida, ficando o chefe local encarregado dela. A ação urbana se ligará mais intimamente ao Exército à medida em que a cidade em questão se aproxime do seu território; até se tornarem guerrilhas suburbanas, dependentes da chefia militar.
A partir dessas cidades a rede será ampliada da maneira já descrita.
Também não se pode descuidar do desenvolvimento da rede em cidades que hoje se encontram afastadas de nosso campo de atuação, onde é preciso solicitar o apoio da população e se preparar com antecedência para ações futuras. Oruro e Potosi pertencem a este tipo e são as mais importantes.
Deve-se prestar atenção particular aos pontos fronteiriços. Villazón e Tarija para contatos e abastecimentos até a Argentina; Santa Cruz para o Brasil; Huaqui ou algum outro lugar para a fronteira peruana; algum ponto para a fronteira chilena.
Para a organização da rede de suprimentos, seria conveniente contar com militantes firmes que já tivessem desempenhado um trabalho semelhante à atividade que lhes é exigida agora.
Por exemplo: um dono de armazém que organizará os suprimentos e participará nesta seção da rede; um dono de alguma empresa de transporte que organizará este ramo, etc.
Em caso de não se conseguir isto, deve-se tratar de ir formando o aparato com paciência; sem violentar os acontecimentos, evitando assim que, ao instalar um posto avançado sem garantias suficientes, este se perca e ainda comprometa outros.
Devem-se organizar os seguintes negócios ou fábricas:
Armazéns de comida (La Paz, Cochabamba, Santa Cruz, Camiri)
Empresas de Transporte (La Paz-Santa Cruz; Santa Cruz-Camiri; La Paz-Sucre; Sucre-Camiri)
Sapatarias (La Paz, Santa Cruz, Camiri, Cochabamba) Confecções (idem)
Oficinas Mecânicas (La Paz, Santa Cruz)
Terras (Chapare-Caranavi)
Os primeiros permitiriam a reunião e transporte de suprimentos sem chamar a atenção e, junto a eles, implementos de guerra. As sapatarias e as confecções poderiam realizar a dupla tarefa de comprar sem chamar a atenção e fabricar para nós. A Oficina faria o mesmo em seu ramo com os implementos bélicos e as terras nos serviriam como base de apoio em transportes eventuais e para que seus colonos começassem a propaganda entre os camponeses.
É conveniente ressaltar uma vez mais a firmeza ideológica que devem ter estes quadros, recebendo do movimento revolucionário só o estritamente indispensável a suas necessidades e entregando todo o seu tempo e também sua liberdade ou sua vida, se for o caso. Só assim conseguiremos a formação efetiva da rede necessária para consumar nossos ambiciosos planos: a liberação total da Bolívia.
*Retirado de: GALVARRO, Carlos. El Che en Bolivia: Documentos y testimonios. Tomo I. La Paz: La Razón, 2005. T. 1, p.201-205.
Comments