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L. N. Tolstói

  • Foto do escritor: Barravento Revista
    Barravento Revista
  • 20 de set. de 2023
  • 11 min de leitura

Atualizado: 29 de abr. de 2024

por V. I. Lênin


Imagem: Tolstói aos 80 anos de idade (Getty Images)


O artigo que agora apresentamos foi por diversas vezes chamado de obituário de Tolstói, que havia morrido nove dias antes de sua publicação.

Tal qual o texto que abriu a série sobre Tolstói, sua primeira tradução para a língua portuguesa foi feita por Eneida de Morais para compilação de textos e trechos (Trechos escolhidos sobre literatura e arte: Marx, Engels, Lenin e Stalin. Rio de Janeiro: Editorial Calvino, 1945) de Jean Fréville. Da mesma forma, uma segunda tradução foi feita pela Editora Avante! em Portugal (que parece ser a versão disponível em Lênin, V. I. Tolstoi, um grande artista, Portal Vermelho).

Tendo por base fundamental as duas versões em português, a partir da comparação entre a versão do texto em espanhol (Lenin, V. I. Obras completas. Tomo XX, Moscou: Progreso, 1983, p. 19-24) e em inglês (Lenin, V. I. Collected Works. Vol. 16, Moscow: Progress Publishers, 1973, p. 321-327), realizamos consultas ao texto no original russo nas Obras Completas. Reforçamos aqui que nossa proficiência no idioma russo é ainda muito débil, sendo essa mais uma tradução provisória, preocupada centralmente em retomar o sentido de alguns elementos, como termos, palavras e ideias, perdidos pelas traduções disponíveis ao público lusófono. As palavras em destaque no texto de Lênin foram mantidas como no original.


Revisão de tradução por Pedro Badô.

Revisão textual por Wesley Sousa.

Morreu Liev Tolstói. Sua importância mundial como artista, sua fama mundial como pensador e de pregador refletem, cada uma à sua maneira, a importância mundial da revolução russa.

L. N. Tolstói surgiu como um grande artista ainda na época do regime de servidão. Numa série de obras geniais, escritas no decorrer de sua atividade literária de mais de meio século, ele retratou principalmente a velha Rússia pré-revolucionária, que permaneceu na semi-servidão depois de 1861 [1], a Rússia rural, a Rússia dos senhores proprietário de terra e do camponês. Desenhando esse período histórico da vida da Rússia, L. Tolstói soube apresentar tantas grandes questões em suas obras; soube elevar-se a uma força artística tão grande, que suas obras ocupam os primeiros lugares no romance moderno [2] mundial. A época dos preparativos da revolução num dos países oprimidos pelos senhores feudais destacou-se, graças à genial interpretação de Tolstói, como um passo à frente no desenvolvimento artístico de toda a humanidade.

Tolstói, o artista, é conhecido por uma ínfima minoria, mesmo na Rússia. Para que suas grandes obras tornem-se verdadeiramente um patrimônio de todos, é necessário lutas e mais lutas contra a ordem social que condena milhões e dezenas de milhões à escuridão, ao medo, ao trabalho de condenado e à miséria, é necessário um golpe [3] socialista.

Tolstói não só criou obras de arte que sempre serão apreciadas e lidas pelas massas, quando elas criarem para si condições humanas de vida, derrubando o jugo dos senhores proprietários de terras e dos capitalistas, – ele soube apresentar, com uma força notável, o estado de espírito [(humor); настроений, nastroyeniy] das grandes massas oprimidas pelo ordenamento atual [современным порядком, sovremennym poryadkom], descrever a posição, expressar o sentimento espontâneo de protesto e de indignação. Pertencendo principalmente à época dos anos 1861-1904, Tolstói corporificou em suas obras, com surpreendente relevo, – tanto como artista quanto como pensador e pregador – os traços históricos particulares de toda a primeira revolução russa, sua força e sua fraqueza.

Um dos principais traços distintivos de nossa revolução consiste em ter sido uma revolução burguesa camponesa numa época de altíssimo desenvolvimento do capitalismo no mundo todo, e relativamente alto na Rússia. Foi uma revolução burguesa pois sua tarefa imediata era derrubar a autocracia tsarista, a monarquia tsarista e a destruição da propriedade senhorial da terra, e não a derrubada do domínio da burguesia. O campesinato em particular, não compreendia essa última tarefa, não compreendia a sua diferença em relação às tarefas mais próximas e mais imediatas da luta. E foi uma revolução burguesa camponesa pois as condições objetivas fizeram avançar para primeiro lugar a questão da alteração das condições fundamentais [коренных, korennykh] da vida do campesinato, da quebra da antiga propriedade medieval da terra, do “limpar terreno” para o capitalismo; as condições objetivas fizeram avançar para a arena da ação histórica, mais ou menos independente, as massas camponesas.

As obras de Tolstói expressam tanto a força quanto a fraqueza, tanto a potência quanto a limitação, precisamente, do movimento de massa camponês. Seu protesto acalorado, apaixonado e, muitas vezes, impiedosamente cortante contra o Estado e a Igreja oficial- policialesca [полицейски-казенной церкви, politseyski-kazennoy tserkvi], expressa o estado de espírito da democracia primitiva camponesa [примитивной крестьянской демократии, primitivnoy krest'yanskoy demokratii], sobre a qual séculos de regime de servidão, de arbitrariedades do funcionalismo estatal e da pilhagem, do jesuitismo de igreja [4], de enganações e trapaças, acumularam-se montanhas de raiva e de ódio. Sua rejeição inflexível da propriedade privada da terra expressa a psicologia das massas camponesas nesse momento histórico em que a antiga propriedade medieval da terra, tanto do senhor proprietário quanto do “nadiel” estatal [5], tornou-se definitivamente um obstáculo intolerável ao avanço do desenvolvimento no país e em que esta antiga propriedade da terra estava, inevitavelmente, sujeita à mais drástica e mais implacável destruição. Sua denúncia incessante do capitalismo, cheia do mais profundo sentimento e da mais ardente indignação, expressa todo o horror do camponês patriarcal, sobre o qual um inimigo novo, invisível e incompreensível começou a se aproximar, vindo de algum lugar das cidades ou de algum lugar do estrangeiro, destruindo todos os “pilares” da vida rural aldeã, trazendo consigo uma devastação sem precedentes, a miséria, a inanição, o asselvagemento [одичание, odichaniye], a prostituição, a sífilis – todas as catástrofes da “época da acumulação originária” [6], agravados cem vezes pela transferência para o solo russo das técnicas mais modernas de pilhagem, desenvolvidos pelo senhor Kupon [7].

Mas o manifestante acalorado, o acusador apaixonado, o grande crítico, revelou em suas obras, ao mesmo tempo, uma tal incompreensão das causas e dos meios para sair da crise iminente na Rússia, o que só poderia ser típico de um camponês patriarcal e ingênuo, mas não de um escritor de educação europeia. A luta contra o Estado policial e defensor da servidão [8], contra a monarquia, transformou-se para ele em uma negação da política, o conduziu ao ensinamento da “não resistência ao mal”, o levou ao completo afastamento da luta revolucionária das massas em 1905-1907. A luta contra a Igreja oficial foi combinada com a pregação de uma religião nova e purificada, isto é, de um novo, purificado e refinado veneno para as massas oprimidas. A negação da propriedade privada da terra não levou à concentração de toda a luta contra o verdadeiro inimigo, contra a propriedade senhorial de terras e seu instrumento de dominação política, a monarquia, mas a suspiros sonhadores, vagos e impotentes. A denúncia do capitalismo e das calamidades que ele infligiu às massas foi combinada com uma atitude absolutamente apática em relação à luta mundial de libertação, travada pelo proletariado socialista internacional.

As contradições da visão de Tolstói não são apenas contradições de seu pensamento pessoal, mas um reflexo [отражение, otrazheniye] daquelas condições, influências sociais e tradições históricas altamente complexas e contraditórias, que determinaram a psicologia das diversas classes e das diferentes camadas da sociedade russa na época pós-reforma, porém pré-revolucionária [9].

E, por isso, uma avaliação correta sobre Tolstói só é possível do ponto de vista da classe que, pelo seu papel político e pela sua luta durante o primeiro desenlace dessas contradições, durante a revolução, provou sua vocação para ser um guia na luta pela liberdade do povo e pela libertação das massas exploradas, – provou sua devoção abnegada à causa da democracia e sua capacidade de lutar contra a estreiteza e a inconsequência da democracia burguesa (inclusive a camponesa), – só é possível do ponto de vista do proletariado social-democrata.

Veja a avaliação dos jornais do governo sobre Tolstói. Eles derramaram lágrimas de crocodilo, assegurando o seu respeito pelo “grande escritor”, mas, ao mesmo tempo, defendendo o “santíssimo” sínodo. E os santíssimos padres acabaram de cometer uma abominação particularmente repugnante ao enviar sacerdotes ao moribundo, para enganar o povo e dizer que Tolstói “se arrependeu”. O santíssimo sínodo excomungou Tolstói da igreja. Tanto melhor. Esta proeza será creditada a ele na hora da punição popular contra os funcionários de batina, os policiais em Cristo, os sombrios inquisidores que apoiaram os pogroms judeus [10] e outras façanhas da quadrilha tsarista dos centurionegristas [11].

Veja a avaliação dos jornais liberais sobre Tolstói. Eles se safam com suas frases vazias, oficial-liberais, professorais e banais sobre “a voz da humanidade civilizada”, sobre “a resposta unânime do mundo”, sobre “as ideias da verdade, da bondade”, etc., em razão das quais Tolstói fustigou – e fustigou corretamente – a ciência burguesa. Eles não podem manifestar direta e claramente sua avaliação sobre a visão de Tolstói em relação ao Estado, à Igreja, à propriedade privada da terra, ao capitalismo não porque a censura os impeça, – pelo contrário, a censura os ajuda a sair desse embaraço! –, mas porque cada posicionamento da crítica de Tolstói é uma tapa na cara do liberalismo burguês; porque o modo intrépido, aberto e impiedosamente cortante com que Tolstói expõe as questões mais sensíveis, mais desgraçadas de nosso tempo é um tapa na cara nessas frases prontas, nos subterfúgios batidos, nas mentiras evasivas e “civilizadas” de nossas publicações liberais (e liberal-narodniki). Os liberais defendem imensamente Tolstói, são imensamente contra o sínodo, e, ao mesmo tempo, estão com … os viekhistas [12], com os quais até “pode-se debater”, mas com os quais é “necessário” conviver num mesmo partido, “necessário” trabalhar em conjunto na literatura e na política. E os viekhistas são saudados com beijos por Antoni Volinski [13].

Os liberais trazem ao primeiro plano o fato de que Tolstói foi uma “grande consciência”. Esta não é uma frase vazia, repetida de mil modos pelo “Novoie Vremia[14] e todos os seus semelhantes? Isso não é desviar das questões concretas da democracia e do socialismo expostas por Tolstói? Não é isso que traz ao primeiro plano aquilo o que em Tolstói expressa seus preconceitos e não sua razão, aquilo que nele pertence ao passado e não ao futuro, sua negação da política e sua pregação do autoaperfeiçoamento moral e não seu protesto impetuoso contra toda dominação de classe?

Morreu Tolstói, e a Rússia pré-revolucionária ficou no passado, cuja fraqueza e apatia são expressas na filosofia e descritas nas obras do artista genial. Mas em sua herança há algo que não ficou no passado, que pertence ao futuro. Essa herança será apropriada e elevada, essa herança está sendo trabalhada pelo proletariado russo. Ele explicará às massas de trabalhadores e de explorados o significado da crítica tolstoiana ao Estado, à Igreja, à propriedade privada da terra – não para que as massas se limitem ao seu autoaperfeiçoamento e aos suspiros por uma vida divina, mas para que se levantem para desferir um novo golpe na monarquia tsarista e nos senhores proprietários de terras que, em 1905, foram apenas levemente danificados e que precisam ser exterminados. Ele explicará às massas a crítica tolstoiana ao capitalismo – não para que as massas se limitem a amaldiçoar o capital e o poder do dinheiro, mas para que elas aprendam a se apoiar, em cada passo de sua vida e de sua luta, sobre as conquistas técnicas e sociais do capitalismo, para que aprendam a unir num só exército de milhões de combatentes socialistas, que irão derrubar o capitalismo e fundar uma nova sociedade sem miséria do povo, sem exploração do homem pelo homem.

Sotsial-Demokrat, nº 18, 16 (29, no calendário gregoriano) de novembro de 1910.

 

Notas:

[1] Lênin refere-se aqui à reforma do tsar Aleksandr II que, em 1861, aboliu legalmente o regime de servidão na Rússia.

[2] O termo “художественной литературе” (“khudozhestvennoy literature”) pode ser traduzido livremente como “literatura artística”, no sentido de algo como “literatura ficcional”. No contexto em que Lênin emprega aqui, o termo parece denotar a forma moderna do romance europeu, em contraposição aos contos e narrativas da tradição popular sem autoria definida.

[3] A expressão “переворот” (“perevorot”) costuma ter seu equivalente em nossa palavra “golpe”, como no caso de “golpe de Estado” (“государственный переворот”, “gosudarstvennyy perevorot”). No entanto, pode também significar algo próximo de uma “virada brusca”, um momento de virada no desenvolvimento e na história.

[4] A expressão “jesuitismo” – “иезуитизма”, “iyezuitizma” – é normalmente compreendida em sentido pejorativo, designando algo de caráter dissimulado, hipócrita e evasivo.

[5] O nadiel [надел, nadel] era uma forma específica de loteamento da terra e de exploração da força de trabalho dos camponeses. Também era muito recorrente que o nadiel fosse propriedade do Estado russo e que este, tal como um proprietário privado, explorasse o trabalho camponês.

[6] Referência ao capítulo 24, “A assim chamada acumulação primitiva”, do Livro I d'O capital de Marx. (Cf. O capital: crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 785-834).

[7] O senhor Kupon foi uma figura literária popular durante o fim do século XIX que representava o capital e os capitalistas. A figura foi originalmente utilizada pelo escritor russo Gleb Ivanovitch Uspenski nos ensaios Os pecados capitais [Грехи тяжкие, Grekhi tyazhkiye] em 1888. (Nota da edição em espanhol e inglês).

[8] A expressão “крепостническим” (“krepostnicheskim”) já foi traduzida na presente edição como “defensor da servidão”, mas aqui cabe uma nota. Na versão brasileira da coletânea de Fréville, nesse trecho, a expressão é traduzida como “escravista”. De fato, em russo, a palavra é recorrentemente empregada para designar escravidão, como também pra designar a servidão feudal. Isso parece ter fundamento no próprio desenvolvimento da história da Rússia, na transição feita do escravismo para a servidão. Formas de contratos, consideradas por alguns estudiosos como uma espécie de escravidão legal, sobreviveram de modo residual até o século XIX. Além disso, traços da escravidão parecem ter sido incorporados ao feudalismo russo – como a possibilidade de aplicação de castigos físicos contra os servos –, criando um tipo de servidão muito particular e que, por isso, é até hoje objeto de grande debate e pesquisa histórica.

[9] Lênin refere-se aqui ao período entre 1861, ano da reforma que aboliu legalmente a servidão, e 1905, ano em que a revolução democrática explodiu na Rússia.

[10] Os pogroms – quem pode ser traduzido livremente como “causar estragos” ou “destruição violenta” – foram massacres feitos pela população em geral contra os judeus e outras minorias étnicas e religiosas nos territórios do Império russo e de outros países do leste europeu. Alguns dos pogroms mais conhecidos foram as grandes revoltas anti-semitas que aconteceram no atual território da Ucrânia e no sul da Rússia, entre 1881 e 1884, após o assassinato do tsar Aleksandr II. Os pogroms eram organizados muitas vezes com o incentivo das instituições tsristas, tal como a polícia secreta Okhrana, e por membros do clero ortodoxo.

[11] Os centurionegrista – ou tchernossóteniets – eram membros do grupo paramilitar chamado Centúrias Negras – ou Cem Negros, Centenas Negras – fundado por volta de 1905, a partir de outros grupos existentes, para a defesa do tsarismo frente às ameaças da revolução democrática. Eram compostos e apoiados por intelectuais conservadores, funcionários do governo, membros do clero e proprietários de terras, sendo profundamente nacionalista e antissemita.

[12] Os Viekhi – também conhecidos pelo título em inglês Landmarks ou Signposts – é uma coleção de ensaios publicada pela primeira vez em Moscou na primavera de 1909. Segundo o próprio Lênin, os Viekhi são uma “conhecida compilação feita pelos mais influentes ensaístas kadetes [constitucional-democratas]” – como Berdiaev, Bulgakov, Gershenzon, Izgoev, Kistiakovski, Struve e Frank –, que “foi recebida com entusiasmo por toda a imprensa reacionária e constitui um autêntico símbolo da época”. Os artigos tentavam colocar em questão as tradições democráticas revolucionárias do movimento popular russo, os pensadores como Belinski, Dobroliubov, Tchernishevski e Pisarev e o movimento revolucionário de 1905. Uma análise de Lênin sobre os Viekhi pode ser encontrada em Acerca de Veji, in: Obras completas. Tomo XVI, Madrid: Akal, 1977, p.119-127.

[13] Antoni Volinski (Aleksei Pavlovitch Khrapovitski) foi um bispo da Igreja Ortodoxa russa, líder centurionegrista e chefe de extrema direita na Igreja, um dos líderes mais proeminentes da política reacionária do tsarismo. (Nota da edição em russo)

[14] O Novoie Vremia (Novo Tempo) foi um jornal publicado entre 1868 e 1917 em São Petersburgo. Considerado um grande jornal de “tipo europeu”, publicava notícias estrangeiras bem detalhadas, anúncios de grandes empresas e obituários de figuras famosas. No entanto, com o passar do tempo, o Novoie Vremia ganhou reputação de um jornal servil, reacionário, sem escrúpulos e antissemita.

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