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Pode o Partido Burguês falar pelos trabalhadores dos Estados Unidos da América?

  • Foto do escritor: Murphy Stay
    Murphy Stay
  • 21 de nov. de 2024
  • 5 min de leitura

Atualizado: 14 de dez. de 2024

por Pedro Sodré

 


Desde a confirmação da vitória de Donald Trump no arcaico Colégio Eleitoral dos Estados Unidos da América na quarta-feira (06/11), a afirmação da moda na imprensa burguesa (e até mesmo dentro de círculos intelectuais “progressistas”) tem sido a de que Trump venceu as eleições porque conquistou o apoio da classe trabalhadora americana. A CNN reproduziu reportagem impulsionando essa visão. O social-democrata Bernie Sanders também veiculou essa ideia. Até mesmo o chargista da Folha de S. Paulo, Cláudio de Oliveira, brincou com essa suposta adesão de setores operários à Trump.

A afirmação em questão, completamente falsa, caracteriza-se antes como sintoma da época de transição histórica que vivemos. Muito mais do que uma adesão ideológica dos trabalhadores americanos àquilo que Trump representa, a vitória do candidato republicano tanto no Colégio Eleitoral quanto no simbólico “voto popular” mostra os novos limites do desenvolvimento orgânico das formas de dominação burguesa.

Essa época histórica encontra no retorno de Trump à Casa Branca a já consolidada concretização objetiva do Estado burguês, sobretudo em seus contornos “democráticos e de direito”, e não sua falência, como muitos querem fazer crer. Afinal, volta aos holofotes do pardieiro estatal o ator que demonstrou como a ordem democrática liberal aceita, acolhe e acomoda — sem maiores problemas — todos os tipos de representantes do partido burguês, até aqueles que eventualmente ousam atentar contra ela. Tudo isso para desespero dos derrotistas que se assustam com a própria sombra e insistem em tornar cada vez mais nebulosa a tênue linha que deveria nos separar das várias frações burguesas.

Se no Brasil ainda existem atores políticos que tensionam e contrariam a forma como essa linha divisória segue sendo mascarada, mantendo vivas as diferenciações dos projetos históricos das classes que se enfrentam no cenário nacional, nos Estados Unidos esse processo de ofuscamento já se encontra há muito tempo avançado. Ou terá alguém a coragem de afirmar, como o socialdemocrata Bernie Sanders, que na história recente dos Estados Unidos as frações liberais que se reúnem no Partido Democrata representaram um espaço autêntico da classe trabalhadora? Afinal, qual foi a última vez em que os trabalhadores americanos agiram com autonomia e independência política, marcando abertamente suas distinções de classe e de projeto societário na esfera política nacional?

É certo que trabalhadores votaram em Trump (milhões, inclusive). Mas esse voto representa seus interesses de classe? A imprensa e os intelectuais engomados da burguesia repetem que os trabalhadores se afastaram do partido revolucionário desde o final do século XX, pois ele já não os representaria em suas pautas e reivindicações mais imediatas — estabilidade nas relações de trabalho, direitos sociais, redução da jornada de trabalho, etc., seriam coisas do passado, que não mais interessariam aos trabalhadores. Abolição da propriedade privada, extinção do Estado e destruição da sociedade cindida em classes sociais? Menos ainda, pois isso é nada mais do que peça de museu — dizem!

Acusam os revolucionários de idealizar a classe trabalhadora, atribuindo-lhe uma consciência que supostamente já não mais se manifesta em suas ações e anseios. Porém, nos perguntamos: podemos considerar o voto de trabalhadores em Trump como manifestação de algo que indica uma consciência autêntica da classe? Seria essa “nova vontade”, uma expressão do interesse dos trabalhadores na defesa da violência, racismo e xenofobia? Querem os trabalhadores ampliar infinitamente e ansiosamente os exércitos industriais de reserva e serem acolhidos pelas modalidades flexíveis de trabalho? Querem atacar outros povos, invadir nações e explorar os recursos naturais e riquezas em benefício de sua pátria? Lembremos que na autoproclamada “nação da liberdade e da democracia”, a imprensa e os meios de comunicação, a vida partidária oficial e as estruturas administrativas do Estado estão restritas às classes dominantes e distantes da vida da população. São esses grupos que apitam o jogo, escrevem as regras, definem as pautas do dia e escolhem os vencedores — e não os assalariados, precarizados e excluídos.

Enquanto a realidade falseada propagada pelos meios de comunicação burgueses apontam para o fortalecimento do discurso de que “a classe trabalhadora aderiu ideologicamente à Trump”, contradizemos:

1) mesmo tendo ganhado no eufemístico “voto popular”, Trump manteve sua margem de votos das últimas duas eleições (62 milhões em 2016, 74 milhões em 2020 e 73 milhões em 2024), enquanto Kamala viu o voto nos Democratas cair drasticamente se comparado aos últimos anos (65 milhões em 2016, 81 milhões em 2020 e 70 milhões em 2024) — ou seja, não há “adesão” propriamente dita, o que há é uma manutenção da influência de Trump em seus rincões habituais e o enfraquecimento de Kamala em regiões tradicionalmente vinculadas aos Democratas;

2) as eleições americanas seguem provando seu caráter essencialmente antidemocrático e elitista — afinal, o que justifica a manutenção de sua realização na maldita primeira terça-feira de novembro, logo após a primeira segunda-feira do mês? Simples preciosismo, associado à uma dose cavalar de tradição institucional excludente e racista, que marca de maneira determinante a vida política americana até hoje. Não há amparo jurídico ou fundamento legislativo que garanta uma efetiva participação daqueles que não podem se dar ao luxo de assumir uma falta no trabalho para participar dessa magnífica “festa da democracia” — que convida o trabalhador, mas que também faz questão de mostrar que não quer que ele compareça. Vale mais garantir a sobrevivência e evitar uma demissão do emprego ou participar de um pleito de um Estado que pouco se importa com a participação de seus cidadãos? A resposta não é difícil para nós — para o trabalhador americano também não é.

Espanta o fato de que muitos dos que estão veiculando essa ideia de “classe trabalhadora aderiu à Trump” são os mesmos que há decadas declararam a abolição do trabalhador e a invocação dessa nova entidade — o “colaborador”, que não se antagoniza com o patrão e que abraça o capital. Quando lhes interessa, a burguesia e seu contingente de servos agem como os necromantes das histórias fantásticas: exumam, ressuscitam e torturam cada vez mais esse cadáver, das maneiras mais odiosas possíveis, para legitimar, e mais uma vez provar superior, sua sociedade de ilusões — ainda que tudo ao seu redor demonstre o contrário.

Ao fim, o sentido é um: o retorno do golpista à Casa Branca é a demonstração nítida e cabal de que a democracia burguesa e as instituições do Estado burguês nada mais são que uma farsa, cujas regras são aplicadas ao sabor do momento — leia-se: à vontade do capital — e cujo fundamento segue uma única e essencial regra: a de que é necessário manter o modo de produção capitalista vivo custe o que custar.

Os atores políticos da impresa e da intelectualidade burguesa, ao querer implantar a visão de que os trabalhadores são responsáveis pelo retorno de Trump ao poder (e não os bilionários e milionários que o financiaram e a justiça que foi complacente com seus atos), antecipam-se os próximos movimentos no tabuleiro pelo lado do partido burguês. Sabem que a chegada de Trump apresenta altos fatores de risco à economia política americana e ao seu engodo democrático. Portanto, já preparam o “boi de piranha” que se responsabilizará — tanto agora, quanto depois — por tal vitória: a sempre subestimada classe trabalhadora; supostamente incapaz de agir por conta própria e que, portanto, é sempre suscetível aos monstros autoritários, “populistas” e antidemocráticos.  No entanto, quem cria os monstros e lhes dá vida?

           


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 CNN Brasil. Análise: vitória de Trump no voto popular é resposta da classe trabalhadora silenciada. 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/eleicoes-nos-eua-2024/analise-vitoria-de-trump-no-voto-popular-e-resposta-da-classe-trabalhadora-silenciada/. Acesso em: 13 nov. 2024.

CNN Brasil. Senador Bernie Sanders diz que derrota dos democratas não surpreende. 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/eleicoes-nos-eua-2024/senador-bernie-sanders-diz-que-derrota-dos-democratas-nao-surpreende/. Acesso em: 13 nov. 2024.

Charge:

HEBDÔ, Cláudio. Proletários unidos com Trump. Folha de S.Paulo, 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/blogs/claudio-hebdo/2024/11/proletarios-unidos-com-trump.shtml. Acesso em: 13 nov. 2024.

 


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