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  • Notas acerca do problema da organização para o partido revolucionário em nosso tempo

    Igor Dias Domingues de Souza "Barricada na esquina dos Boulevards Voltaire e Richard-Lenoir durante a Comuna de Paris de 1871." foto de Bruno Braquehais. 1871  É de muito que se vem discutindo no Movimento Comunista Internacional a espinhosa questão organizativa da vanguarda revolucionária. Ainda que sob as mais diversas perspectivas, sobre solos históricos dos mais variados, há um consenso acerca da importância dos métodos de organização na execução do trabalho político (ou metapolítico, se seguirmos Chasin em seu Futuro Ausente ) que culmina na necessidade de um organismo capaz de dirigir as atividades da classe rumo à Revolução. Devemos, porém, nos atentar à baixa cientificidade no que podemos chamar de estudos organizacionais partidários. O problema da forma organizativa, em especial, toma cores das mais variadas pela urgência de resposta contemporânea à utilização ótima dos recursos humanos disponíveis numa quadra histórica em que tanto a Revolução não entrou no horizonte e que a classe trabalhadora vem definhando como agente político por falta de perspectivas concretas de vitória. A resolução desta questão encontra, mesmo nos mais (autodeclarados) revolucionários dos partidos políticos, uma tentativa exaustiva de sintetizar em formulas pré-prontas um fazer partidário estéril, que se diz em construção, mas que, a bem da realidade, encontra-se estanque e que muitas vezes se vale do pastiche histórico como saída para problemas de natureza distinta daqueles encontrados por camaradas em outros cenários ou utiliza-se da tentativa e erro com base em pressupostos idealistas ou apriorísticos para definir sua forma organizativa. De qualquer modo, a primazia do real para as organizações revolucionárias parece ter se tornado, nesse aspecto, apenas mais uma palavra de ordem para propagandear seu séquito, pondo de lado a função do partido revolucionário para com a classe trabalhadora. Isso não significa dizer, de forma alguma, que não se deva aprender com a experiência histórica dos tantos camaradas que caíram e daqueles que ainda seguem de pé em nossas fileiras. Muito menos é a afirmação de que não se deva lançar mão de novos meios, operações e estruturas de maneira experimental. No entanto, sem a clareza da concatenação de todos os elementos da organização, não se pode fazer com que ela funcione adequadamente ou mesmo que atue eficazmente na consecução de seus fins desejados. Para além disso, não se deve perder de vista que o fundamento estrutural de uma organização (independentemente de seu tipo) é responder a problemas de seu próprio tempo, posto que se encontra inserida em um tempo-espaço histórico particular. Dessa feita, temos que a forma organizativa correta para o partido revolucionário emana não das vontades formais idealizadas por terceiros, mas da realidade mesma e de suas necessidades e debilidades. O M-26-7 em Cuba não poderia ter e não teve a mesma forma organizativa que o ELN na Bolívia; o Partido Comunista Chinês não manteve a mesma organização durante a Grande Marcha e durante o período da Revolução Cultural; nem mesmo o aclamado Centralismo Democrático de Lenin se manteve estanque quando de sua vigência (compreendendo sua inexistência após o falecimento de Ilitch Ulianov), modificando-se constantemente em sua estrutura, hierarquia, presença ou ausência de liberdade de crítica, maior ou menor democracia interna, níveis de clandestinidade e abertura no recrutamento partidário; como demonstra Lessa em seu Notas sobre o Centralismo Democrático e a Organização que Hoje Necessitamos . Rosa, em seu Greve de Massas, Partido e Sindicatos , ao observar a Revolução Russa de 1905 extrai a lição de que frente aos resultados da greve geral de janeiro –a colheita dos frutos políticos possíveis daquela disputa e repartição da greve unificada em greves menores cujas pautas econômicas imediatas dominavam – a classe trabalhadora inicia um árduo trabalho de organização à revelia das já estruturadas organizações sindicais existentes; um forte combate à burocracia estabelecida por modelos organizacionais apriorísticos, sendo, inclusive, mais adequados ao trabalho fundamentalmente revolucionário para o qual a classe se encontrava preparada no momento. Digo revolucionário no sentido de que desafia a ordem vigente como passo rumo ao socialismo, independente de possuir ele mesmo um caráter socialista. É mister compreender que o Partido compõe o movimento histórico de tomada do poder pelos trabalhadores como vanguarda, mas não como agente da revolução, precisamente por isso que seus métodos organizativos somente podem dar cabo de suas tarefas se estiverem de acordo com as tarefas concretos de sua quadra histórica, se estiverem apenas um passo à frente da classe, para que a teoria venha de fora, mas a consciência imane da própria prática revolucionaria do proletariado. O tempo é mister em demonstrar que a utilização de fórmulas organizativas prévias resulta em um partido estanque, sem vida própria e sem perspectivas concretas, sendo substrato altamente nutritivo para cultivar oportunistas, burocratas e reformistas de todo o tipo – a exemplo do stalinismo  e do eurocomunismo . Por outro lado, também comprova que o Partido Revolucionário independe da forma adotada para a luta, mas do seu alinhamento com as relações políticas e sociais imanentes do processo revolucionário em questão. Que se compreenda, portanto, as lições da História o que tange à organização do Partido Revolucionário; aquele cuja existência não se encontra em siglas determinadas legalmente e que deve se conformar como a efetiva vanguarda revolucionária, a “parte mais avançada da classe”. O Partido em nossos tempos deve lidar seriamente com sua própria administração, analisar criticamente a história organizativa do Movimento Comunista Internacional, aprender com os erros e acertos tirando prova não por um “medidor de leninismo” e seus hífens ou de uma “balança de esquerda” quando a própria esquerda como projeto de emancipação humana feneceu, mas do próprio movimento do real no que tange a perspectiva do trabalho, da atividade partidária concreta em direção à revolução. O Partido Revolucionário deve ser, acima de tudo, uma organização de e para seu próprio tempo!

  • A democracia não é o que parece – ou pelo menos não é uma questão de vontade

    Foto de Ricardo Stuckert/ Instituto Lula, 2018 Ligia Cerqueira Fernandes Igor Dias Domingues de Souza   A “democracia” absurdista   Assistimos nos últimos anos o descontentamento legítimo com o decréscimo da qualidade de vida ser capitalizado pela extrema-direita sob a máscara da radicalidade, apresentando-a como uma suposta solução dos problemas de nosso tempo aos olhos de parte considerável da classe trabalhadora. Viciada no fracassado projeto de conciliação de classes como saída política para sanar os problemas cotidianos da população, o amplo campo que convencionou-se chamar de esquerda parece não ter a menor ideia ou mesmo interesse de fazer frente à oposição reacionária, apoiando-se numa defesa irrestrita da democracia ao invés de apresentar propostas dirigidas à insatisfação generalizada, para disputar à altura a consciência dos trabalhadores, demonstrando na prática seu compromisso e pertencimento à classe. A democracia, entretanto, não é mais que uma ditadura da classe  burguesa [i] , ao menos não essa “democracia pura” que foi defendida por Kautsky na década de 1910 e que hoje parece ser o consenso hegemônico da esquerda no que diz respeito aos seus horizontes de expectativa. Democracia essa que permite que um presidente advindo das classes trabalhadoras e por elas eleito escamoteie a luta histórica das massas  para rezar o credo do mercado e enganar o povo com a ilusão de “liberdade e igualdade”, ironicamente repetindo a desonestidade observada por Lenin nos opositores da revolução soviética [ii] . No contexto da guerra civil russa de 1917-1922 (segundo Lenin [iii] ), os “democratas” diziam que os bolcheviques haviam prometido a paz, mas que haviam entregado a guerra ao realizar a revolução, falseando a conhecida realidade de que aquela guerra estava sendo imposta pelas potências imperialistas ao povo russo e seus interesses, sendo necessário dar cabo dela para efetivamente alcançar a paz, em contraste com a guerra imperialista da qual a revolução socialista tinha se empenhado em retirar a Rússia. Da mesma forma, alegavam que os bolcheviques haviam prometido a democracia e entregado a ditadura, sabendo, sobremaneira, que os sovietes deram aos trabalhadores russos uma efetiva democracia participativa nunca antes vista na Rússia. Isso porque a democracia é, em última instância, uma ditadura de classe e aqui não falamos apenas da democracia burguesa, como bem demonstra, novamente, Lenin [iv] . Os defensores da “democracia pura” são perfeitos democratas desde que os interesses do capital sejam preservados; esse é o sentido da democracia em abstrato, a democracia burguesa. No momento em que os trabalhadores ousam pôr em prática uma democracia mais efetiva e exercer o tal “poder do povo”, ou mesmo dar cabo de seus interesses sob o peso do regime burguês, tornam-se “antidemocráticos”, “violentos”, “traidores”, enfim, párias na própria sociedade que sustentam com sua força de trabalho. Nesse sentido, o progressismo abandonou internacionalmente a perspectiva do trabalho, como bem aponta Chasin . A democracia efetiva das massas sumiu do vocabulário político dos partidos da esquerda institucionalizada, “democracia” e “cidadania” entraram em seu lugar. Não estamos aqui falando que as liberdades democráticas não possuam nenhum valor, muito pelo contrário: é o melhor que podemos obter para garantir as condições de vida para nossa classe sob o domínio do capital (não esqueçamos a sanguinária ditadura empresarial-militar que assolou nosso país de 1964 a 1985). Entretanto, o custo do democratismo para o amplo campo da esquerda foi o de tornar-se impotente frente às insatisfações populares na última quadra histórica. Em contraste, é a extrema-direita que vem hegemonizando as respostas às insatisfações crescentes, tendo como exemplo a vitória do Partido Burguês com a recente eleição de Trump nos EUA . Ainda mais, é ela que tem pautado o debate público, fazendo com que o campo chamado de esquerda institucional recue incansavelmente. A exceção tem ocorrido justamente nos embates diretos entre capital e trabalho, como no caso da pauta do fim da escala 6x1 no Brasil  e nas recentes greves dos trabalhadores da Amazon  e dos estivadores  nos Estados Unidos (estes últimos realizando sua maior greve em 50 anos ), que foram abandonados em larga medida pela maioria do “progressismo”, tendo, no caso brasileiro, sua expressão no governismo cego em que a crítica se torna declaração de inimizade. É a extrema-direita, portanto, que está conseguindo dialogar com o radical-absurdismo desses tempos, mascarando a precariedade das relações de trabalho, a insuficiência dos salários, as condições degradantes de vida (acesso à saúde, à alimentação de qualidade, ao lazer) e, não menos importante e crucial, as consequências da crise climática. Respondem satisfatoriamente às ilusões tão absurdas quanto a realidade que as gesta, em que a descarada saudação nazista realizada pelo bilionário Elon Musk na posse de Donald Trump na última segunda-feira  é saudada com o benefício da dúvida por parte de alguns historiadores, mídia hegemônica  e Liga Antidifamação (ADL) – que desde 1913 luta contra o antissemitismo – ao mesmo tempo em que o maluco do foguete seguirá do Sieg Heil para o comando do Departamento de Eficiência Governamental no centro do império. A saída tem sido colocar a responsabilidade da queda da taxa de lucros (muito embora a massa dos lucros nunca tenha estado tão alta) sob a responsabilidade do indivíduo, convencendo-o ideologicamente de que ele tem a capacidade, a liberdade e o dever de sozinho alcançar melhores condições de existência; sem se dar conta que eleva, em verdade, os patamares de acumulação de bilionários como Musk & cia., os patrocinadores, e agora figuras públicas declaradas, da extrema-direita internacional. O banquete da deterioração ideológica é completo, servindo entrada, prato principal e sobremesa. O menu de alternativas é variado, mas, em verdade, resume-se a poucas propostas concretas apresentadas em diferentes roupagens. Oferece-se como acesso ao lazer a vida de influencers , um lifestyle que possa ser mostrado nas redes sociais, uma viagem a Balneário Camboriú, Orlando ou Dubai. Como melhora da condição de vida, faz-se apologia à falsa liberdade de jogar no Tigrinho e nas Bets  – pandemia que afeta profundamente o Brasil  – ou de vender fotos no Onlyfans . Poderíamos aqui ficar horas debatendo extensamente o quão mesquinhas, sofridas, absurdas e degradantes são as soluções apresentadas para os trabalhadores, mas este não é o ponto mais relevante na presente discussão. O ponto central é que tais soluções, ainda que bizarras e grotescas, não só são tornadas convincentes como ainda dão conta de esconder os interesses mais espúrios por trás do remédio prescrito, um verdadeiro placebo, doce no início e amargo no final. Nos Estados Unidos, Donald Trump se fez parecer para muitos uma opção viável e conquistou a estranha eleição americana seduzindo o voto popular, enquanto leva a cabo uma agenda econômica que aprofunda a crise climática (basta ver os incêndios na Califórnia), com incentivos à indústria do carvão mineral e do petróleo aprofundam o extrativismo americano , e propaga uma política internacional de terror e xenofobia, com a assinatura de decreto que colocaria fim à cidadania estadunidense como direito de nascença , o retorno de Cuba para a lista americana de “Estados terroristas”  ( conquista histórica alcançada somente no dia 14 deste mesmo mês ) e com a suspensão das sansões contra colonos israelitas na Cisjordânia  (tomando postura mais incisiva ao lado de Israel no genocídio palestino). Seguindo a agenda da extrema-direita global, no Brasil, Nikolas Ferreira confunde propositadamente a população com estratégias de comunicação de massas – ora por meio de cortinas de fumaça, mascarando seus reais interesses políticos, ora jogando luz sobre contradições e problemas do governo para fazer-se de bom moço – como no recente vídeo publicado em suas redes sociais  sobre a questão da ampliação do monitoramento do PIX. Ao atacar tal medida, proposta nas novas regras de fiscalização da Receita Federal , ele articula os limites políticos do (há muito capitulado) governo Lula, construindo uma falsa noção de que, diferente do governo petista, ele estaria ao lado dos trabalhadores informais e dos pequenos negócios. Aproveita-se da falta de tato governista que só fez perturbar a população com um anúncio desleixado, não se esforçando nem ao menos para explicar o alvo da medida e suas possíveis consequências. Esse projeto de Bolsonaro pouco se preocupa com soluções efetivamente transformadoras das condições da classe trabalhadora, ao menos é o que demonstra seu histórico recente de votos e declarações na Câmara dos Deputados, onde esteve contra a proposta de imposto zero para alimentos da cesta básica e se posicionou contra o fim da escala 6x1 , e se empenha em uma agenda de fundamentalismo religioso agressivo e truculento que quase sempre tem a comunidade LGBTQIA+ (especialmente as pessoas transexuais) na mira da violência. Sua estratégia é efetiva, inclusive garantindo rapidamente o recuo do governo com relação à uma norma técnica de fiscalização das movimentações financeiras , e o deixando tranquilo para zarpar para os Estados Unidos com a comitiva da oposição reacionária  no intuito de dar cabo a uma agenda política, comicamente frustrada .   O preço do Pix para a “democracia pura”   O que a polêmica da suposta taxação do PIX escancara é, justamente, a incapacidade do governo Lula de dar conta das condições reais de deterioração da vida da classe trabalhadora e combater decisivamente o irracionalismo que assola a política brasileira (e já nos conduziu ao Governo de Bolsonaro) – ao ponto de levar rasteira justamente de falsários como Nikolas Ferreira a despeito do apoio que que recebeu de setores da classe para derrotar eleitoralmente o bolsonarismo. Sabemos que a Instrução Normativa revogada, no fim, pelo Governo, não planejava, a princípio, taxar as transações ocorridas em bancos digitais. É sabido também que algo bem semelhante a uma notificação, por parte de bancos tradicionais, acerca da ocorrência de transações (nesse caso, de transferências e gastos de cartão de crédito) já era feita antes. Entretanto, essas condições tornam-se quase que discussões meramente formais, uma vez que ainda que a Instrução Normativa visasse o aprimoramento do monitoramento das movimentações financeiras para captar supostas sonegações fiscais, a tentativa de empenhar-se em fiscalizar possíveis evasões fiscais de uma faixa de renda que movimenta essa quantia é, em si, uma escolha política materializada, devendo ser essa escolha o objeto principal de análise na querela do PIX. Em outros termos, é possível que houvesse um acréscimo da receita (talvez advindo da captura de crimes fiscais  e muito provavelmente das mais de 200 instituições financeiras, especialmente fintechs , que seguem sem a obrigação de declarar suas transações ), mas essa medida teria um custo político e aqui está o ponto: como o Governo Lula escolheria colher o custo político de uma medida que influencia uma parcela da população que pouco tem a ver com as reais condições de exploração da vida humana? E se compra esse desgaste, como não compra o desgaste de conscientizar acerca da farsa do equilíbrio fiscal? Se o aumento da receita serve como base para o aprimoramento de políticas públicas, como essas políticas públicas dariam conta de melhorar as condições reais das pessoas se a regra fiscal (ou Arcabouço Fiscal) elaborado pelo executivo é incompatível, por exemplo, com pisos constitucionais destinados para Saúde e Educação? Indo além, a questão mostra como é plenamente possível que o governo volte atrás em suas medidas caso seja do seu interesse. Como pode então recuar na questão do PIX e não em diversas outras medidas de caráter negativo, como não recuou em sua proposta de exploração de petróleo na Foz do Amazonas mesmo após o Ibama ter rejeitado o projeto em outubro do ano passado por não apresentar alternativa viável para mitigar a perda de biodiversidade no caso de algum acidente , numa postura similar à de Trump e seu incentivo à indústria extrativista que contrasta com sua posição de liderança na COP-30, a ser realizada em Belém no mês de novembro ? Assim, o problema não é de ordem de comunicação governamental ou moral, como se a discussão fosse somente sobre como e porque as pessoas seriam “atraídas para a mentira”, como os maravilhados democratas de esquerda tendem a se questionar diariamente – quase como um recriar do discurso de que o que embasava a eleição de Bolsonaro era um ressentimento ou, em termos quase que psicanalíticos, uma pulsão de morte coletiva. Nos últimos anos vimos justificativas psicologizantes aos montes para explicar a razão do Bolsonarismo ter a capilaridade que tem, entretanto, como disse em março passado o filósofo e psicanalista Vladimir Safatle : a questão é mais real que o ressentimento . O debate público sobre a “questão PIX” ainda teve a participação daqueles que são “somente liberais”, os que não são propriamente o Nikolas Ferreira e que tamparam o nariz para surfarem na onda de Bolsonaro. Esses, por sua vez, dizem que o governo petista só faz pensar em arrecadar – criticam a tentativa de financiar políticas públicas que possuem seus méritos de atenuar, minimamente, as condições degradantes a que muitos brasileiros são expostos, como o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida. Para esse grupo, pouca diferença faz se o asfixiamento do SUS ocorra caso o arcabouço fiscal condene à míngua essa que é uma das poucas conquistas históricas no Brasil que se mantém de pé – afinal de contas, eles são pagos por meios de comunicação que lucram com as verbas publicitárias de grandes planos de saúde. Aqui está a quase ironia do destino: se Haddad rezou a cartilha do mercado [v] e ainda assim foi jogado aos leões, qual o sentido político de bancar o bom moço aos olhos da Faria Lima? Não adianta Lula bradar aos quatro ventos que é o mais democrata da turma, isto é, mais democrata em relação  a Bolsonaro. Isso pode até ter rendido a ele uma vitória eleitoral em 2022, mas não será suficiente contra o abandono de sua base política em benefício da democracia como valor universal, ou da unidade como valor estratégico como disse Coutinho . Ironicamente, quanto mais caminha para obedecer a sanha dos sanguessugas burocratas no santuário do Deus Mercado, mais perto fica da desaprovação que atingiu Bolsonaro no peito e premiou o próprio Lula com uma volta à presidência. O Fortuna! Não há nada pior para a esquerda que “falhar” aos olhos da classe trabalhadora. O governo Lula III tem sido fiel escudeiro do limitado horizonte democrático desta esquerda institucional cadavérica, pondo de lado os interesses concretos dos trabalhadores em prol da governabilidade, da mediação com o capital, e mascarando as derrotas com a ilusão de “igualdade e liberdade” democráticas. Dessa sequência de derrotas e recuos, concomitantes ao fortalecimento da extrema-direita potencializado por essa democracia e por essa esquerda bunda mole, não é possível prever quando a classe se recuperará ideológica e organizativamente. Essa “democracia pura” que abarca tanto Lula quanto Trump é uma ilusão formalista defendida acriticamente para a manutenção das instituições, como se pairasse no reino da politicidade e fizesse menção somente à segurança de ritos político-jurídicos burocráticos, sem sequer abarcar as condições efetivas de participação popular no suposto regime do poder do povo. Como Lula provará que é democrata para além de manifestar sua vontade de sê-lo se está empenhado em demolir as poucas conquistas alcançadas nos últimos anos? Lula pode querer ser democrata – e no seu conceito aburguesado de democracia, ou em comparação ao absurdo que foram os anos de governo Bolsonaro e às perspectivas terríveis que se aproximam, talvez realmente seja – mas, mais uma vez, a realidade parece exigir muito mais de sua prática política do que está disposto a se comprometer pela classe trabalhadora. Sua classe de origem necessita de uma efetiva e verdadeira democracia e não da panaceia pequeno-burguesa que o amplo campo progressista tem colocado à frente da perspectiva do trabalho em sua atuação política. Frente aos dilemas, a única solução possível parece ser responder à altura das condições degradantes colocadas, já que a verdadeira democracia reside precisamente na ação das massas populares expressando seus próprios desejos cada vez mais vigorosamente e com maior convicção. A democracia, como já apontamos, é uma ditadura de classe; a verdadeira  democracia também e se expressa na governança concreta das massas: é o socialismo, é a ditadura do proletariado. [i] Para uma boa tradução em português, ver: LENIN, V. I. Sobre a “Democracia” e a Ditadura. In : Democracia e Luta de Classes : textos escolhidos. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 19-24. [ii] LENIN, V. I. Como enganar o povo com as palavras de ordem da Igualdade e da Liberdade. In : Democracia e Luta de Classes : textos escolhidos. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 25-62. [iii] Como enganar o povo com as palavras de ordem da Igualdade e da Liberdade. Op. Cit. [iv] Sobre a “Democracia” e a Ditadura. Op. Cit. [v]  Chamam atenção os recentes ataques ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), ao seguro-desemprego, ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), ao abono salarial, e à política de valorização do salário mínimo.

  • Festa da abolição da escravatura - Roberto Arlt

    Tradução: João Paulo Veloso Matos Roberto Arlt foi um escritor argentino vinculado às vanguardas hispano-americanas. Filho de imigrantes pobres, cresceu em uma Buenos Aires marcada pela intensa imigração e pela transformação urbana. Considerado um precursor do existencialismo e figura importante do teatro argentino [1], Arlt publicou romances, novelas, contos, crônicas e peças de teatro. Suas obras mais conhecidas, Os Sete Loucos (Los Siete Locos) e O Brinquedo Raivoso (El juguete rabioso), se destacam pelo uso do grotesco e pela abordagem de temas como humilhação, marginalidade, infâmia, traição e a vida nas cidades modernas e na sociedade burguesa As Aguafuertes Cariocas são uma série de crônicas que Arlt publicou em jornais argentinos, nas quais ele tece uma visão crítica e irônica da sociedade e do cotidiano urbano brasileiro. Em "Festa da Abolição da Escravatura" (Fiesta de la abolición de la esclavitud), Arlt, com sua perspectiva de estrangeiro, explora os contrastes sociais no Brasil e a permanência das marcas do passado escravista no Rio de Janeiro da década de 1930. Essa crônica, escrita de um ponto de vista estrangeiro, evidencia, por meio do contraste, como a história da escravidão no Brasil é banalizada. Numa perspectiva histórica, a abolição da escravatura ocorreu "ontem". O país viveu a maior parte de sua história desde a colonização sob um regime escravocrata, que durou cerca de 400 anos. Na década de 1930, a história do trabalho livre ainda era algo recente, e o Brasil permanecia permeado por relações sociais herdadas do escravismo, assim como ainda ocorre nos dias de hoje. Isso tudo está profundamente enraizado na formação da sociedade brasileira. A violência extrema era vista apenas como forma de manter a ordem, e os matizes, como diz a crônica, nos fazem ver como os maltratos da dominação do escravizado eram o mínimo a se esperar do trabalho de um capataz. Está tudo tão entranhado nessa sociedade, que o anormal, o que é considerado castigo, é agir além da frieza do ofício de capataz. Com um estilo de escrita seco, Arlt retrata uma sociedade que não resolveu os problemas gerados pelo escravismo, se recusa a criticá-los e naturaliza tais problemas através da indiferença ou até mesmo da justificativa reacionária. *** (Quarta-feira, 13 de maio de 1930)   Almocei na companhia do senhor catalão a quem não nomearei por razões que vocês podem imaginar. Me disse:  — O 13 de maio é festa nacional...  — Ah! É mesmo? E continuei colocando azeite na salada.  — Festa da abolição da escravatura.  — Entendi.  E como o assunto não me interessava muito, agora eu dedicava a minha atenção a medir a quantidade de vinagre que punha nas folhas.  — Semana que vem, faz quarenta e dois anos que a escravidão foi abolida.  Dei um pulo tão grande da cadeira, que metade da garrafa de vinagre foi parar na salada.  — Como é? — respondi espantado.  — Sim, quarenta e dois anos, sob a regência de Dona  Isabel de Bragança, aconselhada por Benjamin Constant. Dona Isabel era filha de Dom Pedro II.  —Quarenta e dois anos? Não é possível!  — 13 de maio de 1888 menos 1930: 42 anos... — Ou seja...  — Que qualquer negro de cinquenta anos que você encontrar hoje pelas ruas foi escravo até os 8 anos de idade; o negro de 60 anos, escravo até os 18.  — Então: essas mulheres negras velhas?  — Foram escravas...  — Mas não é possível! Você deve estar equivocado. Não seria o ano de 1788... Veja: eu acho que está equivocado. Não é possível.  — Rapaz, se não acredita em mim, olha por aí.    Na associação.   Assim que terminei de almoçar, me dirigi à associação e perguntei no balcão aos meninos:  — Qual é o feriado de 13 de maio?  — Abolição da escravidão.  — Quando isso aconteceu?  — Em 13 de maio de 1888.  — 1888... 1888... 1930... menos 1888... não tem discussão! 42 anos. Mas não é possível... 1888...  — Amigo — disse alguém com toda naturalidade — meu pai foi capataz de escravos.  Eu fiquei gelado e pálido.  — Se precisa de fatos...  Olho para esse homem como olharia para o filho de um carrasco da prisão de Sing-Sing; logo, me controlando rapidamente, pego em seu braço e digo:  — Venha aqui: preciso falar com você. Por qual preço se vendia um escravo?  — Vejamos... variavam muito os preços, dependia das localidades, estado físico e aptidões do escravo. Em São Paulo, por exemplo, um escravo custava dois contos de reis, ou seja, seiscentos pesos argentinos; em Minas, o mesmo escravo constava de 5 a 6 contos de reis. Um escravo estropiado pelos castigos, 200 pesos argentinos... mas não é possível fixar uma tarifa exata porque o escravo não era vendido individualmente. Por exemplo: você precisava de dinheiro, juntava os seus escravos e os levava ao mercado. Leia o senhor a "A escrava Isaura" de Alencar, um romancista brasileiro que retratou bem a escravidão. Então. Como eu lhe dizia, levavam o escravo ao mercado e o vendiam a quem fizesse o melhor lance.  Aqui, no Rio de Janeiro, o mercado de escravos ficava na rua Primeiro de Março, em frente à drogaria de Granado.  Eu ouço como se estivesse sonhando.  — E é verdade que os castigavam?  — Sim, quando não obedeciam, com um chicote. Ora, havia fazendas onde maltratavam o escravo, mas eram poucas.  ("Castigar com chicote" e "maltratar" é uma coisa muito distinta, quer dizer, que dar vinte ou trinta chibatadas num escravo não era maltratá-lo, mas castigá-lo").    Os matizes. À noite me encontro com o senhor catalão e digo para ele:  — É verdade que castigar é uma coisa e maltratar é outra?  — Claro, homem de Deus! Castigar... quer dizer, o açoite era de uso corrente em todas as fazendas para manter a ordem mais fundamental. Maltratar um escravo era, por sua vez, trocar o uso da chibata pelo de instrumentos pontiagudos, cortantes... rasgar os braços com golpes, perfurá-lo... como o senhor se dá conta, é simplesmente uma questão de matizes.  — Sim... entendi... de matizes... e os patrões?  — Os patrões?... Devia ser muito selvagem quem se incumbia de um escravo. Pra que? Se pra isso tinham feitores. O feitor era o capataz responsável pelos escravos, geralmente também escravo, mas que era liberado dos trabalhos brutais para fazer seus companheiros trabalharem e castigá-los. Esse escravo era o terror dos outros. Cumpria a ordem do senhor ao pé da letra. Se lhe ordenavam dar cinquenta chibatadas a um escravo e este morria na chibatada número trinta e nove, o outro dava as onze restantes... uma questão de princípios, amigo. A obediência absoluta.  — Quer dizer que esses brancos velhos, de aspecto respeitável, que a gente encontra em carros particulares...  — Foram senhores de escravos. Leia o que escreveram Alencar e Ruy Barbosa...  — Mas eu fui nas livrarias e me disseram que não existia livros sobre a escravidão.  — É normal. Deixa que eu consigo pra você... mas faça isso: vá a algum porto e converse com algum negro velho, desses que você viu arrumando as redes...  — Essas mulheres negras velhas, tão simpáticas, as pobres?  — Também foram escravas... mas vá e converse...    Não me decido.   E ainda não resolvi falar com um ex-escravo. Não sei. Me dá uma sensação de terror entrar no "País do Medo e do Castigo". O que me contaram me parecem histórias de romances... prefiro acreditar que o que escreveu Alencar, tremendo de indignação, é uma história acontecida num país de fantasia. Acho que é melhor. [1] Castagnino, R. H. (1964). El teatro de Roberto Arlt. Monografías y tesis, VI. pp.7-11

  • Engels a Marx - 13 de abril de 1866

    Tradução: Pedro Sodré    As correspondências trocadas entre Marx e Engels são parte fundamental do entendimento da tradição marxiana e marxista. Através delas percebemos o levantamento das questões principais em cada circunstância, o desenvolvimento das polêmicas e o polimento das visões que são expressas publicamente em seus textos clássicos. Não é absurdo dizer que um estudo sistemático das cartas de Marx e Engels e sua publicação em língua portuguesa figuram entre os desafios em aberto para o partido revolucionário no Brasil. Podemos ir ainda mais longe, sem atravessar a fronteira da fantasia, e afirmar que esse desafio em particular é um dos passos fundamentais para o amadurecimento do nosso movimento, uma vez que as cartas demonstram aspectos essenciais da forma de abordagem de Marx e Engels acerca da atuação e amadurecimento da política desenvolvida dentro dos organismos políticos do proletariado. A carta de Engels que o leitor terá contato abaixo foi escrita em um contexto bastante interessante. Engels, que ainda vivia em Manchester, insistiu para que Marx tirasse um tempo de férias para se recuperar da crise de carbúnculos mais violenta que o velho Mouro havia enfrentado até então. A escolha do Mouro foi Margate, no litoral sudeste da Inglaterra. O ano de 1865 havia sido intenso para Marx, tanto do ponto de vista político quando do ponto de vista intelectual. Marx trabalhou intensamente na redação final do primeiro volume de seu Capital, ao mesmo tempo que dividia sua atenção e esforço nos trabalhos internos da recém-fundada Associação Internacional dos Trabalhadores. A conta veio na virada de 1865 para 1866, com carbúnculos que prejudicaram seus trabalhos políticos e intelectuais por mais de 5 meses, já que impediam Marx de ficar sentado por muito tempo, atrapalhavam suas noites de sono e lhe causavam dores lancinantes ao caminhar. Do ponto de vista político, a correspondência em questão expressa a maneira como Engels percebia o movimento do tabuleiro das lutas de classes na Europa dos anos 1860. O tema fundamental da missiva engelsiana foi a atuação de Otto von Bismarck no cenário europeu naquele momento. O olhar atento de Engels acompanhou as ações de Bismarck na montagem da futura Guerra Austro-Prussiana, da Guerra Franco-Prussiana e da eventual unificação dos reinos germânicos e do povo alemão sob a hegemonia da coroa da Prússia. Além do mais, percebeu o papel que a pressão do Império Russo exercia nesse contexto, com a complacência dos já estáveis e avarentos ingleses. O curto parágrafo da correspondência de Engels em que a questão do bonapartismo é tratada mostra que a luta de classes nunca figurou de maneira simplória aos olhos do General. Engels sabia que a luta de classes não era travada apenas entre as duas classes fundamentais da sociedade capitalista — a burguesia e o proletariado. A percepção engelsiana era mais sofisticada e atenta do que isso. Como notório conhecedor das ciências militares, Engels compreendia que o confronto entre as classes se assemelhava à mecânica do confronto entre dois grandes exércitos posicionados em um campo de batalha. Suas dinâmicas próprias extrapolavam o mero confronto bélico direto, com os acontecimentos desenvolvidos atrás das linhas de vanguarda influenciando diretamente a evolução no teatro de batalha principal. Os acordos, alianças, traições e golpes que ocorrem nesse cenário e alteram as lideranças dos exércitos do capital refletem a realidade complexa dos confrontos intraclassistas que incidem sobre as dinâmicas de acúmulo e reprodução do capital e interferem nas táticas desenvolvidas pelo partido revolucionário em cada momento e circunstância. Compreender o sentido da concepção de bonapartismo mobilizado por Engels e por Marx perpassa por refletir sobre esse sistema de relações. A validade de sua aplicação ao contexto das lutas de classes contemporâneas no Brasil e no restante do mundo é uma questão em aberto, assim como o reflexo e implicações dessa compreensão para o desenvolvimento das táticas do proletariado atuante na luta de classes. Assim, não seria o retorno do bufão Trump à Casa Branca, a tentativa de autogolpe na Coreia do Sul e os desdobramentos das investigações sobre o 8 de janeiro no Brasil um conjunto de elementos que nos fazem considerar a validade da afirmação de Engels de que “o bonapartismo realmente é a verdadeira religião da burguesia moderna” ?   ENGELS A MARX Em Margate   [Manchester], 13 de abril de 1866   Caro Mouro,   [...] Então, Bismarck executou seu golpe do sufrágio universal [1], mesmo que ainda sem Lassalle. Parece que, após alguma demonstração de relutância, a burguesia alemã irá acompanhá-lo, pois o bonapartismo realmente é a verdadeira religião da burguesia moderna. Está se tornando cada vez mais claro para mim que a burguesia não possui as qualidades necessárias para governar diretamente, e que portanto, a menos que haja uma oligarquia como aqui na Inglaterra capaz de assumir, por um bom salário, a gestão do Estado e da sociedade no interesse da burguesia, uma semiditadura bonapartista é a forma normal; ela promove os grandes interesses materiais da burguesia mesmo contra a burguesia, mas não lhe permite nenhuma participação no próprio governo. Por outro lado, essa ditadura em si é, por sua vez, compelida a adotar, contra sua vontade, esses interesses materiais da burguesia. Então, agora temos Monsieur Bismarck adotando o programa da Associação Nacional [2]. Sua execução é reconhecidamente outra questão, mas Bismarck dificilmente será impedido pela burguesia alemã. Um alemão, que acaba de retornar de lá, relata que já encontrou muitos que morderam a isca; de acordo com a Reuter , a população de Karlsruhe aprovou o assunto, e o constrangimento ilimitado do Kölnische Zeitung  [Gazeta de Colônia] sobre o caso é uma indicação clara de uma mudança de curso iminente. Que Bismarck tem acordos diretos com os russos, entretanto, é mais uma vez provado primeiramente pelo fato de que não apenas o The Times , mas também a Reuter , está começando a mentir em nome da Prússia, em completo contraste com seu costume atual. Há um método nas traduções erradas com as quais os telegramas estão agora mais infestados do que nunca. Até pouco tempo atrás, contra a Prússia. Agora contra a Áustria. Reuter telegrafa: “A Áustria só seguiria o plano se todas as províncias austríacas (isto é, incluindo as não alemãs) estivessem representadas”. No original alemão, apenas diz: condicional às regiões da Áustria serem representadas também. — Além disso: de acordo com o Bromberger Zeitung  [Gazeta de Bromberger] e o Ostsee-Zeitung [Gazeta do Mar Báltico] (este último um órgão russo), os russos continuam a reunir mais tropas nas províncias do sudoeste, do Reino da Polônia [3] ao Prut, fazendo isso muito lentamente e discretamente; os soldados estão todos esperando mover-se com a Prússia contra a Áustria, e aqueles no Warta repetem que seu papel é ocupar Posen para que os prussianos de lá possam marchar para longe. Os russos podem, incidentalmente, deixar Scheleswig-Holstein para os prussianos por enquanto, já que a Paz de Viena [4] e a anexação, afinal, salvaram a questão principal para eles: o Tratado de Londres e, portanto, a sucessão na Dinamarca. Se eles têm o Sound, o que Kiel significa para eles? Em todo o caso, seu melhor caminho é ficar em Margate até que você não sinta mais nada na parte afetada e esteja em geral convencido de uma mudança acentuada para melhor.                 Escreva logo.                 Seu, F. E.   [1] Em 9 de abril de 1866, o governo prussiano apresentou à Dieta Federal uma proposta de que um parlamento totalmente alemão fosse convocado por sufrágio universal para decidir a questão da reforma da Confederação Germânica. [2] A Associação Nacional ( Deutscher National-Verein ) era um partido da burguesia liberal alemã que defendia a unificação da Alemanha (sem a Áustria) em um estado centralizado sob a supremacia da monarquia prussiana. Sua reunião inaugural foi realizada em Frankfurt am Main em setembro de 1859. A Associação Nacional foi dissolvida em 1867, após a Guerra Austro-Prussiana de 1866 e o estabelecimento da Confederação da Alemanha do Norte. [3] O Reino da Polônia — o território polonês anexado ao Império Russo em concordância com a decisão do Congresso de Viena de 1815. [4] O Tratado de Viena, que concluiu a guerra de 1864 travada pela Prússia e Áustria contra a Dinamarca, confirmou uma série de tratados e convenções anteriores sobre a Dinamarca, Schleswig e Holstein, em particular as cláusulas do Protocolo de Londres de maio de 1852 sobre a sucessão dinamarquesa. No Protocolo, o Imperador da Rússia foi nomeado como um dos requerentes legais ao trono dinamarquês (sendo descendente de Charles Peter Ulrich, Duque de Holstein-Gottrop, que reinou na Rússia como Pedro III). Os requerentes renunciaram a seus direitos em favor do Duque Christian de Glücksburg, que foi nomeado herdeiro do Rei Frederico VII. Isso criou um precedente para as reivindicações do imperador russo ao trono dinamarquês no caso de extinção da dinastia Glücksburg. Download do arquivo com escrito original:

  • Cinismo e memória: O democrata Luiz Inácio.

    Igor Dias Domingues de Souza Rafael Jácome Se antes Lula era conhecido por camuflar ou silenciar o posicionamento de seus governos diante de pontos importantes para a esquerda na conjutura, operando através disso uma política de apaziguamento ao mesmo tempo que recondicionava símbolos históricos da luta proletária no Brasil para a conciliação via Estado, neste terceiro mandato a tática parece ter se alterado. Para aplacar o apetite de um combate efetivo contra os militares, a extrema direita militarista e a centro direita como tentáculos do bolsonarismo, após a pandemia e ao desastre humanitário que foi o governo do quadrupede verde amarelo (Jair Bolsonaro), Lula III parece busca atacar tudo que está a sua esquerda para reafirmar ora um compromisso, ora uma conivência com tudo que está a sua direita. No último dia 08 de janeiro de 2025, ao completarem-se dois anos dos atentados golpistas da extrema direita contra a República Federativa do Brasil, Lula reafirmou sua irrestrita lealdade para com a “democracia” (leia-se “Com supremo, com tudo”) , apontando que levará a cabo a punição de todos os envolvidos na tentativa de golpe (algo que seria bom). Mas cabe lembrar que essa democracia pura, incolor, insípida e inodora e cuja existência se encontra apenas nos sonhos da pequena-burguesia ou na realidade dos ricos possuidores de capital, sacrifica diariamente nossa classe a troco de nada para que uns tantos possam usufruir de um “crescimento econômico” tranquilo às custas das vidas dos trabalhadores, medidas por sua força de trabalho. Exatamente por isso, o senhor, seu presidente, cumpre de forma magnífica seu papel de pajem e vem a público tentar convencer a todos os trabalhadores que essa democracia que nunca foi vista por eles nesses 133 anos de República é substancialmente valiosa porque se tornou presidente do Brasil apesar de sua origem trabalhadora. É nesse sentido que Luiz Inácio, em contrassenso com a experiência histórica altera seu jargão “Nunca antes na história desse país”, ampliando-o para “Nunca antes na história da humanidade” ao atacar as experiências revolucionárias que antes nos dariam alternativas ao reformismo “bunda mole” que o governo Lula III estampa. Isto é nada mais que uma busca por manter sua base eleitoral, que, caso não solucione no governo seu desejo por condenação do bolsonarismo pelas milhares de mortes durante a pandemia (acusação feita pelo próprio Lula na eleição) nem pela punição das cúpulas militares pela tentativa malfadada do 8 de janeiro, tenderá a se fragmentar entre a desilusão e as inúmeras siglas democráticas “radicais” que vemos nascer ou crescer na medida em que o petismo perde folego histórico. Ao mobilizar determinados anseios da classe, estes correm o risco de minguar ou exceder as expectativas e planos dos burocratas. Com isso, nada mais natural que para disputa-los Lula afirma uma suposta ausência da classe nos processos revolucionários por ela conduzidos, em especial nas revoluções cubana e soviética, tomando algumas figuras proeminentes pelo todo dos dirigentes e dos movimentos. Talvez deva ter se esquecido da opressão imperialista sofrida por nossos camaradas cubanos sob o jugo de Fulgencio Batista, fazendo de Cuba o prostíbulo dos Estados Unidos. Tampouco se recorda das condições miseráveis do proletariado russo sob o semifeudalismo czarista. O mais problemático é que nem mesmo se trata de uma base forte, como a de outrora, mas sim de um petismo desarticulado eleitoralmente ou desgastado, quando se trata das parcelas não vacilante. Ao não responder aos anseios da classe, o governo enfraquece sua base orgânica, injetando-a com uma significativa dose de desânimo e esgotando suas cartadas românticas ou suas promessas vazias de um radicalismo democrata que não veio e, consequentemente, perde adesão na sua base eleitoral oscilante. Então, ataques como este às parcelas mais radicais da dita esquerda, tanto de sua base quanto das organizações que orbitam a tragédia eleitoral que se desenha para 2026, somando-se a ações como suspensão dos eventos históricos contra a ditadura , tem um duplo caráter; trair sua base e se mergulhar definitivamente na dinâmica que tornou Lula III cada vez mais refém do grande capital. Mas quem somos nós para questionar o único trabalhador da história humana a chegar no poder, não é mesmo? Ora, Senhor Presidente... Se “as pessoas não imaginavam que os trabalhadores pudessem organizar um partido e chegar à Presidência da República” é porque os próprios trabalhadores em seus processos revolucionários executaram nos processos revolucionários citados, muito mais do que isso. Não quiseram alcançar somente uma presidência na República das Bananas, mas ousaram tanto em Cuba como na Rússia também em tantas outras localidades a exemplo da China, fazer reais suas expectativas de futuro, que não cabem em qualquer número de mandato, e o fizeram não sob a influência de terceiros, mas com a força de seu próprio trabalho. Nesse caso, se Lula não deseja falar das massas, basta que observemos ainda entre o corpo dirigente dos proeminentes revolucionários proletários (de origem e de ocupação), nos processos citados por ele: Camilo Cienfuegos e Joseph Stalin. Há, porém, que estranhar a recusa de reconhecer a autoria histórica das massas. Por acaso o democrata Luiz Inácio não se recorda qual tradição histórica de lutas que deu base a ascensão de sua trajetória política, no combate aos militares no Brasil? Onde estão os trabalhadores da fundação do Partido dos Trabalhadores hoje? Poderíamos então afirmar que este partido foi um arroubo aventureiro de "intelectuais, ativistas, estudantes, pessoas com um pouco mais de grau"? Sabemos que os trabalhadores estavam, em boa parte, em movimento favorável fundação do PT, ainda mais em sequência das greves do ABC dirigidas por ninguém menos que o próprio Lula. Entre o Lula do Velho Testamento (um ser mitológico que só poderia existir na atual miséria política brasileira) e o Lula do Novo Testamento que dá a outra face enquanto os soldados romanos da burguesia brasileira crucificam toda a história da luta de classes mundial, vemos um verdadeiro dilema bíblico digno de Abraão. Mas na bíblia repaginada do petismo Luiz Inácio só se tornará um grande servo do Deus Mercado se tiver coragem suficiente para sacrificar os trabalhadores que apostaram no governo no altar divino do capital. Em suma, elegemos o sacrossanto Lula do Novo Testamento para lidar com o cruel e vingativo Deus do Velho Testamento; demos a ele carta branca para agir como bem quisesse e passamos a respeitar a ira divina em função do medo do inferno bolsonarista, como se não houvesse outra alternativa. De toda feita, a falsa crítica que realiza às revoluções citadas é melhor endereçada ao próprio governo petista, seja pela atual situação política, em que há uma primazia em aplaudir a presença dos chefes das três forças logo após o desacobertamento de mais outra tentativa de golpe, seja pela política conduzida durante todo o governo petista, em consonância às críticas realizadas nos tempos idos de 1981 aos partidos que, se declarando “populares” não respaldam e ainda se opõem às movimentações legítimas e consequentes das massas trabalhadoras, inibindo o movimento operário. Talvez o senhor Lula se encontre por tempo demasiado afastado do chão de fábrica para que não compreenda que o futuro é construído à base do trabalho coletivo e não de decretos presidenciais e simbolismos. Os trabalhadores, quando fizerem ser verdadeiramente democrática a afamada democracia, podem ensinar a todos os seus opositores o preço de seus sonhos.

  • Pode o Partido Burguês falar pelos trabalhadores dos Estados Unidos da América?

    por Pedro Sodré   Desde a confirmação da vitória de Donald Trump no arcaico Colégio Eleitoral dos Estados Unidos da América na quarta-feira (06/11), a afirmação da moda na imprensa burguesa (e até mesmo dentro de círculos intelectuais “progressistas”) tem sido a de que Trump venceu as eleições porque conquistou o apoio da classe trabalhadora americana. A CNN reproduziu reportagem impulsionando essa visão. O social-democrata Bernie Sanders também veiculou  essa ideia. Até mesmo o chargista da Folha de S. Paulo, Cláudio de Oliveira, brincou  com essa suposta adesão de setores operários à Trump. A afirmação em questão, completamente falsa, caracteriza-se antes como sintoma da época de transição histórica que vivemos. Muito mais do que uma adesão ideológica dos trabalhadores americanos àquilo que Trump representa, a vitória do candidato republicano tanto no Colégio Eleitoral quanto no simbólico “voto popular” mostra os novos limites do desenvolvimento orgânico das formas de dominação burguesa. Essa época histórica encontra no retorno de Trump à Casa Branca a já consolidada concretização objetiva do Estado burguês, sobretudo em seus contornos “democráticos e de direito”, e não sua falência, como muitos querem fazer crer. Afinal, volta aos holofotes do pardieiro estatal o ator que demonstrou como a ordem democrática liberal aceita, acolhe e acomoda — sem maiores problemas — todos os tipos de representantes do partido burguês, até aqueles que eventualmente ousam atentar contra ela. Tudo isso para desespero dos derrotistas que se assustam com a própria sombra e insistem em tornar cada vez mais nebulosa a tênue linha que deveria nos separar das várias frações burguesas. Se no Brasil ainda existem atores políticos que tensionam e contrariam a forma como essa linha divisória segue sendo mascarada, mantendo vivas as diferenciações dos projetos históricos das classes que se enfrentam no cenário nacional, nos Estados Unidos esse processo de ofuscamento já se encontra há muito tempo avançado. Ou terá alguém a coragem de afirmar, como o socialdemocrata Bernie Sanders, que na história recente dos Estados Unidos as frações liberais que se reúnem no Partido Democrata representaram um espaço autêntico da classe trabalhadora? Afinal, qual foi a última vez em que os trabalhadores americanos agiram com autonomia e independência política, marcando abertamente suas distinções de classe e de projeto societário na esfera política nacional? É certo que trabalhadores votaram em Trump (milhões, inclusive). Mas esse voto representa seus interesses de classe? A imprensa e os intelectuais engomados da burguesia repetem que os trabalhadores se afastaram do partido revolucionário desde o final do século XX, pois ele já não os representaria em suas pautas e reivindicações mais imediatas — estabilidade nas relações de trabalho, direitos sociais, redução da jornada de trabalho, etc., seriam coisas do passado, que não mais interessariam aos trabalhadores. Abolição da propriedade privada, extinção do Estado e destruição da sociedade cindida em classes sociais? Menos ainda, pois isso é nada mais do que peça de museu — dizem! Acusam os revolucionários de idealizar a classe trabalhadora, atribuindo-lhe uma consciência que supostamente já não mais se manifesta em suas ações e anseios. Porém, nos perguntamos: podemos considerar o voto de trabalhadores em Trump como manifestação de algo que indica uma consciência autêntica da classe? Seria essa “nova vontade”, uma expressão do interesse dos trabalhadores na defesa da violência, racismo e xenofobia? Querem os trabalhadores ampliar infinitamente e ansiosamente os exércitos industriais de reserva e serem acolhidos pelas modalidades flexíveis de trabalho? Querem atacar outros povos, invadir nações e explorar os recursos naturais e riquezas em benefício de sua pátria? Lembremos que na autoproclamada “nação da liberdade e da democracia”, a imprensa e os meios de comunicação, a vida partidária oficial e as estruturas administrativas do Estado estão restritas às classes dominantes e distantes da vida da população. São esses grupos que apitam o jogo, escrevem as regras, definem as pautas do dia e escolhem os vencedores — e não os assalariados, precarizados e excluídos. Enquanto a realidade falseada propagada pelos meios de comunicação burgueses apontam para o fortalecimento do discurso de que “a classe trabalhadora aderiu ideologicamente à Trump”, contradizemos: 1) mesmo tendo ganhado no eufemístico “voto popular”, Trump manteve sua margem de votos das últimas duas eleições (62 milhões em 2016, 74 milhões em 2020 e 73 milhões em 2024), enquanto Kamala viu o voto nos Democratas cair drasticamente se comparado aos últimos anos (65 milhões em 2016, 81 milhões em 2020 e 70 milhões em 2024) — ou seja, não há “adesão” propriamente dita, o que há é uma manutenção da influência de Trump em seus rincões habituais e o enfraquecimento de Kamala em regiões tradicionalmente vinculadas aos Democratas; 2) as eleições americanas seguem provando seu caráter essencialmente antidemocrático e elitista — afinal, o que justifica a manutenção de sua realização na maldita primeira terça-feira de novembro, logo após a primeira segunda-feira do mês? Simples preciosismo, associado à uma dose cavalar de tradição institucional excludente e racista, que marca de maneira determinante a vida política americana até hoje. Não há amparo jurídico ou fundamento legislativo que garanta uma efetiva participação daqueles que não podem se dar ao luxo de assumir uma falta no trabalho para participar dessa magnífica “festa da democracia” — que convida o trabalhador, mas que também faz questão de mostrar que não quer que ele compareça. Vale mais garantir a sobrevivência e evitar uma demissão do emprego ou participar de um pleito de um Estado que pouco se importa com a participação de seus cidadãos? A resposta não é difícil para nós — para o trabalhador americano também não é. Espanta o fato de que muitos dos que estão veiculando essa ideia de “classe trabalhadora aderiu à Trump” são os mesmos que há decadas declararam a abolição do trabalhador e a invocação dessa nova entidade — o “colaborador”, que não se antagoniza com o patrão e que abraça o capital. Quando lhes interessa, a burguesia e seu contingente de servos agem como os necromantes das histórias fantásticas: exumam, ressuscitam e torturam cada vez mais esse cadáver, das maneiras mais odiosas possíveis, para legitimar, e mais uma vez provar superior, sua sociedade de ilusões — ainda que tudo ao seu redor demonstre o contrário. Ao fim, o sentido é um: o retorno do golpista à Casa Branca é a demonstração nítida e cabal de que a democracia burguesa e as instituições do Estado burguês nada mais são que uma farsa, cujas regras são aplicadas ao sabor do momento — leia-se: à vontade do capital — e cujo fundamento segue uma única e essencial regra: a de que é necessário manter o modo de produção capitalista vivo custe o que custar. Os atores políticos da impresa e da intelectualidade burguesa, ao querer implantar a visão de que os trabalhadores são responsáveis pelo retorno de Trump ao poder (e não os bilionários e milionários que o financiaram e a justiça que foi complacente com seus atos), antecipam-se os próximos movimentos no tabuleiro pelo lado do partido burguês. Sabem que a chegada de Trump apresenta altos fatores de risco à economia política americana e ao seu engodo democrático. Portanto, já preparam o “boi de piranha” que se responsabilizará — tanto agora, quanto depois — por tal vitória: a sempre subestimada classe trabalhadora; supostamente incapaz de agir por conta própria e que, portanto, é sempre suscetível aos monstros autoritários, “populistas” e antidemocráticos.  No entanto, quem cria os monstros e lhes dá vida?             ***    CNN Brasil. Análise: vitória de Trump no voto popular é resposta da classe trabalhadora silenciada . 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/eleicoes-nos-eua-2024/analise-vitoria-de-trump-no-voto-popular-e-resposta-da-classe-trabalhadora-silenciada/ . Acesso em: 13 nov. 2024. CNN Brasil. Senador Bernie Sanders diz que derrota dos democratas não surpreende . 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/eleicoes-nos-eua-2024/senador-bernie-sanders-diz-que-derrota-dos-democratas-nao-surpreende/ . Acesso em: 13 nov. 2024. Charge: HEBDÔ, Cláudio. Proletários unidos com Trump . Folha de S.Paulo , 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/blogs/claudio-hebdo/2024/11/proletarios-unidos-com-trump.shtml . Acesso em: 13 nov. 2024.

  • Globo News: os Porcos e suas pérolas¹.

    por Rafael Jácome Desde o famoso “Uma escolha muito difícil” que a imprensa brasileira não nos presenteia com um uma pérola digna dos mais sujos chiqueiros liberais. Desta vez, a Globo News reuniu um grupo de célebres liberais mediocremente alinhados entre si , para debaterem do alto de suas “especialidades” sobre o imbróglio que o governo reformista do PT causou ao ser o agente operacionalizador dos cortes que hoje ganham destaque na imprensa. Cortes pautado numa política de austeridade típica dos mais repulsivos interesses da burguesia brasileira, colocando a cúpula petista em contradição flagrante contra boa parte de sua base orgânica, eleitoral, social e oscilante. Neste show de barbaridades, destacamos aqui algumas falas desse nobre canal que outrora deu cobertura exemplar às manifestações que culminaram na deposição do próprio governo petista em 2016 e que ficou eternizado como apoiador fiel de uma ditadura que assassinou milhares de trabalhadores e combatentes de esquerda. Tais falas são emblemáticas e denotam nada mais que um desprezo cínico destes canais e de seus financiadores (a burguesia) com a classe trabalhadora deste país. Tão cínico quanto o apoio de Geraldo Alkmin às privatizações de Tarcísio , este mesmo Tarcísio que cometeu crime eleitoral contra o recentemente descartado pelos liberais paulistanos (mesmo fazendo concessões em pautas históricas); Guilherme Boulos. Vamos às duas principais pérolas. “Ele ainda pensa como sindicalista...”  ( comentário sobre a resistência de Marinho em relação aos cortes na pasta do Ministério do Trabalho). Aqui vale a máxima de que os ideólogos sempre deixam escapar (sem querer) meias verdades ao contar as mais completas mentiras sobre a realidade ou sobre seus preconceitos. Como lacaios de topete e brilhantina do que existe de mais podre nas concepções do liberalismo brasileiro, nesta pérola está explicitada o que a burguesia brasileira (seja ela polida ou raivosa) realmente pensa sobre os trabalhadores, seus organismos de luta e seus anseios por condições de trabalho melhores. Para estes jornalistas existe uma separação entre o pensamento de um sindicalista, historicamente atrelada ao símbolo da combatividade em defesa dos interesses da classe trabalhadora (ou que ao menos teria sido, em outros tempos) e uma suposta superioridade intelectual dos gestores do capitalismo. Além do mais, sem perceber a apresentadora reconhece que, apesar de um alinhamento intra estado, existe um conflito gritante entre os interesses da classe dominante e a massa de trabalhadores impactados por suas políticas de austeridade (esta última representada na imagem do "pensa como sindicalista") e o jogo de cadeiras do governo evidenciar isto, mesmo que pouco, é inadmissível. Para aplacar uma contradição governamental imposta pelos cortes em áreas imprescindíveis para a qualidade de vida dos trabalhadores, tais jornalistas precisaram explicitar seu preconceito de classe para que diante das contradições que o governo petista apresenta, os interesses de Haddad e sua turma prevaleçam, saindo assim como os vencedores na resolução desta contradição. Uma disputa suja. Que o governo do PT está explicitamente alinhado aos interesses dos setores da burguesia que operam tal cortes, disto já sabemos. Entretanto o que fica concreta e simbolicamente expressada nas falas destes jornalistas é que, para bancar tal alinhamento, os setores de cúpula do petismo têm atropelado até mesmo sua base mais ligada aos anseios dos trabalhadores e um projeto de derrota do liberalismo e do bolsonarismo (ainda que por vias reformistas). Não afirmo que Marinho não tenha sido em algum momento de nossa história um expoente dos interesses históricos dos trabalhadores, não conheço sua história o suficiente. Mas apesar de seu histórico ser reafirmado pelos seus defensores, nada parece diminuir a vergonha de seus tweets desmobilizando a pauta do pelo fim da escala 6x1. Em suma, aqui destaca mais o conteúdo atacado do que o sujeito que, para esses jornalistas, expressa tal conteúdo. Se ao menos o governo tivesse mais expoentes que pensassem como sindicalistas (como não parece ser o caso de Marinho, atualmente), certamente teria a coragem de mobilizar a classe pela revogação imediata da reforma trabalhista. Reforma esta que não gerou empregos, mas sim miséria. Também não veríamos um ministro da fazenda de um governo que mobiliza símbolos – somente símbolos - históricos dos trabalhadores ser defendido por um canal que outrora foi o principal articulador do processo que culminou na ascensão do bolsonarismo. “Em que mundo ele vive?”  (comentário sobre a fala de Marinho: “Se não quiser, a Uber que vá embora”, frente a resistência da empresa Uber de ter sua atividade exploratória e intensamente precarizante, regulamentadas pelo estado brasileiro). Tal fala é de uma falta de compreensão tão grande sobre as condições de trabalho e a própria dinâmica de exploração a qual os trabalhadores de aplicativos estão submetidos, que chega a dar asco. Tal fala ignora (propositalmente) que as empresas de aplicativo efetivam uma verdadeira precarização do trabalho em nosso país, colocando os trabalhadores sob um regime de perseguições e maquinações criminosas das mais diversas a fim de garantir suas taxas de lucro e de evitar a organização da categoria de motoristas e entregadores de aplicativos. Meses após o “Breque dos APP’s”, greve tocada pelos entregadores de aplicativo em solo brasileiro, o portal A Coisa Pública  publicou uma matéria investigativa intitulada “A máquina oculta de propaganda do iFood”. Esta matéria investigativa demonstrou uma série de maquinações para desarticular, de maneira criminosa, uma categoria que se organizava pela melhora das condições de vida dos trabalhadores de aplicativo. Entre essas maquinações estão a instrumentalização da necessidade de vacinação para os fins de desarticulação da greve, visto que "os adesivos e a faixa que pediam “vacinação já” no estádio do Pacaembu (...) vieram acompanhados pela disseminação de posts e comentários de usuários falsos, que teriam sido criados por agências de publicidade a serviço do iFood no Twitter e Facebook.". Ou seja, a tão orgulhosa, GloboNews,  que fez uma pseudo-campanha pela vacinação hoje se coloca em defesa de um segmento burguês que subverteu a lógica humanizadora por traz da luta de nossa classe por vacinação, afim de desarticular esta mesma classe em seu processo de luta por melhores condições de trabalho. Isto demonstra nada mais que tais canais burgueses se apropriam de nossas pautas, mas esvaziam seu núcleo duro revolucionário afim de perpetuar os interesses de uma classe dominante apodrecida. Tal jornalismo também evidencia outras coisas. A primeira delas é a mistificação extrema, através da imprensa. Luiz marinho (ministro do trabalho) afirmou que se a empresa quiser ir embora do Brasil, “problema” é da empresa. E, ainda que fale de um ponto de vista liberal, ele está certo. Um complemento na fala do ministro que não foi evidenciado nos títulos das notícias alarmistas, foi de que: caso a Uber fosse embora, uma concorrente ocuparia seu lugar. Até a mente liberal mais ingênua, se pautando pela abstração reducionista do eixo “oferta X demanda”, sabe que qualquer viabilidade empresarial no mercado obedece às possibilidades colocadas pelo contexto. Fato é que para operar seu lucro de 11 bi [CdM1]  a Uber tem no Brasil seu segundo maior mercado. Contando com mais de 22 milhões de usuários e mais de 600 mil motoristas, tal empresa vê no Brasil um dos países centrais que alavancam sua política de expansão mundial “feroz” sustentada nas costas dos trabalhadores. Ora, caros jornalistas liberais, temos como concorrente da Uber uma empresa chinesa (99), em plena aproximação deste país do bloco econômico da China. Em termos puramente liberais: a ausência de uma empresa precarizada, num contexto em que o monopólio do setor ainda não está consolidado, obviamente fará com que a fatia abandonada por uma das concorrentes ao monopólio seja imediatamente abraçada pelo investimento da que sobrou. Será que até mesmo nas categorias que acreditam com fé religiosa, como a “concorrência”, liberais são suficientemente perdidos para não dar coerência ao que falam? Claramente, o liberal menos estúpido responderá que isso seria ruim pelo fato que diminuiria a concorrência e automaticamente implicaria num aumento de preços. Ao fazer tal movimento, cai a máscara liberal e com ela seus mitos, derretendo-se aos olhos de seus asseclas, frente à necessidade de remeter à intervenção estatal como forma de regulação do mercado. Dito isto é evidente que é justamente essa necessidade regulatória do Estado frente ao mercado que se deseja camuflar; já que o pacote de austeridade tocado pelo petismo atualmente é um verdadeiro condicionamento (esperado) da máquina estatal, a fim de proteger o mercado para que assim se favoreça uma classe que não é a dos entregadores e motoristas de aplicativo. Uma verdadeira e proposital inversão. Outra característica típica dos liberais (decorrente da constatação óbvia nos parágrafos acima) é inverter a ordem do processo econômico, centralizando o pilar econômico de nossa sociedade nos proprietários dos meios de produção (burguesia) ao invés de reconhecer na massa de trabalhadores essa centralidade. Massa sem a qual nenhuma mercadoria seria produzida e sairia das fábricas ou das lojas para ir magicamente parar no mercado para ser comercializada. O jornalismo liberal médio desconsidera ou tenta camuflar tal constatação, seus estúdios arejados são impermeáveis à compreensão mais basilar da economia política e acabam disseminando as mesmas barbaridades que o bolsonarismo mais apaixonado, porém de maneira mais polida para dar ares de sobriedade. Tal constatação óbvia (por isso tão atacada) explica o motivo de a Ifood ter investido tanto na desarticulação da greve dos motoristas e entregadores de aplicativo. Sem a atividade cotidiana da massa de trabalhadores de aplicativos em nosso país, atendendo à dinâmica do “trabalho por peças” descrita por Marx (2) (em que se coloca nas costas dos trabalhadores uma intensidade maior do ritimo de trabalho e, no cenário atual, de maneira ainda mais exploratória, também os custos dos seus meios de trabalho), a atividade de qualquer empresa de aplicativo se torna ameaçada em nosso país. Fica explicito que, invariavelmente, a permanência das empresas de aplicativo em solo nacional passa pela manutenção de condições de trabalho precárias e que hoje levam ao abarrotamento de processos trabalhistas na justiça brasileira (houve um crescimento de 400% na pandemia ), em que os relatos chocantes não parecem sensibilizar nossos queridos jornalistas da GloboNews. Com base nas linhas acima, respondemos aos “nobres” jornalistas: ao menos Marinho da indícios tímidos de ainda viver num país concreto e paralelo a confortável sala com ar condicionado dos jornalistas, em que os "especialistas" comentam barbaridades que só podem sair da boca de quem quer transformar o mercado em sujeito e o trabalhador em mercadoria. Se o governo fará mais que reconhecer este Brasil real e com isso alavancar uma mobilização digna da classe, recuar na politica de austeridade e sair da posição rendida ao capital, veremos (duvido). Certo é que devemos estar preparados e articulados para qualquer cenário; sem desânimos! Um apontamento sobre as pérolas. Uma afirmação nem sempre vem pela necessidade de se esclarecer, muitas vezes se trata só da necessidade de reafirmação do óbvio: não existe horizonte para os trabalhadores nas políticas liberais que hoje o governo vem implementando. No fim este texto é mais do mesmo, mas óbvio em tempos de barbárie é bandeira de combate. Dito isto, não nos é estranho que tais liberais e seus jornalistas alinhados disseminem, seja com educação e polidez ou com escarnio e acidez, a defesa de políticas que contribuam para a morte de milhares de trabalhadores. O que salta aos olhos é que uma parte da base petista entre nessa empreitada de defesa de tais políticas, mistificando o processo da luta de classes em mero joguete estadista para defender a forma governo e não o questionamento de seu conteúdo. Em 2016 Dilma fez concessões ao mercado e mesmo assim foi deposta de seu cargo. Naquela situação podemos dizer que o governo conseguiu emplacar a ideia de que jogou pérolas aos porcos, a fim de que eles se acalmassem e a mantivesse no executivo em nome de uma governabilidade rendida ao capital; não deu certo. Hoje vemos boa parte da base governista e o próprio governo em alinhamento com a cúpula encabeçada por Haddad: agora é o governo que decidiu, explicitamente, pegar as pérolas jogadas pelos porcos. Veremos no que vai dar. ***     1.     A mídia hegemônica teve muito trabalho nos últimos dias, devido a explosão de insatisfações com a jornada 6x1. Não faltou "pérolas". Para um debate mais aprofundado, recomendo este ótimo texto do Lambertucci : " É A LUTA DE CLASSES, ESTÚPIDO! ". 2.      “No salário por tempo domina, com poucas excepções, o mesmo salário para as mesmas funções, enquanto no salário à peça o preço do tempo de trabalho é, com efeito, medido por um quantum determinado de produtos, o salário diário ou semanal, pelo contrário, varia com a diversidade individual dos operários, dos quais um apenas fornece o mínimo de produto num dado tempo, o outro a média e o terceiro mais do que a média. No que diz respeito ao rendimento real têm aqui lugar grandes diferenças consoantes a diversa destreza, força, energia, resistência, etc., do operário individual. Isto naturalmente não altera em nada a relação geral entre capital e trabalho assalariado. Em primeiro lugar, na oficina total as diferenças individuais compensam-se, de tal modo que ela fornece o produto médio num determinado tempo de trabalho e o salário total pago torna-se o salário médio para este ramo de negócio. Em segundo lugar, a proporção entre salário e mais-valia permanece inalterada uma vez que ao salário individual do operário singular corresponde a massa de mais-valia por ele fornecida individualmente. Mas o espaço de manobra maior que o salário à peça proporciona à individualidade tende, por um lado, a desenvolver a individualidade e com ela o sentimento de liberdade, a autonomia e o autocontrolo dos operários, e, por outro lado, a concorrência entre eles e de uns contra os outros.”   MARX, Karl.  O Capital: crítica da economia política. Livro primeiro : O processo de produção do capital. Sexta seção: O salário. Décimo nono capítulo: O salário à peça. Disponível em: [ https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/capital/livro1/cap19/01.htm](https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/capital/livro1/cap19/01.htm) . Acesso em: 11 nov. 2024.

  • É A LUTA DE CLASSES, ESTÚPIDO!

    por Frederico Lambertucci    O principal argumento dos "economistas" de plantão é que o fim da escala tornaria os salários impagáveis para os capitalistas, que teriam que contratar mais e isso destruiria a "economia", como se pode ver nas matérias veiculadas por Folha de São Paulo, O Globo, Estadão e demais jornais da burguesia.   Junto a isto, aparecem os patetas de plantão, tal qual Nikolas Ferreira, o deputado Maurício Marcon (Podemos-RS) e o deputado Leonardo Siqueira (Partido Novo), economista formado pela Fundação Getúlio Vargas e atualmente doutorando pelo INSPER, sabem as “figuras notáveis” dessa “renomada” instituição liberal burguesa? Paulo Kogos e Jair Pinheiro, o primeiro um cavaleiro templário e o segundo a favor da comercialização de órgãos. A quem o “economista” em questão serve não pode causar dúvidas para ninguém. Elenquemos os argumentos. O Deputado Nikolas Ferreira simplesmente fez uma correlação completamente torta entre produtividade do trabalho e Estado inchado, e disse que a inflação irá aumentar. O Deputado Maurício Marcon, um pateta no nível de Nikolas Ferreira, disse que propôs um projeto alternativo, em que se poderia trabalhar a quantidade de dias que “patrão” e “empregado” acordassem, desde que respeitada os limites das horas (qual a quantidade de horas que consta no projeto não se atreveu a falar). Além disso, o deputado insistiu, de forma patética, que o trabalhador poderia negociar com o patrão em fazer a carga horária dele de trabalho em 4 dias, 3 dias se quisesse. E por fim, o deputado economista Leonardo Siqueira simplesmente elencou como um resultado natural do aumento da massa salarial, a inflação, a substituição de trabalho formal por informal e a troca de trabalhadores por máquinas.   Tratemos então desses temas. A primeira questão, a inflação . O que eleva a inflação é a existência de uma massa de valor na forma dinheiro maior do que demanda, do que consumo. Se você aumenta salários, ou aumenta a contratação o que consequentemente aumenta a massa de salários, supondo a jornada 4x3 do projeto, você aumenta a capacidade de consumo da sociedade o que aumenta a demanda e consequentemente produz o resultado contrário, a tendência é a redução da inflação e aumento da produção, como era óbvio até para um Keynes. Existe uma possibilidade de “inflação”, mas trataremos dela depois de outras considerações necessárias. Sobre essa questão, Marx já tinha clareza sobre a confusão que a economia burguesa realiza ao discutir o funcionamento do mercado. Diz ele que   A essa confusão – determinação dos preços por oferta e demanda e, ao mesmo tempo, determinação da oferta e demanda pelos preços – devemos acrescentar que a demanda determina a oferta e esta, por sua vez, a demanda, ou, o que dá no mesmo, que a produção determina o mercado, e este, a produção.” (MARX, 2017, p. 266)   Portanto, há uma determinação de reflexão entre mercado e produção, de modo que o aumento da massa salarial aumenta a demanda, que determina a oferta, determinando a produção e vice-versa. Sobre o argumento do deputado Leonardo Siqueira, ou poderíamos chama-lo de John Weston burguês[1]. Se o operário inglês defendia a impossibilidade de uma elevação salarial permanente, e que por isto, a atividade sindical não deveria incorporar aumento salarial como pauta, ele partia de dois princípios, os quais o nosso John Weston burguês, deputado Leonardo Siqueira também parte, quais sejam:   l.a) que o volume da produção nacional é algo de fixo, uma quantidade ou grandeza constante, como diriam os matemáticos; 2.a) que o montante dos salários reais, isto é, dos salários medidos pelo volume de mercadorias que permitem adquirir, é também uma soma fixa, uma grandeza constante. (Marx, ano: 64)   Seguindo os mesmos pressupostos, de que o volume da produção nacional é fixo, ou seja, de que qualquer elevação da massa salarial é seguida de queda da massa de lucro e de que a massa salarial sempre é fixa. Peguemos o exemplo do próprio Marx no texto supracitado, caso a produção nacional seja fixa; Se tomo um determinado número, digamos 8, os limites absolutos deste algarismo não impedem que variem os limites relativos de seus componentes. Por exemplo: se o lucro fosse igual a 6 e os salários a 2, estes poderiam aumentar até 6 e o lucro baixar a 2, que o número resultante não deixaria por isso de ser 8 (Marx, idem: 64).   Como podemos observar, caso o volume da produção nacional seja fixo, a elevação salarial, de fato, é necessariamente rebaixamento da massa de lucros, se o volume total é 8, 2 em salários significa 6 em lucros e vice-versa. A segunda questão, sobre o volume determinado dos salários, ou seja, de que necessariamente tem que derivar uma queda da massa salarial, pois os “empregadores” pagarão menos, contratarão no trabalho informal e etc, parte do pressuposto de que a soma dos salários tem que ser fixa, que se temporariamente os salários aumentam, em seguida eles serão rebaixados. Isso não é uma lei natural econômica, mas fruto exatamente da contradição entre capital e trabalho, em que o capital continuamente tenta rebaixar os salários, caso a soma fosse fixa, não haveria porque os “empregadores” continuamente lutarem pela redução dos salários e dos direitos trabalhistas, a luta de classes já se expressa, sobretudo nesse fato. Portanto, é evidente que mesmo que o volume da produção nacional fosse fixa, o argumento do deputado, não se sustentaria, pois não se trata de uma lei natural, trata-se, antes de tudo, de uma luta pela apropriação, de mais trabalho não-pago, explorado pelo capitalista e mais trabalho pago, mais salário para o trabalhador. E caso o volume fosse fixo, neste caso sim, teríamos uma relação direta em que a diminuição da massa de salários se torna diretamente aumento da massa de lucro e vice-versa. Mas, mesmo que ambas tenham essa relação necessária, o fato de o volume da produção nacional não ser fixo, altera as coisas.   Pois, dado que vários setores aumentarão a quantidade da massa salarial – pensemos apenas nos mercados, farmácias, indústrias (principalmente a alimentícia) e bares e restaurantes que utilizam tal escala, para termos a dimensão do aumento da massa salarial – pois terão que contratar mais, faz com que para todo o restante, com a elevação da demanda advinda da massa salarial aumentada, aumente a escala de operação e de produção, consequentemente aumentando a massa de lucro dos setores envolvidos, ainda que proporcionalmente eles sejam reduzidos em relação a taxa de lucro da escala 6x1. Diferente do que propaga o deputado, não apenas os capitalistas não perderiam a massa de lucro ao pagarem mais salários, como a aumentariam. Explico, por exemplo, se uma empresa emprega 5 funcionários pagando 2.000 reais trabalhando 6x1, ele paga 10.000 em salários. Vamos supor que o lucro mensal é de 30.000 já descontados todos os gastos em salários (incluídos impostos e etc). A massa de lucro são os 30.000, ou trabalho excedente, a massa total de capital é igual a 40.000 e o salário é igual a 10.000. Então, seja ( p’ = m/v+c .100) onde p’ é a taxa de lucro m =mais-valia/capital variável (salários) + capital constante (maquinas, prédios, matéria-prima, ...), a fórmula da taxa de lucro. Temos que: m/v+c  é 30.000/10.000 + 0 – o leitor mais atento notará que zerado o capital constante, temos, na realidade, diretamente a taxa de mais-valia, “como a proporção  tempo de mais-trabalho/tempo de trabalho necessário determina a taxa da mais-valia” (Marx, 1983: 345), contudo, aqui é válido, porque aumento da produção não implica imediatamente aumento do capital constante, ou pelo menos, não de forma considerável para nosso exemplo, portanto, suponhamos que o capital constante permanece o mesmo, sem aumento da capacidade produtiva instalada, o que nos permite supor ele igual a zero – o resultado da conta é igual a 3, em porcentagem, 300%, o que significa que a taxa de lucro é igual a 300%. Essa é a taxa de lucro, 300%, em termos de massa de lucro, são 30.000. Vamos supor agora 8 funcionários ganhando 2.000. O pago em salários seria igual a 16.000, supondo os mesmos 40.000, a massa de lucro do dono do bar cairia para 24.000, e a taxa de lucro cairia para 150%, ou seja, caso o volume da produção nacional fosse fixo, de fato, aumento da massa salarial significaria, imediatamente, queda da massa de lucros e da taxa de lucros. Mas, essa não é a situação real, pois, justamente porque todas as empresas que utilizam escala 6x1 e 44 ou 40 horas semanais e que precisam de mais trabalhadores para manter a mesma produtividade e massa de trabalho devido ao limite de 36 horas semanais máximas de trabalho também estão pagando uma massa salarial maior, existe, portanto, uma massa maior de dinheiro convertida em capital variável, em salários, o que significa que desde bares, mercados, farmácias e etc. terão mais consumidores, o que implica em aumento da produção alimentícia, farmacêutica, e no fim das contas, com o aumento da demanda, mais produção e vendas. Portanto, no nosso exemplo da empresa, ao invés dos 40.000 divididos entre salários e lucro, agora, suponhamos um aumento de 25% nas vendas, a massa total de capital subiu pra 50.000, divididos em 34.000 de lucros para o dono do bar e os 16.000 pagos em salários aos 8 funcionários com salário de 2.000.   O que isso significa? Que a massa de lucro total do dono da empresa considerada aumentou, agora ele vai receber 34.000, antes recebia 30.000, e isso mesmo com um pagamento de mais salários e mesmo que a taxa de lucro dele tenha decaído. Nesse novo exemplo, a massa de lucros (trabalho não-pago) é de 34.000/16.000 + 0, o que significa que a taxa de lucro real vai ser de 212,5% o que significa um decréscimo de 87,5% na taxa de lucro, contudo, a massa total de lucro cresceu, 34.000 contra os 30.000 anteriores. E o leitor poderia perguntar, mas e a produtividade social do trabalho? Ora, estamos trabalhando com a mesma produtividade social do trabalho, pois, a jornada de trabalho menor, mas com mais trabalhadores, permanecendo a mesma tecnologia empregada no processo de produção, mantêm a mesma produtividade ou a aumenta, o que significa aumento da massa de valor na produção e por consequência, aumento da massa do capital social total e do lucro como um todo, mas isso não vêm ao caso em nosso exemplo. Se atente o leitor, unicamente ao fato de que estamos considerando um aumento da produção mantendo-se inalteradas as condições e os fatores da produção, portanto, capital constante e produtividade social média do trabalho permanecendo iguais. Sendo assim, o argumento do deputado, de que o empresário (capitalista) precisa diminuir salários para sobreviver é completamente falso. Mas o leitor pode perguntar, o empresário não preferiria, então, colocar máquinas no lugar de trabalhadores, tal qual o nosso John Weston burguês disse? Existem duas questões relacionadas aqui. A primeira é o fato de que, caso fosse imediatamente mais lucrativo a retirada do capital variável, a substituição de salários por maquinaria, por capital constante, os capitalistas de vários setores envolvidos já o teriam feito, pois os capitalistas já o fazem, cotidianamente, e só não o fazem quando as condições de tal troca não são possíveis imediatamente. E eles fazem constantemente, porque no mercado, os capitais com maior capital constante, máquinas mais avançadas, são mais produtivos, pois aumentam a produtividade social do trabalho e se tornam mais lucrativos, tendo com isto, o que Marx chamou lucro extraordinário, mas isso não significa uma verdade imediatamente. E a segunda questão relacionada é o fato de que os capitalistas individuais estão limitados em dois sentidos na troca de pessoas por máquinas. O primeiro sentido é a própria limitação técnica da substituição, isto é, a tecnologia precisa estar avançada suficientemente para que seja possível implementar uma máquina ao invés de um trabalhador na função específica para a realização daquela atividade determinada, algo difícil para mercados, farmácias e bares, por exemplo. O segundo é que a limitação do ponto de vista do próprio montante de capital necessário para essa substituição, pois a massa de capital, isto é, o preço que o capitalista vai pagar na máquina pode ser, por vezes, proibitivo. Para que o leitor entenda, a revolução técnica do processo produtivo sob a base do capital, se opera, sobretudo por isto A produtividade particular do trabalho numa esfera particular ou num negócio em particular no interior dessa esfera interessa unicamente aos capitalistas que deles participam diretamente, na medida em que possibilita a essa esfera particular a obtenção de um lucro extraordinário com relação ao capital total ou ao capitalista individual um lucro extraordinário com relação a sua esfera. (Marx, 2017: 233)   Em suma, o capitalista particular, como o de nosso exemplo, conseguirá os lucros sobre o trabalho não-pago aos trabalhadores sob seu controle, seus empregados, e na venda de seus produtos, conseguirá obter parte do trabalho não-pago de outros capitalistas com quem concorre. Desse modo, é possível que ele tenha mais-valia adicional na concorrência. Contudo, para nosso exemplo, pensemos nesse capitalista individual. Como vimos a massa de lucro dele vai se ampliar para 34.000 pagando uma massa salarial de 16.000 e um aumento de vendas de 25%, mantidas as mesmas condições da produtividade social do trabalho – sabemos que com redução de jornada, na realidade o que acontece é os capitalistas utilizarem todos os métodos de intensificação do processo de trabalho, o que significa aumento da massa de mais-valia e da taxa de lucro. Suponhamos agora, que ao invés de contratar os 3 trabalhadores adicionais por 2.000 reais, ele gaste 50.000 em tecnologias para colocar no lugar dos trabalhadores, nesse caso, temos que p’ = m/v+c. 100 . em que m=30.000, v = 10.000 e c = 50.000. O resultado é que a taxa de mais-valia despenca para 50%, com a massa de lucro permanecendo em 30.000, pois, lembremos, estamos supondo que o conjunto dos capitalistas vai agir da mesma forma. Por isso, de fato, esse capitalista particular, caso faça isto, vai ter vantagem sobre o restante dos capitalistas da sua esfera, como foi dito por Marx, e pode vir a ter lucro extraordinário até que todos realizem a substituição dos trabalhadores sob seu comando por máquinas, contudo, esse mecanismo independe da redução da jornada de trabalho, é antes constitutivo da própria dinâmica da acumulação do capital e só será vantajoso para essa empresa enquanto o conjunto dos capitalistas da mesma esfera não substituírem seus trabalhadores por máquinas. Se isto ocorrer - e isto ocorre de forma contínua na sociedade burguesa, em que maior capacidade produtiva significa desemprego e não tempo livre - o que ocorre é que a taxa de lucro de todos os capitalistas se reduzem, em contraposição a taxa de 300% de lucro, uma taxa reduzida, é a lógica geral da queda tendencial da taxa de lucro, por isto, mesmo os lucros extraordinários de um ou uns capitalistas singulares será temporário, o que novamente, não torna a substituição dos trabalhadores por máquinas algo simples. No entanto, na medida em que isto constitui a própria dinâmica da acumulação capitalista, é como se o deputado estivesse ameaçando de morte alguém que está no meio da guerra com tiros passando em todas as direções. E por fim, o trabalho informal é utilizado pelos capitalistas para aumentar a taxa de mais-lucro e a massa de lucro em todas as situações possíveis. Como veremos abaixo o que redução salarial implica. No momento, vale fazermos um pequeno resumo, o que podemos concluir daqui? 1. O aumento da massa de salários só pode sair da relação com a massa de lucros, ou melhor, com a massa de trabalho excedente, contudo, isto não implica redução da massa de lucros, mas sim da taxa de lucro. 2. As lutas ditas "econômicas" em torno do salário são a manifestação da relação básica do antagonismo de classe existente nessa sociedade. Portanto, não pode ser surpresa que o presidente da associação de bares tente rotular a questão como "ideia estapafúrdia". Aumento de massa salarial envolve diretamente a taxa de lucros, como fica claro. 3. Se do ponto de vista da massa de lucros total pode haver aumento, pois massa de salário aumentada significa aumento do consumo, a longo prazo, mantidas as mesmas condições do capital constante, significa que todo aumento da produção é aumento baseado na taxa de lucros média, pensando apenas no nosso exemplo, é como se todo o aumento da massa de lucros totais mantivesse a mesma taxa de lucro, isto não é necessariamente verdadeiro, mas existem limitações técnicas que dificultam em alguma medida diminuir capital variável [2]  em bares, restaurantes e mercados, por exemplo, ao menos enquanto o capital não conseguir tornar robôs com inteligência artificial práticos para atendimento, o que hoje parece muito distante. Diante disto, a recusa mais intensa em bares e restaurantes não assombra, pois aumento da escala da produção significa aumento de capital variável, mantendo uma taxa de lucro menor do que a existente, ainda que a massa de lucros aumente. Como pudemos ver no nosso exemplo, 300%, tornaram-se 212,5%, a nova taxa de lucro base para aumento da produção com contratação de trabalhadores adicionais, além dos 8 necessários já na escala 4x3. 4. Contudo, existe ainda uma possibilidade de "inflação”, qual seja, a comentada pelo Weston burguês. A possibilidade (provável) que os capitalistas tentem repassar os custos adicionais com salários para o consumidor via preço das suas mercadorias. Tentando manter a mesma taxa de lucros com uma maior massa de lucros. Dessa forma, com aumento de preços, poderia aumentar o capital total, por exemplo, para 65.000, por exemplo, com 16.000 pagos em salários, o que significaria uma massa de lucro de 49.000, o que significa então 49.000/16.000 + 0 é igual a 306,25% da taxa de lucro, com uma massa de lucro de 49.000. Nesse caso, o aumento da massa de salários terminaria por significar desvalorização do dinheiro pelo aumento dos preços. Perceba o leitor que o capitalista irá querer aumentar sempre mais a taxa de lucro e a massa de lucro, ou seja, reduzir salário, aumentando a taxa de lucro, e aumentar a massa total de lucros com esse mesmo rebaixamento. Trata-se, portanto, de nada mais do que luta de classes. O problema é que seria parcialmente ou inteiramente inútil essa elevação, pois os 49.000 que o capitalista conseguiu com aumento de preços, na medida em que todos os capitalistas aumentam igualmente seus preços, passam a valer menos, o que significa que o seu lucro nominal, na realidade, passa a representar um valor menor. Do ponto de vista do trabalhador isto significa depreciação das condições de vida, já que o salário de 2.000 passa a possuir um valor menor também. Essa "inflação" não é o resultado espontâneo, "natural" da elevação da massa salarial, ao contrário, ela é fruto diretamente da ação dos diversos capitalistas em manter suas taxas de lucro, mesmo que sua massa de lucro esteja aumentando, portanto, não é uma reação de “autodefesa” do “coitado” empresariado brasileiro. Logo, isso significa que a luta deve se direcionar tanto em favor da diminuição da jornada de trabalho e da abolição da escala 6x1, quanto, conquistando essa demanda, uma luta pelos preços, para que os capitalistas não queiram recuperar suas taxas de lucro através do aumento de preços. 5. E, fundamentalmente, manter a luta contra o arroxo salarial, pois todos, TODOS os capitalistas dos setores envolvidos, mas não apenas estes, tentarão em seguida rebaixar salários, isto é, a primeira medida será contratação de mais trabalhadores com salários menores, ao invés de 8 recebendo 2.000, como nosso exemplo, 3 novos recebendo salários mínimos e 5 recebendo 2.000 até ser vantajoso mandar embora para recontratar outros 5 pelo mínimo, o que, novamente, significaria aumento da massa de lucros e da taxa de lucros para o capitalista e decréscimo da massa de salário. Neste caso, o que ocorreria, seria um pequeno acréscimo da massa total de salários, um pequeno ou nenhum acréscimo a massa total de lucros e uma taxa de mais-valia um pouco menor ou praticamente igual a hoje existente para os capitalistas. No exemplo do nosso capitalista, suponhamos salários de 1.500 para os 8 trabalhadores com 45.000 de capital total, aumento de 5.000 derivado do pequeno aumento da massa salarial total de todos os capitalistas, ou seja, aumento pequeno do consumo. Salários corresponde então a 12.000, um acréscimo de 2.000, a massa de lucros é igual a 45.000 - 12.000, portanto, 33.000, o que significa que 33.000 é m e 12.000 é V. Portanto, 33.000/12.000+ 0 (C), que é igual a uma taxa de mais-valia de 275%, 25% menor do que antes, ainda que um pequeno acréscimo na massa de lucros tenha ocorrido, os 5.000. Nesse cenário, percebe-se como os capitalistas podem tentar remediar o decréscimo da taxa de lucro através do arroxo salarial, o que, fique claro, é o que cada capitalista individual faz para aumentar sua taxa de lucro. Este exemplo inteiro é para alertar ao leitor de que a luta não se esgota no primeiro momento, trata-se mesmo da questão FUNDAMENTAL para todos os capitalistas individuais, que reagirão dessa forma. Trata-se, sobretudo, da expressão mais crua da luta de classe, que se expressa na relação capital - trabalho desta forma, e se expressa, pois, apesar da mais-valia e da taxa de mais-valia, tal qual a taxa de lucro serem cruciais, elas não esgotam a relação capital - trabalho. Tema que não é para um texto desse gênero. Importa salientar para o leitor, o fato de que, do ponto de vista do capital, é completamente falso que bares e restaurantes irão falir caso a escala 6x1 acabe, e para o conjunto da economia brasileira, é completamente falso que a jornada de 36 horas semanais vai destrui-la. Como vimos, o aumento da massa salarial pode inclusive produzir um aumento da massa de lucro para os capitalistas, ainda que sua taxa de lucros decaia, motivo pelo qual, o arrocho salarial e o aumento de preços é o mecanismo que utilizam para tentar recuperá-la. E agora o argumento mais imbecil e patético, o do deputado Maurício Marcon, de que a negociação de dias deveria ser entre “patrão” e “empregado”, citando que o pai dele morreria se não pudesse trabalhar 6 dias e tivesse 3 pra ficar em casa. O argumento do deputado parte do pressuposto do liberalismo de que como trabalhador e capitalista possuem o mesmo estatuto formal, isto é, são ambos detentores de mercadorias, o capitalista do capital, o trabalhador da sua força de trabalho, portanto, são livres para se confrontarem como meros possuidores de mercadorias tentando negociar o preço de forma igual. O que está completamente fora de vista nesta equalização formal entre trabalhadores e capitalistas é justamente a propriedade privada dos meios fundamentais de produção, em que de um lado o próprio trabalho, a vaga de trabalho é objeto de concorrência entre trabalhadores, o que já deixa o trabalhador completamente desarmado na relação com o capitalista, quanto na medida em que as condições de produzir estão alheias, pertencem ao capitalista, as condições de sua reprodução física, de continuar existindo, de não morrer, estão dele separadas, o que por si só significa a subordinação do trabalho ao capital. São os meios de vida, comida, moradia, roupas o que só é acessível sob a forma salário, portanto, o trabalhador, cuja concorrência no mercado de trabalho é o meio de rebaixamento salarial, não possui nenhum poder na relação com o capital. Portanto, não existe nenhuma igualdade real entre capitalistas e trabalhadores, ainda que no plano formal, jurídico, ambos apareçam como iguais sujeitos de direito, livres proprietários de mercadorias. O caráter ridículo da ideia de que se a vaga for ruim é só não aceita-la, se expressa sobretudo nesse fato, de que a não aceitação da vaga seria uma possibilidade real, vaga para a qual concorrem inúmeros trabalhadores no mercado de trabalho em permanente concorrência, e que portanto, em cenário algum significa certeza de outra vaga de trabalho, quando na realidade, significa desemprego, fome e miséria. Tal é o antagonismo entre trabalho e capital, em que as condições da reprodução do indivíduo trabalhador estão separadas dele e que os meios de vida só são acessíveis se subordinando ao trabalho alienado enquanto propriedade do capital.    Desse modo, ao conjunto da classe capitalista, a resposta deve e precisa ser do conjunto da classe trabalhadora. Vale ressaltar que o LUCRO do capitalista É TRABALHO EXPLORADO, portanto, a redução da taxa de mais-valia, no nosso exemplo citado, é diretamente uma massa de trabalho não-pago que foi um pouco reduzida em relação ao trabalho pago na forma de salário. E finalmente, o capital tentará, sempre, aumentar a taxa de lucro pela demissão de trabalhadores e sua substituição por máquinas, ainda que a escala de trabalho seja 7x7, pois, do ponto de vista da concorrência, da maior produtividade do trabalho e da apropriação do lucro extraordinário, essa é sua natureza última. Por isso, se a redução da jornada e o fim da escala 6x1 são fundamentais, não podem significar o fim da luta, "ao invés de um salário justo por uma jornada de trabalho justa, pela abolição do trabalho assalariado" (MARX). Os limites da reivindicação devem ser evidenciados, o arrocho salarial e o aumento dos preços serão utilizados pelos capitalistas no dia seguinte, caso se aprove a legislação, e mesmo com a aprovação da medida, os trabalhadores terão, "apenas os grilhões mais afrouxados" (MARX), pois o capital continuará a "sugar como vampiro trabalho vivo" (MARX), isto é, a exploração é sua mola propulsora sem a qual não vive e a qual deve ser destruída. A redução e extinção da escala são mais que necessárias, mas a luta de classe precisa seguir até o fim, pela abolição do trabalho assalariado !    ***   Referências Bibliográficas MARX, Karl.   O capital: crítica da economia política . Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. MARX, Karl.   O capital: crítica da economia política . Livro III. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017. MARX, Karl.   Salário, preço e lucro . In Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. Rio de Janeiro: Abril Cultural, 1974.   [1] O operário inglês John Weston defendia no Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores a tese de que a elevação dos salários não pode melhorar a situação dos operários e que deve ser considerada prejudicial a atividade das tradeunions. [2] Capital variável é chamado assim por Marx, porque ele é o único que produz valor novo. Corresponde no texto ao pago em salários. Enquanto capital constante, é determinado dessa forma, exatamente pelo fato de no processo de trabalho, o valor de uma máquina não se alterar, assim como do prédio, da matéria-prima e etc. São massas de valor que o trabalho unicamente transfere a uma mercadoria nova. Por exemplo, supondo a produção de calçados, 16 pares de calçados em 8 horas de trabalho, serão produzidos então 8 horas de valor cristalizados nos 16 pares, valor novo, produto do trabalho, da transformação de matérias primas (couro, energia elétrica, água e etc), com a maquinaria necessária mantendo a produtividade social média do trabalho, e prédio e etc. Perceba o leitor que o trabalhador produz 1 par de calçado a cada meia hora, então é meia hora de valor objetivado em cada par, valor novo, que antes não existia, ao mesmo tempo, o capital existente em máquinas, matéria prima etc., será apenas repassada para o calçado através do trabalho do trabalhador, verdadeiro criador da riqueza social. Assim, por exemplo, suponhamos que no couro necessário para um par, foram objetivados por um trabalho anterior, 20 minutos de trabalho, e que no uso da máquina, no tempo de 30 minutos, necessários para produzir um calçado, sejam repassados 40 minutos de trabalho objetivado anterior, de trabalho morto, para facilitar, de tempo de trabalho para o calçado. Então, a composição do calçado seria V+C= m, aqui m é mercadoria. Logo, a composição valor de um calçado seria 30+(40+20) = 90. Vemos aqui então que em 8 horas, e em 16 pares, a relação entre capital variável e capital constante é de 1/3, sendo 8 horas de capital variável objetivados em 16 pares e 16 horas de capital constante objetivados nos mesmos 16 pares. Contudo, suponhamos que o trabalhador produz o valor do seu salário na primeira hora, o que isso significa? Significa que das 8 horas que ele produziu, 7 são mais-valia, trabalho não-pago. E o leitor poderá pensar que o salário dele é igual a dois calçados, se isso é verdade considerando apenas o capital variável, não o é para a mercadoria real, lembremos que 1 calçado é igual 90 minutos, uma hora e meia de trabalho objetivado, desta forma, o salário do trabalhador não o permitiria comprar nem mesmo um calçado.

  • Greve econômica e greve política

    por V. I. Lênin Imagem: SINJUSC Nos últimos meses, vimos nascer das reivindicações de setores específicos da educação pública brasileiras – tal como os técnicos administrativos (TAEs) –, sob um governo que se valeu desses setores para derrotar seu oponente eleitoral (governo Bolsonaro, declarado inimigo do setor público e da classe trabalhadora como um todo), movimentações que indicavam mais uma intensificação do descontentamento crônico dos trabalhadores da educação do setor público. O que, inicialmente parecia ser só um foco de lutas, acabou por arrastar demais setores do serviço público brasileiro ligados direta ou indiretamente à educação pública brasileira e se configurou numa greve nacional, que hoje se tornou um impasse para as cúpulas estatais reformistas. Muitos segmentos ligados organicamente ou não a essa cúpula reformista, trataram de atacar a greve como se ela não nascesse de feridas objetivas e históricas das inúmeras gestões burguesas que o estado brasileiro já assistiu, acusaram-na de “ameaçar a democracia”, demonstrando que para muitos desses setores reféns dos acordos de gabinete, democracia é sinônimo de silêncio dos trabalhadores. A greve está aí, como sempre esteve em gestões supostamente progressistas e como esteve visceralmente nos anos em que Temer e Bolsonaro estiveram à frente do projeto (des)educacional do Estado brasileiro. E, principalmente, a greve está aí pois os problemas ainda estão aí e mais vivos que as promessas progressistas de valorização dos profissionais da educação. E momentos como esses, são educativos para a classe, pois obrigam os trabalhadores a se desvencilhar, mesmo que momentaneamente, das ilusões perpetradas pela dinâmica social capitalistas, levando-os, como disse Marx, “ a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas”. Em 22 de abril de 2024 tivemos mais um aniversário de um dos maiores dirigentes revolucionários marxista que formulou sobre as greves da classe trabalhadora mundial e organizou revoltas como essa que vemos: Vladímir Lênin. Apesar da idade centenária, seu pensamento ainda possui a cor de um adolescente que acorda para a complexidade da vida e desvela os problemas por trás das falsificações. Para nos ajudar a entender as greves de nosso tempo, busquemos em seus escritos o que existe de universal na classe, na luta e nos inimigos que devemos derrotar. Toda força aos grevistas! Com a palavra, Lênin: Prólogo por Rafael Jácome. Tradução por Edições Avante!. Revisão de tradução por Pedro Badô. Desde 1905, nas estatísticas oficiais das greves realizadas pelo Ministério do Comércio e da Indústria, foi estabelecida uma divisão permanente das greves em econômicas e políticas. Foi a vida que, gerando formas peculiares do movimento grevista, obrigou a estabelecer essa divisão. A combinação da greve econômica e da greve política é um dos traços principais desta peculiaridade. E atualmente, com a reanimação do movimento grevista, os interesses científicos, os interesses de uma atitude consciente frente aos acontecimentos, exigem que os operários analisem atentamente este traço peculiar do movimento grevista russo. Em primeiro lugar, citemos alguns números fundamentais tomados da estatística governamental das greves. Durante três anos, 1905-1907, o movimento grevista russo atingiu um nível que o mundo nunca tinha visto antes . A estatística governamental considera apenas as fábricas e grandes indústrias, de modo que as empresas de mineração, as ferrovias, a construção civil e muitos outros ramos do trabalho assalariado não são contados. Ainda assim, só nas fábricas e grandes indústrias, em 1905 entraram em greve 2 milhões e 863 mil pessoas, isto é, quase 3 milhões; em 1906, 1 milhão e 108 mil; e em 1907, 740 mil. Durante os quinze anos entre 1894 e 1908, período em que se começou a elaborar sistematicamente a estatística das greves na Europa, o maior número de grevistas num ano foi atingido na América — 660 mil. Consequentemente, os operários russos foram os primeiros no mundo a desenvolver uma luta grevista de massas como a que vimos em 1905-1907. Agora, no campo da greve econômica, os operários ingleses deram um novo grande impulso ao movimento. O papel de vanguarda dos operários russos explica-se não pelo fato de eles serem mais fortes, mais organizados, mais desenvolvidos que os da Europa ocidental, mas pelo fato de que na Europa ainda não houve grandes crises nacionais com uma participação independente das massas proletárias. Quando essas crises surgirem, as greves de massas na Europa serão ainda mais fortes do que na Rússia em 1905. Mas qual era a relação entre a greve econômica e a greve política nessa época? A estatística governamental dá a seguinte resposta: Número de grevistas em milhares 1905 1906 1907 Greves econômicas 1439 458 200 Greves políticas 1424 650 540 Total 2863 1108 740 Por aí se vê a ligação estreita e indissolúvel entre os dois tipos de greves. O ponto mais alto do movimento (1905) caracteriza-se pela mais ampla base econômica da luta: a greve política deste ano assenta sobre a base consistente e sólida da greve econômica. O número de grevistas econômicos é superior ao número de grevistas políticos. Com o declínio do movimento, em 1906 e 1907, vemos o enfraquecimento da base econômica: o número de grevistas econômicos reduz-se para 4 /10 do número total de grevistas em 1906 e para 3/10 em 1907. As greves econômicas e as políticas, portanto, apoiam-se mutuamente, constituindo uma fonte de força uma para a outra. Sem uma estreita ligação entre estas duas formas de greves, é impossível um movimento realmente amplo, de massas, e que, além disso, adquira uma importância popular . No início de um movimento, a greve econômica frequentemente tem a capacidade de despertar e agitar os atrasados, de generalizar o movimento, de elevá-lo a um grau superior. Por exemplo, no primeiro trimestre de 1905 a greve econômica predominou nitidamente sobre a greve política: a primeira contou 604 mil grevistas, a segunda apenas 206 mil. Mas no último trimestre de 1905 a relação inverteu-se: as greves econômicas respondem 430 mil grevistas e as greves políticas por 847 mil. Isto significa que, no início do movimento, muitos operários colocavam em primeiro plano a luta econômica, enquanto no período de maior ascensão, se verificou o contrário. Mas a ligação entre a greve econômica e a greve política sempre existiu. Sem essa ligação, repetimos, é impossível um movimento verdadeiramente grande e que realize grandes objetivos. Durante uma greve política, a classe operária se destaca como classe de vanguarda de todo o povo. O proletariado desempenha, em tais circunstâncias, não apenas o papel de uma das classes da sociedade burguesa, mas também o papel hegemônico, isto é, de dirigente, de vanguarda, de líder. As ideias políticas que se revelam no movimento têm um carácter popular, isto é, afetam as condições fundamentais, as condições mais profundas da vida política de todo o país. Este carácter da greve política — como observam todos os investigadores científicos da época de 1905-1907 — interessava no movimento todas as classes e em particular, naturalmente, as camadas mais amplas, numerosas e democráticas da população, o campesinato, etc. Por outro lado, sem reivindicações econômicas, sem a melhoria direta e imediata da sua situação, a massa dos trabalhadores nunca concordará em imaginar o "progresso" geral do país. A massa é atraída para o movimento, participa energicamente dele, dá-lhe grande valor e desenvolve o heroísmo, a abnegação, a perseverança e a entrega a uma grande causa apenas com a melhoria da situação econômica do trabalhador. As coisas não podem ser de outro modo, pois as condições de vida dos operários em tempos "normais" são incrivelmente duras. Ao mesmo tempo em que busca uma melhoria das condições de vida, a classe operária eleva-se também ao mesmo tempo moral, intelectual e politicamente, torna-se mais capaz de realizar os seus grandes objetivos de libertação. As estatísticas das greves, publicadas pelo Ministério do Comércio e da Indústria, confirmam plenamente essa importância gigantesca da luta econômica dos operários numa época de reanimação geral. Quanto mais forte é a pressão dos operários, mais serão as melhorias de vida que eles alcançarão. Tanto a "simpatia da sociedade" como a melhoria da vida são resultado de um elevado desenvolvimento da luta. Se os liberais (e os liquidacionistas) dizem aos operários: vocês são fortes quando têm a simpatia da "sociedade", um marxista diz aos operários uma coisa diferente: a "sociedade" simpatiza com vocês quando são fortes. Por sociedade deve entender-se, neste caso, como todas as camadas democráticas da população, a pequena burguesia, os camponeses, a intelectualidade em estreito contato com a vida operária, os empregados, etc. Foi em 1905 que o movimento grevista foi mais forte. E que se vê? Vemos que foi neste ano que os operários mais melhoraram suas vidas. As estatísticas governamentais mostram que de cada 100 grevistas, em 1905, apenas 29 terminaram a luta sem terem alcançado nada , isto é, sofreram uma derrota total. Em 10 anos (1895-1904), 52 grevistas, de cada 100, terminaram a luta sem ter alcançado nada! Isto quer dizer que o carácter de massas do movimento elevou o êxito da luta em proporções gigantescas, quase o dobro. E quando o movimento começou a enfraquecer, começou a diminuir também o êxito da luta: em 1906, de cada 100 grevistas, 33 terminaram a luta sem terem alcançado nada, ou melhor, foram derrotados; em 1907, foram 58; em 1908, 69 de cada cem!! Assim, os dados científicos das estatísticas de toda uma série de anos confirmam plenamente a própria experiência e as observações de cada operário consciente quanto à necessidade de unir a greve econômica e a greve política e à inevitabilidade dessa união resultar num movimento realmente amplo e popular. A atual onda do movimento grevista também confirma plenamente esta conclusão. Em 1911 o número de grevistas duplicou em relação a 1910 (100 mil contra 50 mil), mas, mesmo assim, este número era extremamente baixo; as greves puramente econômicas mantiveram-se relativamente "estreitas", não alcançando ainda uma importância popular. Pelo contrário, todos vêm agora que o movimento grevista deste ano, depois dos conhecidos acontecimentos de abril [1] , adquiriu exatamente essa importância. Por isso, é extremamente importante opor-se totalmente à deturpação que os liberais e os políticos operários liberais (os liquidacionistas) procuram introduzir no caráter do movimento. O liberal sr. Sievieriánin publicou no " Rúskie Védomosti " [2] um artigo contra a "mistura" na greve do dia primeiro de maio de "reivindicações" econômicas ou "quaisquer outras" (assim mesmo!), e o jornal kadete " Rietch " [3] reproduziu com simpatia os pontos essenciais desse artigo. "Ligar tais greves — escreve o senhor liberal — ao momento do 1° de Maio é, na maioria das vezes, algo infundado... Sim, é mesmo um tanto estranho: festejamos o feriado mundial do trabalho e, nessa ocasião, exigimos um aumento de 10% no madapolão de tais e quais tipos" ("Rietch" n.° 132). O que é "estranho" para o liberal, é perfeitamente compreensível para o operário. Só os defensores da burguesia e dos seus lucros exorbitantes podem zombar de uma reivindicação de "aumento". E os operários sabem que é exatamente o carácter amplo de uma reivindicação de aumento, é exatamente o carácter abrangente das greves que, mais que tudo, atrai a massa de novos participantes, que, mais que tudo, assegura a força da ofensiva e a simpatia da sociedade, que, mais que tudo, garante tanto o êxito dos próprios operários como o sentido popular do seu movimento. Por isso é necessário lutar resolutamente contra a deturpação liberal pregada pelo sr. Sievieriánin , pelo " Rúskie Védomosti " e pelo " Rietch ", e advertir, com todas as forças, os operários contra tão miseráveis conselheiros. O liquidacionista sr. V. Iêjov , logo no primeiro número do jornal liquidacionista Niévski Gólos [4] , faz a mesma deturpação, puramente liberal, embora aborde a questão de um ângulo um pouco diferente. O sr. V. Iêjov detém-se particularmente nas greves provocadas pela multa por participação no primeiro de maio. Referindo justamente à insuficiente organização dos operários, o autor retira dessa justa referência as conclusões mais erradas e mais prejudiciais para os operários. O sr. Iêjov vê a falta de organização no fato de que numa determinada fábrica fizeram greve simplesmente para protestar, numa outra acrescentaram reivindicações econômicas, etc. Mas, na realidade, nesta variedade de formas das greves não há absolutamente nenhuma falta de organização: é idiota conceber a organização obrigatoriamente como uniformidade! A falta de organização não se encontra de modo nenhum onde o sr. Iêjov a procura. Pior ainda é sua conclusão: "Devido a isso" (isto é, devido à variedade das greves e às diferentes formas de combinação da economia com a política) "num considerável número de casos, o carácter principal do protesto (afinal, não se faz greve por alguns trocados) minguou, foi complicado por reivindicações econômicas..." Este é um raciocínio verdadeiramente revoltante, inteiramente falso e inteiramente liberal! Pensar que a reivindicação de "alguns trocados" pode "minguar" o carácter principal do protesto significa descer ao nível de um kadete. Pelo contrário, sr. Iêjov , a reivindicação de "alguns trocados" não merece zombaria, mas de completo reconhecimento! Pelo contrário, sr. Iêjov, essa reivindicação não "mingua", mas reforça o "carácter principal do protesto"! Em primeiro lugar, a questão da melhoria da vida é também uma questão de princípios e uma importantíssima questão de princípios, e, em segundo lugar, eu não enfraqueço, antes reforço o meu protesto quando protesto não contra uma, mas contra duas, três, etc., manifestações de opressão. Todos os operários rejeitarão com indignação a revoltante deturpação liberal da questão pelo sr. Iêjov. E isto não é de modo nenhum um lapso do sr. Iêjov. Ele escreve mais adiante coisas ainda mais revoltantes: "A sua própria experiência deveria ter sugerido aos operários que era inadequado complicar o seu protesto com reivindicações econômicas, tal como complicar uma greve comum com reivindicações de princípios". Isto é falso, mil vezes falso! É uma vergonha para o Niévski Gólos publicar tais discursos. É absolutamente adequado aquilo que parece inadequado ao sr. Iêjov . E a experiência própria de cada operário, como a experiência de um número muito grande de operários russos no passado recente, diz o contrário daquilo que o sr. Iêjov ensina. Só os liberais podem protestar contra a "complicação" de uma greve, mesmo a mais "comum", com "reivindicações de princípios"; isto em primeiro lugar. E, em segundo lugar, o nosso liquidacionista engana-se profundamente ao medir o movimento atual com a medida das greves "comuns". E em vão o sr. Iêjov tenta encobrir o seu contrabando liberal com uma bandeira alheia, em vão ele embrulha a questão da combinação da greve econômica e da greve política com a questão da preparação de uma e da outra! Naturalmente, é muito desejável preparar e preparar-se, além disso, da maneira mais profunda, mais unida, mais coesa, mais ponderada e mais firme possível. Não há discussão sobre isso. Mas é preciso preparar, apesar opinião do sr. Iêjov, precisamente a combinação de ambos os tipos de greves. "Estamos diante de um período de greves econômicas — escreve o sr. Iêjov —. Seria um erro irreparável se elas se entrelaçassem com as ações políticas dos operários. Tal confusão teria um reflexo nocivo tanto na luta econômica dos operários como na luta política". Parece que não há mais para onde ir ! A queda do liquidacionista ao nível de um vulgar liberal está mais que claramente expressa nestas palavras. Cada frase contém um erro! É preciso transformar cada frase no seu contrário direto para obter a verdade! É falso que estejamos diante de um período de greves econômicas. Pelo contrário. Estamos diante de um período não só de greves econômicas. Estamos diante de um período de greves políticas. Os fatos, sr. Iêjov, são mais fortes do que as suas deturpações liberais, e se pudesse obter as fichas estatísticas das greves recolhidas no Ministério do Comércio e da Indústria, até essa estatística governamental o desmentiria completamente. É falso que o "entrelaçamento" seria um erro. Pelo contrário. Seria um erro irreparável se os operários não compreendessem toda a originalidade, todo o significado, toda a necessidade, toda a importância essencial desse "entrelaçamento". Mas os operários, felizmente, compreendem-no perfeitamente e rejeitam com desprezo a pregação dos políticos operários liberais. É falso, finalmente, que esse entrelaçamento "teria um reflexo nocivo" em ambas as formas. Pelo contrário. Ele tem um reflexo benéfico em ambas. Ele reforça ambas. O sr. Iêjov ensina a algumas "cabeças quentes" por ele descobertas. Ouçam-no: "É necessário reforçar organizativamente o estado de espírito das massas operárias"... — Santa verdade! — ... "É necessário intensificar a agitação a favor dos sindicatos, ganhar para eles novos membros...". Perfeitamente justo, mas ... mas, sr. Iêjov, é inadmissível reduzir o "reforço organizativo" apenas aos sindicatos! Lembre-se disto, sr. liquidacionista! "... Isto é tanto mais necessário quanto entre os operários se encontram agora muitas cabeças quentes, arrebatadas pelo movimento de massas e que nos comícios se pronunciam contra os sindicatos , como se fossem inúteis e desnecessários". Isto é uma calúnia liberal contra os operários. Não foi "contra os sindicatos" que se pronunciaram os operários, que causaram aborrecimentos e sempre causarão aborrecimentos aos liquidacionistas. Não, os operários pronunciaram-se contra a redução do reforço organizativo apenas aos "sindicatos", tão claramente expressa na frase precedente do sr. Iêjov. Os operários pronunciaram-se não "contra os sindicatos", mas contra a deturpação liberal do carácter da sua luta, a qual impregna todo o artigo do sr. Iêjov. O operário russo tem maturidade política suficiente para compreender a grande importância do seu movimento para todo o povo. Tem maturidade suficiente para compreender toda a falsidade, toda a miséria da política operária liberal, e ele sempre a rejeitará com desprezo. Nievskaia Zvezdá , nº 10, 31 de maio (13 de junho, no calendário gregoriano) de 1908. Notas: [1] Trata-se dos acontecimentos nas minas de ouro na bacia do rio Lena, em 4 de abril de 1912: as tropas tsaristas dispararam contra uma passeata pacífica dos grevistas, que protestavam contra a prisão dos membros do comitê de greve. Estes acontecimentos serviram de estímulo ao reforço do ascenso revolucionário na Rússia; por todo o país alastrou uma onda de manifestações de rua e greves de protesto. (nota das Edições Avante! ) [2] Jornal publicado em Moscou de 1863 a 1918; expressava as opiniões da intelligentsia liberal moderada. A partir de 1905, o jornal foi órgão da ala direita do partido democrata-constitucionalista. (nota das Edições  Avante! ) [3] Jornal diário, órgão central do partido democrata-constitucionalista . Publicou-se em Petersburgo de 1906 a 1917. (nota das Edições  Avante! ) [4] Jornal legal dos mencheviques liquidacionistas ; publicou-se em Petersburgo em maio e agosto de 1912. (nota das Edições  Avante! )

  • L. N. Tolstói e sua época

    por V. I. Lênin Imagem: Prokudin-Gorski Com o presente texto, chegamos ao fim da série em que buscamos revisar e divulgar as traduções dos escritos de Lênin sobre Tolstói . Tal como todos os textos anteriores, sua primeira tradução para a língua portuguesa, também de Eneida de Morais, foi feita com base na tradução francesa de Jean Fréville ( Trechos escolhidos sobre literatura e arte: Marx, Engels, Lenin e Stalin.  Rio de Janeiro: Editorial Calvino, 1945 ). Partindo de tal versão em português, e comparando com as versões em espanhol ( Lenin, V. I. Obras completas. Tomo XX, Moscou: Progreso, 1983, p. 106-110 ) e em inglês ( Lenin, V. I. Collected Works . Vol. 17, Moscou: Progress Publishers, 1974, p. 49-53 ), realizamos consultas ao original russo, através das Obras Completas de Lênin, sempre buscando restabelecer o sentido de alguns elementos – como termos, palavras e ideias – que o texto prece ter perdido pela tradução indireta feita para o português. Revisão de tradução por Pedro Badô. Revisão textual por Wesley Sousa. A época a qual pertence L. Tolstói, que está refletida com tanto relevo em suas geniais obras literárias e em seus ensinamentos, é aquela compreendida entre 1861 e 1905. É verdade que a atividade literária de Tolstói começou antes e terminou depois desse intervalo de tempo, mas L. Tolstói se formou definitivamente como escritor e como pensador precisamente nesse período, cujo caráter transitório deu origem a todos os traços distintivos das obras de Tolstói e do “tolstoísmo”. Através de K. Liévin [1] , L. Tolstói expressou em “ Anna Kariênina ”   [2] , com muita vivacidade, a natureza da transformação ocorrida na história da Rússia durante aquele meio século. “(...) conversas sobre agricultura, colheitas, trabalhadores assalariados e tudo o mais que, Liévin sabia, era de bom-tom considerar como algo muito rasteiro, mas que agora lhe parecia o único assunto importante. ‘Talvez não fosse o mais importante no tempo da servidão, nem seria importante na Inglaterra. Em ambos os casos, as condições estavam perfeitamente estabelecidas; mas entre nós, na Rússia, agora, quando tudo se pôs em desordem e apenas se esboça uma organização, a única questão importante é como essas condições irão se configurar’, pensava Liévin.” (Obras, v. X, p. 137) “Na Rússia, agora, quando tudo se pôs em desordem e apenas se esboça uma organização”. É difícil imaginar uma caracterização mais adequada do período de 1861-1905. O que “se pôs em desordem” é familiar ou, pelo menos, bem conhecido de todos os russos. O que “se pôs em desordem” foi a servidão e toda a “velha ordem” que a ele correspondia. Aquilo que apenas “esboça uma organização” é completamente desconhecido, alheio e incompreensível para amplas massas da população. Tolstói concebeu essa ordem burguesa, que apenas “esboça uma organização”, de maneira vaga, na forma de um espantalho: a Inglaterra. Precisamente um espantalho porque Tolstói rejeita, por princípio, por assim dizer, todo intento de explicitação das características fundamentais do regime social dessa “Inglaterra”, a vinculação entre esse regime e a dominação do capital, com o papel desempenhado pelo dinheiro, com o surgimento e o desenvolvimento das trocas. Assim como os naródniki [3] , ele se recusa a ver, fechava os olhos, rejeitava a ideia de que o regime do qual “apenas se esboça uma organização” na Rússia é, precisamente, o regime burguês e nenhum outro. É verdade que, se não a “única questão importante”, certamente era uma das mais importantes do ponto de vista das tarefas imediatas de toda a atividade social e política na Rússia do período de 1861-1905 (e também de nossa época), a de “que organização” esse regime assumirá, esse regime burguês que tomava formas muitos diferentes na “Inglaterra”, na Alemanha, na América, na França, etc. Porém, essa abordagem tão clara e historicamente concreta da questão é algo absolutamente estranho para Tolstói. Ele pensa em abstrato, reconhece apenas o ponto de vista dos princípios “eternos” da moral, das verdades eternas da religião, sem compreender que esse ponto de vista é apenas um reflexo ideológico do velho regime (posto “em desordem”), do regime de servidão, do modo de vida dos povos orientais. Em Lucerne  (obra escrita em 1857), Tolstói afirma que considerar a “civilização” como um bem é uma “concepção imaginária”, que “destrói a necessidade instintiva, a mais bem-aventurada necessidade primitiva de praticar o bem que sente a natureza humana”. “Temos um único guia infalível” – exclama Tolstói – “o Espírito Universal, do qual somos impregnados” (Obras, II, 125). Em A escravidão dos nossos tempos  (obra escrita em 1900), repetindo com mais entusiasmo esses apelos ao Espírito Universal, afirma que a economia política é uma “falsa ciência” porque toma como “modelo” a “pequena Inglaterra, onde as condições são as mais excepcionais”, em vez de tomar como modelo “a condição dos homens do mundo inteiro em todas as épocas históricas”. O “mundo inteiro” nos é revelado no artigo O progresso e a definição de educação  (1862). A concepção dos “historiadores”, de que o progresso é uma “lei geral para a humanidade”, é refutada por Tolstói ao fazer referência a “tudo o que se conhece como Oriente” (IV, 162). “Não existe uma lei geral do progresso da humanidade” – afirma Tolstói – “e isso se comprova pela imobilidade dos povos do Oriente”. O tolstoismo, em seu real conteúdo histórico, é uma ideologia de um regime oriental, um regime asiático. Daí o ascetismo, a não resistência ao mal por meio da violência, as profundas notas de pessimismo, a convicção de que “tudo é nada, tudo é… nada material” ( Do sentido da vida , p. 52) e a fé no “Espírito”, “princípio de tudo”, em relação ao qual o homem é apenas um “trabalhador” “aplicado à tarefa de salvar sua alma”, etc. Tolstói é fiel a essa ideologia em A sonata de Kreutzer , quando diz que “a emancipação da mulher não está nas escolas, nem nos parlamentos, mas sim no quarto de dormir” [4] , e em um artigo escrito em 1862, em que declara que as universidades preparam unicamente “liberais enfezados e doentes”, que “não têm nenhuma utilidade ao povo”, os quais, “inutilmente arrancados de seu contexto em que se formaram”, “não encontram um lugar na vida”, etc. (IV, 136-137). O pessimismo, a não resistência, o apelo ao “Espírito”, constituem uma ideologia que surge, inevitavelmente, em uma época em que todo o velho regime “se pôs em desordem” e em que a massa, criada sob esse velho regime, que sorveu, junto do leite materno, os princípios, os costumes, as tradições e as crenças desse regime, não vê e nem pode ver qual é o novo regime que “esboça uma organização”, quais forças sociais o fazem se “organizar” e como o fazem, quais forças sociais podem trazer a libertação dos sofrimentos inumeráveis e extraordinariamente graves, próprios das épocas de “agitações”. O período de 1862-1904 foi, precisamente, um período de agitações na Rússia, um período em que o velho regime colapsava, definitivamente, a olhos vistos e em que o novo regime apenas esboçava uma organização; as forças sociais que faziam esse novo regime se organizar manifestaram-se pela primeira vez, em nível nacional, por meio de uma ação aberta de massas, em diversos campos, apenas em 1905. E os acontecimentos de 1905 na Rússia foram sucedidos por acontecimentos análogos em vários países desse mesmo “Oriente”, o qual Tolstói havia atribuído certa “imobilidade” em 1862. O ano de 1905 marcou o começo do fim do imobilismo “oriental”. Precisamente por isso, esse ano marca o fim histórico do tolstoismo, o fim daquela época que possibilitou e tornou inevitável o surgimento dos ensinamentos de Tolstói, não como algo individual, não como um capricho ou um modismo, mas sim como ideologia que emerge das condições de vida sob as quais se encontravam, efetivamente, milhões e milhões de viventes durante o decorrer de certo tempo. As ideias de Tolstói são, sem dúvida alguma, utópicas e, em seu conteúdo, reacionárias, no sentido mais preciso e mais profundo da palavra. Mas isso, certamente, não significa que essas ideias não sejam socialistas ou que elas não contenham elementos críticos capazes de fornecer um valioso material para instruir as classes avançadas. Há vários tipos de socialismo. Em todos os países onde predomina o modo de produção capitalista, há um socialismo que expressa a ideologia da classe que deve ocupar o lugar da burguesia e há um socialismo que expressa a ideologia das classes que deverão ser substituídas pela burguesia. O socialismo feudal, por exemplo, corresponde a esse último tipo, o qual teve suas características, junto de outros tipos de socialismo, analisadas há algum tempo, há mais de setenta anos, por Marx [5] . Além disso, há elementos críticos intrínsecos aos pensamento utópico de Tolstói, assim como em muitos sistemas teóricos utópicos. Porém, não se deve esquecer da constatação fundamental de Marx de que a importância dos elementos críticos do socialismo utópico “está em razão inversa com o desenvolvimento histórico”. Quanto mais a atividade do conjunto de forças sociais, que “esboça [a] organização” da nova Rússia e que traz a eliminação dos atuais males sociais, se desenvolve e assume um carácter mais concreto, mais rapidamente o socialismo crítico-utópico “perde todo o valor prático e toda a justificação teórica”. Há um quarto de século, os elementos críticos do pensamento de Tolstói podiam ter, por vezes, utilidade prática para certas camadas da população, apesar  dos traços reacionários e utópicos do tolstoismo. No decorrer dos últimos anos, por volta da última década, não ocorreu o mesmo, pois o desenvolvimento histórico demonstrou considerável progresso entre a década de 1880 e o fim do século passado. Nos dias de hoje, depois que muitos dos acontecimentos mencionados anteriormente puseram fim ao imobilismo “oriental”; nos dias de hoje, quando as ideias conscientemente reacionárias dos Viekhi   [6] – reacionárias no sentido da estreiteza de classe, de uma classe egoísta – foram amplamente difundidas entre a burguesia liberal e contaminaram também parte dos pretensos marxistas, criando a tendência “liquidacionista”; nos dias de hoje, toda a tentativa de idealizar o pensamento de Tolstói, de justificar ou suavizar sua “não resistência”, seus apelos ao “Espírito”, suas incitações ao "autoaperfeiçoamento moral”, suas teorias da “consciência” e o “amor” universal, sua pregação do ascetismo e do quietismo, etc., é um dano muito direto e muito profundo. Zvezdá , nº 6, 22 de janeiro (4 de fevereiro, no calendário gregoriano) de 1911. Notas: [1]   Konstantin Dmítritch Liévin, personagem de Anna Kariênina  notadamente inspirado no próprio autor, não apenas expressa características pessoais, como também dá voz a questões teóricas – como o problema da terra e da produção rural russa – do próprio Tolstói. [2]   Tradução de Rubens Figueiredo. Cf. Tolstói, L. Anna Kariênina . São Paulo: Cosac & Naify, 2009 [3]   O narodnismo [ narodnichestvo ] é conhecido nas traduções para o português como a corrente política dos “populistas” russos [4]   Ao se referir ao ascetismo, ao pessimismo e à não resistência de Tolstói, Lênin cita aqui um trecho do romance A sonata de Kreutzer  que, tanto no texto em inglês como no texto em espanhol, tem um sentido muito próximo de “a emancipação da mulher não está nas escolas, nem nos parlamentos, mas sim no quarto de dormir” [“ the emancipation of woman lies not in colleges and not in parliaments, but in the bedroom ”]. No entanto, na mais recente edição brasileira de A sonata de Kreutzer  – traduzida por Boris Schnaiderman –, encontramos o trecho vertido da seguinte maneira:   “Libertam a mulher nas escolas e nos parlamentos, mas olham-na como um objeto de prazer”. Assim, é preciso esclarecer que, conhecendo um pouco tanto do “tolstoísmo”, como do pensamento leniniano, nos parece que o que Lênin destaca nesse trecho é o ceticismo de Tolstói em relação à luta política. Neste mesmo romance encontramos a afirmação de que “libertam a mulher, concedem-lhe toda espécie de direitos, iguais aos do homem, mas continuam a ver nela um instrumento de prazer, e assim a educam na infância e, depois, por meio da opinião pública. E eis que ela continua sendo a mesma escrava humilhada e pervertida, e o homem o mesmo senhor pervertido de escravos”. Segundo Tolstói, a libertação da mulher se dá através do celibato, e se inicia no âmbito estrito da conduta individual. “Ginásios e escolas superiores não podem alterar isso. Pode mudá-lo unicamente a modificação do modo pelo qual o homem olha a mulher, e pelo qual ela mesma se olha. Isto se modificará unicamente quando a mulher passar a considerar a condição de virgem como a mais elevada, e não como agora, quando a condição mais alta de uma pessoa considera-se uma vergonha, um opróbrio” (Tolstói, L. A sonata de Kreutzer . São Paulo: Editora 34, 2010, p. 50-51). [5]   Daqui em diante, Lênin se refere ao Manifesto do Partido Comunista . Marx, K.; Engels. F. Selected Works , Vol. I, Moscou, 1958, p.21-64. (Nota dos tradutores de língua espanhola e inglesa). [6]  Os Viekhi – também conhecidos pelo título em inglês  Landmarks ou Signposts  – é uma coleção de ensaios publicada pela primeira vez em Moscou na primavera de 1909. Segundo o próprio Lênin, os Viekhi  são uma “conhecida compilação feita pelos mais influentes ensaístas kadetes [constitucional-democratas]” – como Berdiaev, Bulgakov, Gershenzon, Izgoev, Kistiakovski, Struve e Frank –, que “foi recebida com entusiasmo por toda a imprensa reacionária e constitui um autêntico símbolo da época”. Os artigos   tentavam colocar em questão as tradições democráticas revolucionárias do movimento popular russo, os pensadores como Belinski, Dobroliubov, Tchernishevski e Pisarev e o movimento revolucionário de 1905. Uma análise de Lênin sobre os Viekhi pode ser encontrada em Acerca de Veji, in: Obras completas . Tomo XVI, Madrid: Akal, 1977, p. 119-127.

  • Fanon sobre o suposto complexo de dependência do colonizado: por uma crítica à metafísica racial.

    por Marcos Castilho. Fanon discursando em Acra, capital de Gana, 1958. Foto: desconhecido. " Eu, homem de cor, quero apenas uma coisa: Que o instrumento jamais domine o homem. Que cesse para sempre a escravização do homem pelo homem. Ou seja, de mim por outro. Que me seja permitido descobrir e desejar o homem, onde quer que se encontre. ” Frantz Fanon, À guisa de uma conclusão in  Pele negra, máscaras brancas, 2020, p. 242. Em Pele negra, máscaras brancas  ( Peau noire, masques blancs ), Fanon está preocupado em contribuir com a “desalienação do negro”, portanto, de fazer com que o negro, em especial o negro das colônias francesas, se veja e se coloque para além da mistificação que está posta pela colonização. Claro, Fanon mesmo reconhece que essa alienação tem bases materiais, encarnadas pelo colonialismo, que opera um processo de interdição do reconhecimento do negro como humano, e que “a verdadeira desalienação do negro requer um reconhecimento imediato das realidades econômicas e sociais” (Fanon, 2020, p. 25). Noutra passagem o autor menciona que “o problema negro não se desfaz no problema dos negros vivendo entre os brancos, mas sim no problema dos negros sendo explorados, escravizados, desprezados por uma sociedade capitalista, colonialista, acidentalmente branca”. Portanto, o mito do negro, criado pelo branco, que no ato da criação do Outro cria a si próprio, corresponde à vida material que produz e reproduz o capital (Cf. Rodrigues Barros, 2019). Fanon quer o fim do mundo. A desmistificação que ele propõe resulta do fato de que “o meio e a sociedade é que são responsáveis por sua mistificação” (Fanon, 2020, p. 226). É preciso acabar com esse mundo, e que mundo é esse? Ora, é o mundo da sociedade burguesa: (...) a alienação intelectual é uma criação da sociedade burguesa. E chamo de sociedade burguesa qualquer sociedade que se esclerosa em formas específicas, impedindo qualquer evolução, qualquer avanço, qualquer progresso, qualquer descoberta. Chamo de sociedade burguesa uma sociedade fechada, em que a vida não é boa, onde o ar é pútrido, com as ideias e as pessoas em putrefação. E creio que um homem que se posiciona contra essa morte é, de certo modo, um revolucionário (ibidem, p. 236). A empreitada fanoniana, inicialmente intitulada de Essai sur la désalienation du Noir [Ensaio sobre a desalienação do negro] , sob a forma de dissertação para conclusão do curso de medicina, do início da década de 50, não teve boa recepção no meio acadêmico da França, e sequer viu a luz do dia naquele momento já que seu orientador a rejeitou por confrontar certas convenções acadêmicas, e especialmente por se opor ao positivismo que imperava na psiquiatria francesa, que reduzia os aspectos psicológicos tão somente aos fenômenos fisiológicos, sendo obrigado a apresentar outro trabalho para a conclusão de seu curso (Cf. Faustino, 2015). O trabalho de Fanon se opõe ao essencialismo racial, que aqui chamamos de metafísica racial, por procurar um elemento dado na biologia ou cultura do negro e pretender torná-lo estanque, fixado à “alma do negro”, de forma trans-histórica. Disso compreendemos a resistência da intelectualidade francesa vigente na psiquiatria da época em receber tal obra. Aqui nos preocupamos com um aspecto específico da crítica fanoniana, que consiste em sua objeção em relação ao assim chamado¹ complexo de dependência do colonizado, capítulo 4 do Pele negra, máscaras brancas . Tal capítulo nos parece relevante sob dois aspectos: primeiro, pela análise concreta de um pensamento que explica a colonização a partir de uma suposta condição psicológica do colonizado, nisso explicitamos como a crítica de Fanon a Mannoni é também uma crítica, em um plano mais amplo, à metafísica racial; segundo, por restar claro nesse momento da obra o caráter materialista do pensamento fanoniano, que busca a todo tempo remeter a questão psicológica do colonizado às condições materiais que lhe são subjacentes, sem recair em uma patologização típica da psiquiatria de seu tempo, muito pelo contrário, o autor tem por central a crítica dessa patologização.  Para tratar da questão, a obra à qual o pensador martinicano se refere (e em alguma medida combate) é Psychologie de la colonisation (em inglês Prospero and Caliban: The psychology of colonization ), de Octave Mannoni. Em tal obra o psicanalista francês busca analisar psicologicamente aquilo que ele chama de situação colonial, que pode ser descrita como o encontro entre “civilizados” e “primitivos”, do qual decorre uma série de ilusões e erros (Mannoni, 1990). Contudo, Fanon já aponta uma fragilidade na obra em seu ponto mais fundamental, ou seja, naquilo com o qual ela se propõe a lidar, haja vista que o autor francês busca estabelecer na forma de ser do malgaxe (o exemplo utilizado de “povo não civilizado”) um complexo de inferioridade que remonta à sua infância, em seu próprio desenvolvimento cultural e, portanto, em algo que está dado anteriormente à colonização. Essa problemática inicial leva Fanon a confrontar a posição de Mannoni acerca da relação entre racismo e economia, que em um plano mais amplo refere-se à responsabilidade da Europa sobre o racismo colonial empreendido contra os “povos não civilizados” das colônias. Mannoni defende, por exemplo, que tanto não é verdade que a “civilização europeia” é a responsável pelo racismo colonial, bem como que o racismo não reproduz a situação econômica, que isso é algo perpetrado por funcionários menores, pequenos comerciantes e colonos fracassados, e cita a situação da África do Sul, em que “os trabalhadores brancos são tão racistas quanto seus empregadores e gerentes, e muita das vezes até mais” (Mannoni, 1990, p. 24)². Fanon nos remete a uma questão mais profunda para criticar Mannoni e resolver ambas as questões (a reprodução da situação econômica pelo racismo e a Europa enquanto responsável pelo racismo colonial): a estrutura econômica.  (...) poderíamos retorquir que esse deslocamento da agressividade do proletariado branco para o proletariado negro é, fundamentalmente, uma consequência da estrutura econômica da África do Sul. O que é a África do Sul? Um caldeirão no qual 2 530 300 brancos espancam e confinam 13 milhões de negros. Se os brancos pobres odeiam os negros, não é porque, como Mannoni daria a entender, “o racismo é obra dos pequenos comerciantes e pequenos colonos que trabalharam muito, mas sem grande sucesso”. Não, é porque a estrutura da África do Sul é uma estrutura racista (Fanon, 2020, p. 102). A partir de Césaire³, Fanon responsabiliza a civilização europeia e seus representantes mais qualificados pelo racismo colonial, pois o fato de esses grandes representantes não praticarem por eles mesmos a violência que constitui o racismo, é porque outros, ao seu mando, o fazem, e os beneficiam por o fazerem. Disso nosso autor extrai algo que após a exposição do argumento nos parece óbvio, mas que é catártico para aquele momento e também explica a rejeição da própria obra: a Europa tem uma estrutura racista. Não adianta dizer que a França é o país menos racista do mundo ⁴ , para Fanon “uma sociedade é racista ou não é” (2000, p. 101), e é inócuo verificar no que um comportamento desumano se diferencia de outro, ou mesmo possíveis gradações entre desumanidades ⁵ . Tais abstrações acerca do racismo não lhe parecem razoáveis, é preciso que a questão ganhe um caráter concreto: o objeto das formas de exploração é um só, o homem, e nas tentativas de “considerar no plano da abstração a estrutura desta ou daquela exploração, mascara-se o problema capital, fundamental, que é o de restituir o homem a seu devido lugar” (ibidem, p. 103). Em ato contínuo, para contraditar a tese de Mannoni sobre o complexo da inferioridade vinculado à cor da pele aparecer somente entre indivíduos em minoria que vivem entre uma maioria predominante de outra cor ⁶ , Fanon suscita o fato de que um branco nas colônias jamais se sentir inferior em relação ao negro no que quer que fosse. Cita como exemplo sua terra natal, a Martinica, onde naquele tempo havia duzentos brancos que se consideravam superiores a 300 mil pessoas negras. Portanto, para o autor martinicano, o complexo da inferioridade não está vinculado a uma questão demográfica, é produto daquilo que lhe é correlato, qual seja, da superioridade europeia. Em síntese, “é o racista que cria o inferiorizado ⁷ ” (ibidem, p. 107). Resta ainda em Mannoni o caso excepcional, em que mesmo em um meio homogêneo sobre a cor de pele de seus integrantes o complexo de inferioridade aparece, acerca do qual Fanon se pronuncia: O que quer dizer dos casos excepcionais de que nos fala Mannoni? São simplesmente aqueles em que o evoluído de repente se descobre rejeitado por uma civilização que ele, no entanto, assimilou. De modo que a conclusão seria a seguinte: na medida em que o verdadeiro tipo malgaxe do autor assume suas “condutas dependentes”, tudo corre bem; porém, se ele esquece o seu lugar, se decide se equiparar ao europeu, então o dito europeu se irrita e rejeita o insolente – que, nesse momento e nesse “caso excepcional”, paga com um complexo de inferioridade por sua recusa à dependência (Fanon, 2020, p. 108). Nesse imbróglio, Mannoni coloca o malgaxe em um beco sem saída: ou ele “escolhe” a dependência ou a inferioridade. Para o autor francês, existe em determinados povos a necessidade da colonização, motivada pelo complexo de dependência, e os lugares onde a Europa fundou colônias eram ambientes propícios a isso, em que os colonizados tinham marcado em seus mitos ⁸  o desejo inconsciente de receberem os colonos, encarnados no branco com complexo de autoridade, a fazer sua chefia recair nos colonizados, previamente dotados do complexo de dependência, afeitos pela relação de exploração antes mesmo de ela se concretizar, portanto, um elemento fixado em seu ser, algo como um “destino manifesto” à colonização. Fanon combate essa posição essencialista tratando a gênese das raças a partir da colonização. A raça, seja branco ou negro, é relacional, está dada na cisão do homem que o branco opera, e que no processo cria não apenas o negro como a si próprio, e para tanto aliena o outro e a si: “a alteridade para o negro não é o negro, mas o branco” (2020, p. 111). No caso da colonização de Madagascar, a vinda do europeu não significa uma somatória ao que estava preestabelecido, mas uma decomposição da personalidade do malgaxe. Nosso autor pega a exemplo a religião, da desarmonia que está colocada entre o negro colonizado com a doutrina cristã, e se o malgaxe (ou o negro colonizado no geral) não apreende os ensinamentos de Cristo, isso não se deve a uma incapacidade de assimilação, mas por essa apreensão exigir uma nova conformação, não apenas a assimilação de certos valores abstratos à sua visão de mundo ( Weltanschauung ), enquanto esses colonizados mal conseguem saciar sua fome. Mannoni ignora o aspecto relacional da identidade malgaxe, que de forma nenhuma está posta em si mesma, como um dado de uma metafísica racial, expressa em uma visão de mundo, e nessa ignorância contribui com a mistificação das relações raciais. Sobre isso Fanon é implacável: Após ter encerrado o malgaxe em seus costumes, após ter realizado uma análise unilateral da sua visão de mundo, após ter descrito o malgaxe em um círculo restrito, após ter dito que o malgaxe mantém relações de dependência com os ancestrais, características essas altamente tribais, o autor, ao arrepio de toda e qualquer objetividade, aplica suas conclusões a uma compreensão bilateral – ignorando deliberadamente que, desde Gallieni, o malgaxe não existe mais. (...) o malgaxe existe com o europeu (Fanon, 2020, p. 109, 111). Se chegada do branco a Madagascar é a satisfação de um desejo inconsciente, dado por “mecanismos mágico-totêmicos”, ou por um complexo de dependência que se expressa no plano mitológico, na constituição cultural do povo, nada disso importa primariamente, mas sim o significado prático da realização de uma ferida absoluta cujas consequências não são apenas psicológicas, mas que formam novas relações sociais. O malgaxe sequer era malgaxe antes da chegada do branco. Aliás, o malgaxe é malgaxe na medida em que o branco é branco. O sofrimento psíquico que Mannoni aponta na passagem da dependência à inferioridade malgaxe só existe quando o colonizador impõe em todas as instâncias sua discriminação, que torna o malgaxe um colonizado que tenta ascender à condição de humano pela tentativa desesperada de se tornar branco.  Na busca da apreensão do inconsciente do malgaxe, Mannoni traz sete sonhos, seis de crianças e um de um adulto, os quais não nos interessa trazer na íntegra, para tanto, basta conferir as páginas 89, 90 e 91 da obra do autor francês (Mannoni, 1990). Nos interessa aqui a análise de Fanon a respeito e a crítica à psicanálise freudiana que dela decorre. Em resumo, são sonhos aterrorizantes, em que as figuras que operam o terror são negras, sejam elas humanas ou não ⁹ . Para Fanon, a questão se apresenta através da repressão a atos insurrecionais praticados pelos colonizados, mobilizando, para tanto, soldados negros. O objetivo era certo: criar antagonismos entre as tentativas de libertação dos “povos de cor” e a repressão como resposta a tais tentativas praticadas por outros “povos de cor”. O intuito do pensador martinicano ao trazer tal fato é situar o sonho em seu tempo e lugar. No caso, o tempo era um “período em que 80 mil nativos foram mortos, isto é, um a cada cinquenta habitantes”, e o lugar “é uma ilha de 4 milhões de habitantes, onde nenhuma relação genuína pode ser instaurada” (Fanon, 2020, p. 117). Portanto, o sonho tem base real: “O touro negro furioso não é o falo. (...) O fuzil do soldado senegalês não é um pênis, mas realmente um fuzil Lebel 1916” (ibidem, p. 120). Os fantasmas que permeiam os sonhos retratados por Mannoni são reais, apontam para as condições econômicas e sociais das lutas de classes ¹⁰ . Um exemplo oposto na forma de lidar com o sonho é citado por Fanon, em referência a um paciente seu, um homem negro, que lhe contou: “Caminho por muito tempo, estou muito cansado, tenho a impressão de que algo me espera, atravesso barreiras e paredes, chego a um cômodo vazio e, detrás de uma porta, escuto um barulho, hesito antes de entrar, por fim me decido, entro, há brancos nesse segundo cômodo, percebo que eu também sou branco”, e quando busco compreender esse sonho, analisá-lo, sabendo que esse amigo tem dificuldades para progredir, concluo que esse sonho realiza um desejo inconsciente. No entanto, fora do meu laboratório de psicanalista, quando a questão for integrar minhas conclusões ao contexto do mundo, direi: 1º Meu paciente sofre de um complexo de inferioridade. Sua estrutura psíquica corre o risco de se dissolver. É preciso preservá-la e, pouco a pouco, libertá-la desse desejo inconsciente. 2º Se ele encontra a tal ponto imerso no desejo de ser branco, é porque vive em uma sociedade que torna possível seu complexo de inferioridade, uma sociedade que extrai sua consistência da preservação desse complexo, uma sociedade que afirma a superioridade de uma raça; é na exata medida em que essa sociedade lhe cria dificuldades que ele se vê colocado numa situação neurótica (Fanon, 2020, p. 109, 113-114). O pensador martinicano remete a questão constitutiva do sonho, qual seja, o complexo de inferioridade, à realidade material, ao processo de colonização. Em relação aos malgaxes não é diferente, a conclusão é que o “sentimento de inferioridade”, decorrente do suposto complexo de dependência, experimentado pelo povo de Madagascar, é uma criação do colonialista, que geralmente é um traficante, que reduz o malgaxe a sua identidade, interditando na colonização o reconhecimento desse outro como humano. Em síntese, Fanon aponta que esses supostos complexos, seja o de dependência ou o consequente de inferioridade, que levam o negro a querer se embranquecer, estão consubstanciados em uma sociedade que torna possível seus respectivos desenvolvimentos, portanto, a questão fanoniana torna-se mais nítida ainda. O psicologismo que unilateraliza a condição do negro e encerra sua identidade em si mesma, produzindo uma metafísica racial, é o grande alvo da crítica do pensador martinicano nesse capítulo. A desalienação do negro, a recuperação da humanidade perdida (que não redunda em um restabelecimento de estruturas sociais anteriormente postas, na tentativa de ressuscitação de uma cultura assassinada) tem por condição a superação da sociedade burguesa, das estruturas sociais que possibilitam o estabelecimento de relações de inferioridade racial. Entre as alternativas dadas ao negro, de embranquecer-se ou desaparecer, Fanon pretende expor outra, que tem por necessário trazer à consciência o que está no inconsciente, de apresentar como resposta para a questão da interdição do reconhecimento a luta política com um objetivo: o fim do mundo. Notas: ¹  Usamos a expressão “o assim chamado” em referência ao capítulo XXIV de O Capital  de Karl Marx, intitulado A assim chamada acumulação primitiva . Capítulo no qual Marx trata daquilo que ele chama de expropriação originária, que nos remete em alguma medida à gênese do capitalismo, mas não somente a ela, contrastando ao trato que Adam Smith, em A riqueza das nações  dá à questão, mistificando a história ao tratar o surgimento da burguesia e do operariado como um fenômeno decorrente da perspicácia de determinados indivíduos, que entesouravam suas riquezas pensando no futuro, enquanto outros, vadios, punham-se a gastar tudo o que tinham até não terem mais nada a vender senão sua força de trabalho (Cf. Marx, 2013). Acreditamos que a comparação vem a calhar tendo em vista especialmente que no capítulo 4 da obra de Fanon o autor também se opõe a uma mistificação da história, mas em outro sentido, conforme será abordado ao decorrer do presente texto. ²  “(...) in South Africa the white labourers are quite as racialist as the employers and managers and very often a good deal more so ” (tradução nossa). ³  Aimé Césaire nesse momento traz à tona a hipocrisia europeia que se horroriza com o terror nazismo, mas que legitima aquilo que a gestou, o colonialismo: “As pessoas espantam-se, indignam-se. Dizem “Como é curioso! Ora! É o nazismo, isso passa!”. E aguardam, e esperam; e calam em si próprios a verdade – que é uma barbárie, mas a barbárie suprema, a que coroa, a que resume a quotidianidade das barbáries; que é o nazismo, sim, mas que antes de serem as suas vítimas, foram os cúmplices; que o toleraram, esse mesmo nazismo, antes de o sofrer, absolveram-no, fecharam-lhe os olhos, legitimaram-no, porque até aí só se tinha aplicado a povos não europeus; que o cultivaram, são responsáveis por ele, e que ele brota, rompe, goteja, antes de submergir nas suas águas avermelhadas de todas as fissuras da civilização ocidental e cristã” (Césaire, 1978, p. 17-18). ⁴  Mannoni inicia o segundo capítulo dizendo: “ France is unquestionably one of the least racialist-minded countries in the world ”. (“A França é inquestionavelmente um dos países menos racistas do mundo”) (1990, p. 110, tradução nossa). ⁵  Fanon diz que Mannoni não se dá conta de que “para um judeu, as diferenças entre o antissemitismo de Maurras e o de Goebbels são imperceptíveis” (2020, p. 101). ⁶  “ In practice, therefore, an inferiority complex connected with the colour of the skin is found only among those who form a minority within a group of another colour. In a fairly homogeneous community like that of the Malagasies, where the social framework is still fairly strong, an inferiority complex occurs only in very exceptional cases ” (“Na prática, portanto, um complexo de inferioridade conectado com a cor da pele é encontrado apenas entre aqueles que formam uma minoria dentro de um grupo de outra cor. Em comunidades bastante homogêneas como a malgaxe, onde as estruturas sociais ainda são bastante fortes, um complexo de inferioridade ocorre somente em casos muito excepcionais”) (Mannoni, 1990, p. 39, tradução nossa). ⁷  Fanon remete a Sartre nesse ponto, pensador pelo qual tem em grande estima e cita positivamente em várias partes de sua obra, e aqui especificamente tendo em vista A Questão Judaica , no qual a frase “o antissemita é quem faz o judeu” (Cf. Sartre, 1995) é levada até as últimas consequências por nosso autor. É também o branco quem faz o negro, não somente em seu caráter mistificado, como referimo-nos no início desse texto, mas em todas as suas instâncias, daí a frase de Fanon: “O negro não existe. Não mais que o branco” (2020, p. 242), que além de uma constatação é uma chamada para a luta política conjunta tendo em vista a desalienação de ambas as raças, pelo fim da cisão do homem em raça e a reconciliação da unidade desse homem, do humano: “É por meio de um esforço de resgate de si mesmo e de depuração, é por meio de uma tensão permanente da sua liberdade que os seres humanos podem criar as condições ideais para a existência de um mundo humano” (ibidem). ⁸  “ To mind there is no doubting the fact that colonization has always required the existence of the need for dependence. Not all peoples can be colonized: only those who experience this need. (...) Wherever Europeans have founded colonies of the type we are considering, it can safely be said that their coming was unconsciously expected – even desired – by the future subject peoples. Everywhere there existed legends foretelling the arrival of strangers from the sea, bearing wondrous gifts with them ” (“Não há dúvidas no fato de que a colonização sempre requereu a existência da necessidade por dependência. Nem todos os povos podem ser colonizados: apenas aqueles que experenciaram essa necessidade. (...) Onde quer que os Europeus tenham fundado colônias do tipo que nós estamos considerando pode se dizer seguramente que sua chegada era inconscientemente esperada - até desejada - pelos futuros povos colonizados. Em todos os lugares existiam lendas de estrangeiros que vinham do mar, trazendo presentes maravilhosos com eles”) (Mannoni, 1990, p. 85-86, tradução nossa). ⁹  Em um dos casos o sonho é sobre um boi negro que persegue raivosamente a pessoa que sonha (Mannoni, 1990, p. 91). ¹⁰  Fanon faz citação a uma obra de Pierre Naville aqui: Psychologie, marxisme, matérialisme: Essais critiques  (1948). ¹¹  A questão não estava colocada concretamente para Fanon quando da escrita de Pele negra máscaras brancas , pois não havia a vista nenhuma luta anticolonial com a qual pudesse contribuir. A situação muda com a eclosão da Revolução Argelina dois anos após a publicação do referido livro, pelo que Fanon, em 1955, adere à luta e ingressa na FLN (Frente de Libertação Nacional). Acreditamos que, teoricamente, o resultado dessa participação na luta política argelina é Os Condenados da Terra  (Cf. Fanon, 2022), publicado em 1961. Portanto, demarcamos nossa posição de discordância em relação ao corte epistemológico que é feito na obra de Fanon, especialmente pelos pós-coloniais. Referências CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo . Trad. de Noémia de Sousa. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1978. FANON, Frantz. Os condenados da terra . Trad. de Ligia Fonseca Ferreira e Regina Salgado Campos. São Paulo: Zahar, 2022. _____. Pele negra, máscaras brancas . Trad. de Sebastião Nascimento e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020. FAUSTINO, Deivison Mendes. Por que Fanon? Por que agora?  Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil. Tese de doutorado. UFSCar, 2015. MANNONI, Octave. Prospero and Caliban : The psychology of colonization. Trad. de Pamela Powesland. Ann Arbor: University of Michigan, 1990. MARX, Karl. O capital : crítica da economia política: Livro I: o processo de reprodução do capital. Trad. de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. NAVILLE, Pierre. Psychologie, marxisme, matérialisme : Essais critiques. Paris: Marcel Rivière, 1948. RODRIGUES BARROS, Douglas. Lugar de negro, lugar de branco?  Esboço para uma crítica à metafísica racial. São Paulo: Hedra, 2019. SARTRE, Jean-Paul. A Questão Judaica . Trad. de Mário Vilela. São Paulo: Editora Ática, 1995.

  • Marx: uma filosofia da subjetividade

    Por Nicolas Tertulian    Texto publicado pela revista Le Nouvel Observateur (out./nov. 2003) em edição dedicada a Marx (Karl Marx, Le penseur du troisième millénaire? comment échapper à/a marchandísation du monde) com o título   "Devenons ce que nous sommes". Por ocasião do pedido de autorização para a sua publicação na  Outubro, Nicolas Tertulian nos informou que o título originalmente por ele sugerido à revista francesa foi   "Une philosophie dela subjectivité" que resolvemos manter com a inclusão da alusão a Marx consentida   pelo autor. Tradução Juarez Duayer. [publicado no Brasil pela revista Outubro, n. 10, 2004] Se a essência do homem se identifica com a totalidade das relações sociais, então a realização e a libertação do gênero humano está indissociavelmente ligada à transformação do mundo. Exagerando um pouco as coisas, poderíamos dizer que Marx jamais expôs sistematicamente seu pensamento filosófico. Seu projeto de elaborar uma lógica dialética materialista em réplica a Hegel acabou não se concretizando. Existe, é verdade, textos filosóficos - célebres - de Marx, os Manuscritos   Filosóficos de 1844 ou A ideologia alemã (redigido em colaboração com Engels), sem esquecer também o prefácio de 1859 à Contribuição à crítica da   economia política, mas é difícil afirmar que os conceitos filosóficos que os sustentam (o de trabalho, por exemplo) estejam elaborados de maneira acabada e sistemática. Não encontramos, portanto, em Marx nada de compará vel   à Enciclopédia das ciências filosóficas ou à Ciência da lógica de Hegel. Benedettto Croce, entre outros, por exemplo, sempre contestou em Marx a existência de uma filosofia no sentido clássico do termo, cuja estatura se reduziria, para ele, a de um agitador social e de um profeta revolucionário.  Posteriormente, no entanto, alguns de seus representantes mais conhecidos (entre os quais Georg Lukács e Ernest Bloch), defenderam a tese de que existe em Marx um pensamento filosófico com vocação universal e capaz de abarcar os domínios do saber filosófico. O conceito marxiano de práxis, tal corno ele aparece, por exemplo, nas Teses sobre Feuerbach, seria capaz, se desenvolvido em suas numerosas potencialidades, de estabelecer tanto uma antropologia filosófica quanto urna estética ou uma ética, sem falar do pensamento político ou do direito. Não faltaram também tentativas de reconstruir as perspectivas filosóficas de Marx em um conjunto sistemático, desde as décadas que se seguiram a sua morte e pouco tempo depois do desaparecimento de Engels. Na Itália, Antonio Labriola, um espírito brilhante que havia tido contatos com Engels (de quem admirava o Anti-Dühring), publicou antes do final do século Ensaios   sobre a concepção materialista da história. Govanni Gentile, mais jovem que Labriola e formado na escola de Vico e do idealismo alemão, publicou na mesma época uma obra notável, A filosofia de Marx em que se empenhava em mostrar, falando justamente do conceito de práxis, a enorme coerência especulativa do pensamento do autor das "Teses de Feuerbach".  No período seguinte, as iniciativas teóricas de Kautsky e de Plekhanov (este último autor de uma grande súmula intitulada A concepção materialista   da história) alimentavam-se da mesma ambição, mas aparecem marcadas por sérios limites. O determinismo às vezes estreito de Plekhanov não permite fazer justiça à densidade e à complexidade do pensamento de Marx sobre a história (Sartre ironizou, não sem razão, em Questões de método, o  simplismo de certas teses de Plekhanov). E Kautsky, em sua tendência a assimilar o ser social ao ser biológico, corre o risco de ocultar a especificidade das atividades teleológicas na vida social. A recepção de Marx O pensamento filosófico de Marx conheceu também numerosas distorções que à época da Segunda Internacional, se caracterizavam especialmente pela incapacidade em reconhecer a herança hegeliana, cuja importância para o autor de O Capital foi enormemente subestimada até os anos vinte. Somente com a publicação em 1923 de Marxismo e filosofia, de Karl Korsch, e de Historia e consciência de classe, de Lukács, é que a profundidade das conexões entre o pensamento de Marx e de Hegel aparece em primeiro plano. Na Itália, Antonio Gramsci reagiu com a mesma intensidade à deformação mecanicista e positivista do pensamento de Marx. É neste sentido que ele desaprovou o manual Teoria do materialismo histórico de Bukharin.  Grandes figuras do século XX, filósofos munidos de instrumentos necessários a uma conceitualização rigorosa, chegaram à conclusão que, longe de se reduzir a urna simples teoria econômica, ou mesmo a uma crítica da economia política, o pensamento de Marx está fundado sobre urna ontologia (na medida em que ele havia definido as categorias como "formas do ser-lá,  de determinações da existência") e sobre uma antropologia (com o conceito de trabalho, a grande herança de Hegel, como sua pedra angular) contendo in nuce uma teoria de conjunto da subjetividade com os conceitos de objetivação , reificação , alienação e emancipação como limiares de uma fenomenologia do sujeito. Com isso se pode mostrar também que os conceitos de consciência   de classe e de consciência do gênero humano (a idéia de gênero - Gattung - ocupa um lugar importante nos Manuscritos de 1844) permitem estabelecer uma síntese entre as exigências históricas e as exigências universais da condição humana. A profunda historicidade do pensamento de Marx que definia a essência do homem como a totalidade das relações sociais (portanto como uma substancia dinâmica), marcou de forma decisiva os pensadores da escola de Frankfurt, de Max Horkheimer e Teodor W. Adorno à Herbert Marcuse e Leo Lowenthal. A teoria marxiana da subjetividade, em particular a tese segundo a qual os indivíduos fazem a História, mas não em condições escolhidas por eles, foi urna revelação para Sartre e o levou a se afastar de Husserl e de Heidegger, sem entretanto renegar suas contribuições, e se aproximar de Marx na grande síntese da Crítica da razão dialética. A força de atração do pensamento de Marx não raro se exerceu também sobre pensadores que inicialmente pertenciam a horizontes filosóficos distantes do marxismo. Nestes casos, a integração de seu pensamento, enquanto conjunto homogêneo de conceitos, em particular a sua teoria da subjetividade, se deu através do confronto com correntes de pensamento heterogêneas que deram lugar influências recíprocas e alianças imprevistas. Sartre é, dentre muitos, um destes exemplos. Antonio Labriola foi herbatien antes de ser marxista. Gramsci assimilou o materialismo histórico dialogando sem cessar com o pensamento de Croce que dominava a Itália na época e o marcou bastante. Max Horkheimer, que nos anos vinte se transformou num adepto convicto do pensamento de Marx e em nome do qual fundou a teoria crítica da escola de Frankfurt , era ao mesmo tempo um fervoroso admirador da metafísica de Schopenhauer; e tentou ainda conciliar a doutrina marxiana da emancipação social com a ética da "culpabilidade" e da "salvação" professada pelo filósofo da Vontade. Herbert Marcuse foi um dos primeiros a compreender a importância dos Manuscritos de 1844 para a elaboração de uma teoria marxista da subjetividade (cf. seu estudo de 1933 sobre o conceito de trabalho), mas apreendia o pensamento de Marx tendo como pano de fundo influências de Dilthey e de Heidegger. Ernest Bloch construiu ao final de sua vida uma ontologia (cf. seu livro  Experimentuin mundi ) destinada a mostrar que o pensamento de Marx, e em particular sua filosofia cia subjetividade (Bloch fez do  não ser - das Noch-Nicht-Sein - sua categoria central), está enraizada em uma teoria   de conjunto das categorias do ser (a atenção principal é para as categorias   de tendência , latência  e de possibilidade   objetiva ).   Não se pode, portanto, deixar de assinalar que o materialismo dialético de Bloch (autor de um grande livro, Problema   do   materialismo ) se ressente de influencias do último Schelling e de Eduard von Hartmann, pensadores que seduziram o autor de Experimentum inundi , e não somente em sua juventude. O engendramento de si A influência de Marx na filosofia do século XX abrange, como se vê, um amplo espectro, e não faltam obras teóricas que a reivindicam teoricamente para construir uma filosofia autônoma (desde a Crítica da razão dialética de Sartre   à  Dialética negativa de Adorno   e  Experimentum inundi de Bloch), a tal ponto que o núcleo filosófico originário de seu pensamento muitas vezes pode aparecer um pouco obscurecido pelos inúmeros desdobramentos e interpretações que sofreu. Lukács se propôs como tarefa desenvolver os lineamentos gerais de uma filosofia da subjetividade a partir das premissas marxianas em sua última grande obra de síntese,  Contribuições à ontologia do ser social  (escrita durante os anos 1964-1970), que se seguia a sua  Estética  e preparava a Ética (da qual existem apenas as notas preparatórias). Na França, Henri Lefebvre já havia construído sua obra com uma ambição semelhante, desenvolvendo de modo original as análises marxianas da práxis e da alienação e aplicando-as a territórios inexplorados (em particular à vida cotidiana). Marx retomou a tese de Hegel sobre o trabalho como momento decisivo na constituição da subjetividade, mostrando como a totalidade das atividades humanas se desenvolvem a partir deste núcleo arborescente (o que nos permite definir o trabalho como o "fenômeno originário" ou a célula geradora da vida social). No ato do trabalho, a intencionalidade da consciência (a "posição teleológica") se apóia nas cadeias causais objetivas, utilizando-as para modificar a natureza e adaptá-la às necessidades humanas. Trata-se, portanto, de uma relação de tensão dialética entre o sujeito e o objeto que induz a transformações tanto no objeto quanto no sujeito. Lukács também propôs, no ato do trabalho, a distinção entre o momento de objetivação (a Vergegenstãndichung da qual Marx falava em seus Manuscritos de 1844, associando Vergegenstündichung a Entgegenstindlichung, objetivação e desobjetivação) e o momento de exteriorização (Entiusserung); o primeiro traduziria as transformações estabelecidas no mundo dos objetos para torna-los conforme ao objetivo pretendido; o segundo, as reverberações destas atividades na constituição da subjetividade, as qualidades especificamente subjetivas que se exprimem no objeto criado. A concrescência dos dois momentos, objetivação e exteriorização, não exclui, portanto, a possibilidade de conflitos entre os dois momentos, pois o homem pode ser obrigado a atos de objetivação que não correspondem a um verdadeiro desenvolvimento da subjetividade. Aí estaria, de acordo com Lukács, a raiz do fenômeno da alienação (conceito capital dos escritos de juventude, mas também da maturidade de Marx), onde a multiplicação das atitudes e capacidades humanas induzidas pelo desenvolvimento das forças produtivas não é acompanhada de uma autoafirmação da personalidade: a multiplicação das qualidades do sujeito funciona, neste caso, para a reprodução de um sistema cuja lógica escapa a de uma verdadeira exteriorização do sujeito cujas energias estão confiscadas por objetivações estranhas as suas necessidades profundas. A vida social aparece assim, segundo Marx, como um tecido de objetivações, cuja finalidade não pode ser senão a realização da personalidade dos indivíduos, responsáveis por ela. Uma verdadeira dialética da heteronomia e da autonomia da personalidade emerge, portanto, cio autor de O Capital . Os que duvidam que se possa falar de uma filosofia da subjetividade e de um conceito elaborado de humanitas   do homo humanos em Marx devem se recordar que também em suas Teorias sobre a mais-valia, quando ele toma a defesa de Ricardo contra o anticapitalista romântico Sismondi em uma passagem célebre do fim do terceiro capítulo de O Capital e fala da transição do reino da necessidade ao reino da liberdade, Marx evoca explicitamente "o desenvolvimento riqueza da natureza humana como um fim em si"  e "o desenvolvimento das forças humanas, que é fim em si-mesmo" ("die   menschliche Kraftenwicklung, die sich ais Seistzweck gilt.."). Tomando a defesa de Ricardo, Marx mostra que o "desenvolvimento das faculdades da espécie   homem" aconteceu na história às custas da maioria dos indivíduos e que "o   desenvolvimento superior da individualidade não se com pra senão ao preço de um   processo histórico ao longo do qual os indivíduos são sacrificados". Na página final de O Capital, ele faz um rápido esboço da complexidade do processo de emancipação da espécie humana indicando as etapas da passagem do reino da necessidade ao da liberdade. No último período de sua atividade, Lukács construiu sua interpretação da obra de Marx escolhendo como fio condutor justamente o conceito de gênero humano (enquanto que sua obra de juventude História e consciência   de classe se apoiava exclusivamente sobre a consciência de classe): a objetivação, a exteriorização, a alienação, a reificação (que não é senão um caso particular de alienação) e a emancipação seriam formas da subjetividade que marcam a evolução do sujeito. Uma grande distância separa a interioridade mutilada e mortificada da existência alienada, a que se submete às exigências impostas do exterior, da interioridade que se desenvolve livremente até à realização de suas qualidades mais autênticas. No centro das considerações marxianas se encontra a apropriação pelo homem de sua própria essência. Jacques D'Hondt assinalou (por ocasião de uma conferência na EHESS) a forte presença nos textos de Marx do Sebst e da Seibstheit (individuação) evocando sucessivamente a presença significa tiva   dos conceitos de afirmação de si (Sebsreltauptung ou Selbsbetãtigung), de produção de si (selbsterzeugung), de diferenciação de si (Selbstunterscheindung), até os conceitos que exprimem o distanciamento do eu de suas exigências mais autênticas: a alienação de si (Selbstenfremdung), o desconhecimento de si (Selbstverkennung), ou o eu vazio de sua substancia, (Selbstaushõlung, expressão polêmica utilizada por Marx a propósito da alienação religiosa). Ao reino da liberdade A distinção formulada por Marx ao final de O Capital entre o "reino da necessidade" e o "reino da liberdade" levou Lukács a propor na parte final de   sua Ontologia do ser social uma distinção entre o gênero humano em si (Gattungsmiissigkeit) e o gênero humano para si (Gattungniissigkeit für-sich). Marx havia precisado na passagem acima mencionada que o reino da liberdade   não começa senão quando o trabalho imposto pela necessidade e pela   finalidade exterior cessa e quando ele se situa por sua própria natureza "para além da esfera da produção material propriamente dita". E, precisão importante:   uma organização social onde os indivíduos associados controlam de forma   racional a economia e a mantêm sob seu controle comum (ao contrário   de serem dominados por sua "potência cega"), desenvolvendo suas ativida des "em condições as mais dignas e mais condizentes a sua natureza humana", permanece sendo, entretanto, "um reino da necessidade". O verdadeiro reino   da liberdade não começa senão para além desta esfera da pura produção   material, lá onde "o desenvolvimento das forças humanas, que é fim em si mesmo",   se transforma na força motriz da História (mas Marx insistia em   sublinhar, como antípoda das construções utópicas sobre a futura sociedade,   que o reino da liberdade não pode florescer senão sobre o fundamento do   reino da necessidade, assinalando que "a redução da jornada de trabalho" se   constitui em sua "condição fundamental"). (Pode-se assinalar que nada autoriza   a confundir a instauração marxiana do "reino da liberdade" com o "fim da história"; é verdade que Alexandre Kojõve tentou em seu livro sobre Hegel   identificar os dois, mas nesse caso trata-se de uma fantasia extravagante,   pois nada no famoso texto de Marx cauciona a idéia de uma abolição dos   conflitos e de uma cessação da dialética em uma sociedade emancipada da   hegemonia de classe). Para Lukács, o gênero humano em si exprime as fases da sociedade onde os indivíduos desenvolvem suas capacidades a fim de responderem aos imperativos da reprodução social sob o signo da coerção e das normas impostas pela organização social reinante (agindo quase sempre "sob pena de naufrágio",   "bei der Strafe des Untergangs", segundo a expressão de Marx). Os indivíduos ficariam restritos neste nível a sua pura particularidade enquanto agentes da reprodução social, sem chegar a transgredi-la em direção à verdadeira autonomia de sua personalidade e à autoafirmação de suas qualidades mais humanas. O gênero humano para si exprimiria justamente esta transgressão em direção ao verdadeiro crescimento da personalidade, onde o "desenvolvimento das forças humanas" se transforma, segundo a expressão de Marx, em um "fim em si mesmo" e onde a ação individual adquire uma dimensão universal se inscrevendo no processo de emancipação humana. Lukács utiliza o exemplo das grandes obras de arte ou de grandes ações éticas (ele evoca os nomes de Sócrates, Jesus ou Hamlet, mas ele também cita os conflitos entre Antígona e Ismênia ou entre Electra e Crisótemis nas tragédias de Sófocles) para ilustrar a presença da consciência do gênero humano para si nas objetivações forjadas pela humanidade ao longo de sua história. Na tragédia de Sófocles, Ismênia, por sua submissão às injunções de Creonte, exprimiria os imperativos do gênero humano em si,  enquanto que Antígona, pela inflexibilidade de suas exigências morais, exprimiria a aspiração pelo gênero humano para si. Uma nítida clivagem separa a subjetividade que funciona para assegurar o status quo social da subjetividade que abala a ordem estabelecida afirmando sua autonomia afetiva e intelectual. A arte se revela efetivamente um terreno privilegiado para validar a concepção rnarxiana da subjetividade. A tese do jovem Marx segundo a qual é necessário imaginar como possível uma sociedade na qual os sentidos serão "teóricos", se emancipando da tutela do "ter" para impor a do "ser", foi utilizada por estudiosos da estética que se inspiraram em seu pensamento para afirmar "a missão desfetichizante da arte", sua vocação para desconstruir as alienações que imobilizam a condição humana e liberar suas energias emancipatórias. Adorno insistiu sobre a importância de uma passagem das Teorias da mais-valia, onde Marx polemiza com a concepção unilateral da produtividade professada por aqueles que fazem do reino do valor de troca e da mercadoria um absoluto, e onde ele relembra a existência do "trabalhador improdutivo", citando o exemplo de Milton e de seu Paraíso perdido. O elogio marxiano do "trabalhador improdutivo" (em especial dos escritores e artistas) é para Adorno o símbolo de uma concepção superior da produtividade, que reserva um lugar decisivo às atividades não utilitárias e abre caminho a um ethos  bem diferente da "metafísica do trabalho" e da "glorificação do trabalho". O gênero humano O pensamento de Marx deixou um traço facilmente identificável na filosofia do século XX. Ernest Bloch se apoiou no materialismo anti-mecanicista de Marx e em seu conceito de práxis para desenvolver sua ontologia do não ser (ontologia   des Noch-NichtSein). Lukács elaborou em sua Estética e na Ontologia do ser social um método ontológico-genético de análise dos fenômenos da consciência que se apóia no conceito marxiano de trabalho como paradigma da relação sujeito-objeto. Sartre construiu sua teoria dos conjuntos práticos e sua fenomenologia da vida social (a partir do "homem da necessidade" ou do "homem da escassez", através do prático-inerte, a existência serial, o coletivo, até à formação do "grupo   em fusão") escolhendo os teorernas de Marx como chaves para a inteligibilidade da História. Adorno partiu da inversão materialista da dialética hegeliana operada por Marx para forjar a sua "dialética negativa", que opõe à preeminência da identidade na dialética positiva e à identidade idealista entre sujeito e objeto uma lógica do "sistema" (para Adorno, numa tese evidentemente discutível, Marx é o pensador do "anti-sistema"). No terreno da filosofia da subjetividade, o método ontológico-genético desenvolvido por Lukács permite fazer justiça à diversidade e heterogeneidade das atividades do sujeito, mostrando como se pode reconstruir a partir de Marx a especificidade dos diferentes complexos sociais (da economia ao direito e à política, até à atividade estética ou ética), indicando, por exemplo, as transições dialéticas entre a atividade utilitária (das Nützliche, da qual falava Hegel em sua Fenomenologia do espírito), a atividade hedonista (um capítulo da Estética  de Lukács é consagrado ao agraciável) e a atividade estática propriamente dita. É o conceito marxiano de gênero humano, onde se realiza a fusão entre a particularidade dos indivíduos e a universalidade do gênero, que permitiu ao filósofo húngaro estabelecer, por exemplo, a diferença de nível entre o beletrismo (Belletristik) e a verdadeira literatura: as primeiras não ultrapassam a expressão da particularidade (aí compreendidas as de um grupo social determinado), ao passo que a segunda faz ressoar uma voz humana de alcance universal (é a diferença que distinguiria, por exemplo, o teatro de Shakespeare de uma boa parte das produções do teatro elisabetiano de sua época). As formas da subjetividade descritas por Sartre na Crítica da razão dialética são analisadas segundo o princípio marxiano da relação indissociável entre interioridade e exterioridade: "O homem é 'mediado' pelas coisas na mesma medida em que as coisas são 'mediadas' pelo homem". Sartre estabelece uma   fenomenologia da subjetividade partindo do homem condicionado pela escassez   (ele chega a falar de sua força esmagadora) e do "homem da necessidade" que produz perpetuamente seu próprio instrumento no ambiente da   exterioridade, e descreve sucessivamente os estados da existência "prático-inerte" onde a transiucidez da práxis se dissolve na opacidade do Ser, da existência "serial" onde os indivíduos, reduzidos a um "estatuto molecular", não são senão uma "pluralidade de solidões" (ele denomina este estado como   aquele do "coletivo"), até o estado do "grupo em fusão" que se constrói pela "desintegração da serialidade" e onde se instauram verdadeiras relações de   interioridade e de reciprocidade. Raymond Aron duvidava do marxismo de   Sartre: sobre certos aspectos é possível que tenha tido razão (cf. seu livro  História e dialética da violência), mas a inspiração marxiana desta fenomenologia   da subjetividade não nos parece ser contestável. A sensibilidade de Marx no que diz respeito à condição humana em sua universalidade, para além mesmo de sua luta pela emancipação do proletariado, pode ser exemplificada pelo texto que em 21 de junho de 1856 ele endereçou a sua esposa Jenny von Westphalen. Trata-se de uma carta de amor que pode surpreender os que vêm Marx exclusivamente como o combatente pela abolição do capital e o dirigente da Internacional (o que ele efetivamente foi em primeiro lugar): "Meu amor por ti, já que estás longe, aparece como ele é, gigantesco, no qual se concentra toda a energia de meu espírito e todo o caráter de meu coração. Eu me sinto de novo como um homem, porque eu experimento uma grande paixão... Mas não o amor pelo homem feuerbachiano, nem o da troca de substância moleschottiana [Marx faz alusão ao fisiologista italiano de origem holandesa Jacob Moleschott (1822- 1895), cujo materialismo 'vulgar' foi objeto de críticas de Marx e Engelsi, nem aquele pelo proletariado, mas o amor pela bem-amada, por ti, o que faz do homem novamente um homem". Se poderia considerar esta carta como um testemunho de fidelidade à idéia de "homem integral", idéia que já estava presente desde os primeiros escritos filosóficos de Marx.

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