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- Nem tudo passa: a amarga sinfonia da Argentina
Por Wesley Sousa (BBC Imagens) A grande mídia hegemônica repercute a eleição presidencial na Argentina a associando como uma nova etapa de como “lidar com a crise econômica”. As “mudanças radicais” do presidente eleito, no entanto, nada mais são do que uma radicalização do que Maurício Macri (2015-2019) tinha encaminhado rumo ao desmonte do estado em anos anteriores: redução de gastos públicos e a entrega do patrimônio estatal às privatizações. O aparecimento de uma excêntrica figura no contexto argentino, que alguns dizem ser similar ao Brasil (no caso da figura caquética de Bolsonaro), mostrou que no “espaço” político de Javier Milei, entretanto, não havia tanta surpresa assim: ele era o único concorrente da coalizão “A Liberdade Avança”. Já o “peronismo” (uma nostalgia neodesenvolvimentista), venceu com amplitude o candidato “chapa branca” Sergio Massa (até então Ministro da Economia) – um centrista pragmático apoiado pela ex-presidente Cristina Kirchner. Por sua vez, Javier Milei era o candidato reacionário que defendeu o rompimento comercial com o Brasil e a China (pelo “populismo de Lula” e “pelo comunismo”). Ao mesmo tempo, propôs um alinhamento com os Estados Unidos e Israel, apontados por ele como símbolos do “mundo livre”, idolatrando facínoras como Ronald Reagan (1981-1989) e Margareth Tatcher (1979-1990), tratando-os como “ídolos”. No caso da eleição presidencial recente, essa seguiu uma tendência das últimas eleições na América Latina: elas foram decididas por “votos defensivos” e radicalizados na crise, como Chile, Colômbia, Brasil e Equador, etc. De um lado, a população se dividiu entre uma opção de extrema-direita defensora de Estado mínimo e o banditismo do mercado e a desestruturação de arranjos públicos, e, de outro lado, uma tendência “progressista”, reticente em seu futuro, mas defensora de um Estado com alguma distribuição de riqueza, ao passo que subserviente ao mercado. Em outros termos, duas tendências em que estão cada vez mais submersas à tirania do capitalismo. (Este é apenas um breve esboço que faço da situação referente às candidaturas majoritárias.) A extensa crise econômica se arrasta no país hermano por décadas. O que resultou na “jornada” de Milei é que havia duas “alternativas” a se votar: uma era de manter a mesma política, que não mostrava resultados satisfatórios, e a outra era eleger qualquer coisa distinta (embora ligada à ideologia dominante). A “coisa distinta” seria aquela que fosse contra toda ingerência político-econômica do país. No que consegui ler e acompanhar brevemente de periódicos e analistas locais, o “perfil eleitoral” de Milei aponta uma significativa adesão da juventude e a massiva adesão de eleitores em províncias do interior do país. Tal espaço político só poderia ganhar votos irritados e de descontentamento contra um governo de ajuste, crise social e uma inflação histórica para os parâmetros das últimas três décadas. O peronismo, portanto, abriu espaço para a direita alucinada e que esteve catalisada na figura de Milei. Em resumo, onde a esquerda faz o papel de defensora da ordem do capital, atuando como caseiro de uma fazenda devastada, qualquer comprador a leva por alguns trocados... Este descontentamento tem, sem dúvidas, algumas bases verificáveis. O fracasso dos últimos dois governos se pode comprovar em números. Desde que o FMI voltou à Argentina em 2018, a pobreza aumentou drasticamente dos 27,3% aos 40,1% na última pesquisa. As políticas do FMI aplicadas primeiro por Macri, depois por Martín Guzmán e agora por Sérgio Massa (com apoio de Cristina Kirchner), são uma máquina de gerar pobreza. Os salários de todos os trabalhadores despencam, com especial gravidade para os sem carteira assinada, que perderam 46,7% do seu poder aquisitivo desde 2016. No entanto, a situação da classe trabalhadora é desigual, e isso se expressou também na fragmentação dos apoios políticos a um ou outro lado nas eleições. De modo similar, conforme pode-se perceber, é o caso do lulismo no Brasil, cuja plataforma, guardada devidas proporções e motivações, anos depois arregimentou-se ao “golpe parlamentar” de 2016; por fim, abrindo espaços para a caminhada de Bolsonaro ao Planalto Central. Na análise do economista marxista britânico Michael Roberts, no artigo “Argentina election: from peso to dollar?”, há o argumento de que uma das principais questões a ser respondida na política econômica é o porquê de o país ter entrado em uma espiral inflacionária prolongada e que é intercalada com crises da dívida pública e sucessivas recessões. Segundo ele, Parte da resposta é que a Argentina nunca se industrializou como o Leste Asiático, ou mesmo o Brasil. Os governos peronistas não conseguiram fazer com que os capitalistas argentinos investissem em setores produtivos, apesar dos abundantes recursos naturais da Argentina e de uma força de trabalho educada. O número de empregos formais no setor privado mal cresceu em mais de uma década, e mais da metade dos argentinos empregados trabalham fora dos livros ou para o Estado. Em vez disso, havia dependência da agricultura que fornecia alimentos baratos para o ‘Norte Global’. A agricultura está sujeita aos caprichos do clima e dominada por algumas multinacionais (tradução livre). A crise da política econômica da Argentina não é algo simples, e nem se reduz aos elementos puramente internos, muito menos comparativos com o Brasil. Para fundamentar rapidamente, no interessante e profundo texto publicado no site “A terra é redonda”, redigido por Claudio Katz, professor de economia na Universidade de Buenos Aires, ele escreve o seguinte: A Argentina teve uma industrialização precoce, com recursos que o Estado reciclou da renda agrária. Mas nunca conseguiu formar uma estrutura industrial autossustentável e competitiva. O setor não gera as divisas necessárias para sua própria continuidade. Depende das importações, que o Estado garante através de subsídios indiretos, para uma atividade com elevada concentração em poucos setores, grande predomínio estrangeiro e baixa integração de componentes locais” (“Os enigmas da Argentina”). Em linhas gerais, é crível afirmar que o caminho adotado pela Argentina é a de um país que tem como singularidade política um conteúdo que vinha sendo aquele da persistência do “peronismo” como estrutura política dominante. Desde a redemocratização do país, 8 dos 12 presidentes estavam alinhados ao “peronismo”. A política peronista, neste sentido, mantém uma grande influência na cultura, na identidade política, bem como é ressonante em força eleitoral e na rede de poder institucional. O curioso nisso é que o guarda-chuva peronista atrai tanto figuras de centro-esquerda, pragmáticos centristas, até aqueles não-liberais vinculados mais à direita. No cenário econômico, a sucessão de fracassos reafirma a instabilidade que anteriormente afetou as ditaduras e os governantes civis e militares. Seja pelo lado “progressista”, seja pelo lado reacionário, tanto um quanto o outro se redundam em desgoverno, cujo núcleo tem sido a caraterística permanente de problemas sistêmicos – crises, aliás, prolongadas sob a batuta do FMI e do Banco Mundial. Ainda segundo Roberts, o país enfrenta enormes obrigações de reembolso ao FMI e aos detentores de títulos estrangeiros depois que o programa de 44 bilhões de dólares do FMI usado para resgatar o anterior governo de direita de Macri evaporou-se em déficits crescentes do governo e na fuga de capital para o exterior” (tradução livre). Devido a tamanha inconsistência contínua que põe a corroer os estratos sociais e as administrações das três formações políticas presentes (esquerda, peronistas e a direita), nenhuma delas conseguiu satisfazer seus eleitores ou suas referências dos grupos dominantes. No meio de uma crise internacional, que arrasta populações e povos mundo adentro à precarização, violência e na pobreza, o capitalismo busca à fórceps a hegemonia intocável, nem que para isso precise de figuras exóticas para fazer o trabalho de porteiro do inferno. Relembro aqui de um dilema conhecido advindo do liberalismo: entre uma democracia “socialista” e uma ditadura liberal, sempre será “melhor”, para seus sicários, a segunda opção. Por isso, vários liberais apoiaram, e continuam a apoiar, as diversas ditaduras militares ao redor do mundo, como foi o caso do Chile, Nicarágua, El Salvador, etc. Mas no caso de Milei não se trata apenas de cinismo ou de dois pesos e duas medidas. Entre todas coalizões de direita e reacionária na argentina, em suas propostas coexistem uma tensão entre o seu “anarquismo” e o seu “direito” visando uma rejeição mais ou menos explícita da democracia formal (ainda que dependa dela), associada aos odiados políticos tradicionais. O projeto de Milei propõe privatizar o conjunto da vida social, até “as ruas”, que, sendo públicas, “cospem socialismo”, ou as prisões. Durante o derradeiro debate da eleição, defendeu o fechamento do Banco Central, o fim do Peso argentino e a adoção do dólar estadunidense como moeda, bem como reafirmou seus “princípios” econômicos, embora tenha se esquivado de todas as perguntas objetivas sobre como pretende efetivá-los na prática. O novo presidente se comprometeu a apagar a história de “Verdade, memória e justiça”, marco que colocou a Argentina à frente na luta pela reparação histórica no continente ao punir os responsáveis pelo assassinato e desaparecimento de mais de 30 mil pessoas durante a ditadura militar dos anos 70. Em suma, vejo uma grande ingenuidade e visão míope de sociedade de setores de esquerda, principalmente na América do Sul, em ficar chocada com o óbvio. Dito mais precisamente, a “gestão” da crise do capitalismo por ela se volta contra a si quando o refúgio da reação será sempre o pior. E exemplos para isso não faltam. Ao redor do globo, a crise do capital joga na esfera da subjetividade excentricidades de um futuro nebuloso e que, por esta razão, o forte apego à catástrofe se torna uma regra do jogo; agora não se trata de uma “anomalia” social, como se percebe. Mas, se a luta de classes ultrapassa devaneios morais, será pelo poder vigente que ela também se expressa. Neste caso, não terá democracia ou instituições benevolentes que trabalhem como “freio racional” da politicidade em pleno vigor. O fracasso da política de “gerir a crise” faz com que uma crise de gestão se torne um fardo imenso, justamente por ressurgir daí figuras que surfam na onda de uma insatisfação, e arrebatam jovens e desesperançados (embora o máximo que se extraia é o escancaramento da podridão que o capital engendra na dinâmica da vida política). Numa linguagem filosófica, diria que a percepção dos vultos do passado soam agora como aquilo que não escapa ao “destino”; o heroísmo promulgado em certos indivíduos, por mais bizarros que sejam, joga uma mitologia de que a humanidade sempre se vê assolada pela expectativa de grandes catástrofes iminentes. Uma das características diferenciais mais profundas da ideia moderna de “crise” é a consciência de que estamos numa espécie de marcha irrefreável da História, cujo desfecho é a sucção da subjetividade tornada em combustível de autodestruição. A adesão social e política a tais figuras (como o caso de Milei e tantos outros) é parte condicionante da ausência de perspectivas diante da forma de vida atual que nelas se sintetizam. O que tenho visto em inúmeras análises é que os pressupostos estão limitados sempre na ideia de “boa política” como resolução de problemas mais profundos. Aí se vê o aprofundamento de uma crise que remonta à percepção da fratura social vindoura sem precedentes. Por um lado, em condições muito desiguais contra o poder político e econômico, o espaço da atuação política pode ter alguma base objetiva. Em termos concretos: uma esquerda que tenha como horizonte a transformação radical do mundo a aposta será no caminho contrário à institucionalidade, ou seja, não na “democracia”, mas visando enfrentar a tragédia continuada da política burguesa. Contra a repressão, os planos de “ajuste” que abrem o caminho para a direita se manter e ampliar seu poderio, e o silenciamento de alguns por não denunciar o atual oficialismo imperialista, nos mostra que o caminho do “mal menor” é desastroso em inúmeros contextos, e somente permitiu a dissuasão da esquerda. Este segundo cenário – o fracasso do “mal menor” – foi o que se concretizou na Argentina. O resultado expressivo de Milei na “segunda volta” é conclusivo. Por outro, diria que é possível assegurar com relativo grau de segurança que nem todas as propostas absurdas de Milei irão se concretizar (apesar de que isso não ameniza tanto os ânimos). Após o término da eleição argentina pude ler que o novo presidente eventualmente “não terminará o mandato”. Entretanto, vale lembrar às mentes mais “otimistas” e cínicas que o mesmo dizíamos a respeito de Bolsonaro. E, porém, conforme certa vez escreveu o historiador holandês Johan Huizinga: “hoje em dia a noção de que nos encontramos em meio a uma grave crise civilizacional, potencialmente destruidora, penetra em amplas camadas da sociedade” (Nas sombras do amanhã, 1935). Agora, na capital Buenos Aires, há mais uma nota arranhada da maldita sinfonia no espetáculo destrutivo da burguesia. Alguns dizem que “vai passar”, mas, ao que parece, nem tanto.
- As bases objetivas do racismo no Brasil
por Maria Goreti Juvencio Sobrinho[1] Antônio Pitanga em Barravento (1962) (Iglu Filmes/Glauber Rocha) Este artigo é uma versão ampliada do trabalho “Racismo e desigualdades sociais no capitalismo brasileiro” apresentado no XII Congresso Português de Sociologia, “Sociedades polarizadas? Desafios para a sociologia”, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, em abril de 2023. “Nos Estados Unidos da América do Norte, todo movimento operário independente ficou paralisado durante o tempo em que a escravidão desfigurou uma parte de sua república. O trabalho não pode se emancipar na pele branca onde na pele negra ele é marcado a ferro.” (Karl Marx) Introdução O sociólogo e político brasileiro Guerreiro Ramos (1915-1982), que buscou pensar o negro como “negro-vida”, não como ser essencializado, criticou o que ele denominou de “sociologia inautêntica”, que transpunha para o Brasil conceitos forjados na Europa, aplicando-os de modo acrítico. Com efeito, excluía o negro do desenvolvimento nacional, tratava-o como problema. O problema não era o negro, argumentava, mas a sociologia assimilacionista que o transformou em problema. A questão real estaria na patologia do homem branco que, para alcançar o padrão estético europeu, precisava se diferenciar do negro, transformando-o em problema (Ramos, 1981). Um dos pioneiros nos estudos das relações raciais no Brasil, Florestan Fernandes (1920-1995), especialmente em sua obra de maturidade, vinculou a questão do racismo, assim como os desafios da população negra e da classe trabalhadora em geral, às especificidades da “revolução burguesa no Brasil” e à subordinação estrutural do capitalismo brasileiro ao imperialismo, cujos processos de modernização se expressam na extrema “concentração social, racial e regional da riqueza e da cultura” e nos “imensos bolsões de atraso educacional e de miséria” (Fernandes apud Chagas, 2011, p. 224). Dada sua natureza “compósita”[2] e associação subordinada ao capital externo, a burguesia brasileira é autocrática: acentua e concentra em suas mãos o poder político, transforma o Estado em instrumento exclusivo dos seus interesses particulares e egoístas, não admite conflitos inter-raciais e de classes e sufoca os protestos sociais, que são tomados de antemão como caso de polícia ou manifestações contra a ordem, o que significa, assim, que uma reforma racial dentro da ordem burguesa é impossível (Fernandes, 2017)[3]. Lélia Gonzalez (1935-1994), uma das maiores referências da luta antirracista no país, também combateu o mito da democracia racial, assim como o patriarcado e as opressões de gênero, presentes, inclusive, nos movimentos negros. O cientista social Clóvis Moura (1925-2003), por sua vez, colocou no centro do debate acerca da formação social brasileira, assim como no centro da crítica ao capitalismo brasileiro, o protagonismo negro, sobretudo da grande massa de trabalhadoras negras e trabalhadores negros do país. Nos últimos anos, uma das referências para o debate antirracista no Brasil tem sido a obra O que é racismo estrutural? (2018), de Sílvio de Almeida, atual ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania. Ainda que o presente trabalho mobilize pistas de investigação deixadas por alguns expoentes do pensamento social brasileiro, seu objetivo não é analisar e polemizar as diferentes interpretações sobre racismo, tampouco a longa história de organização, resistência e lutas do povo negro no Brasil. Este artigo busca analisar as bases objetivas do racismo, em suas expressões ideológicas e práticas e, especificamente, a relação entre capitalismo, racismo, superexploração da força de trabalho e autocracia burguesa. Começa trazendo à tona o modo pelo qual o Brasil se inseriu no mundo moderno, a categoria da superexploração e a particularidade da formação social brasileira. Na sequência, aborda o processo de racialização do povo negro: a relação entre a abolição conservadora (1888) e a manutenção da estrutura subordinada do país, assim como os mecanismos ideológicos e práticos de discriminação, marginalização e subalternidade, que têm sido impostos à população afrodescendente no Brasil. 1. A particularidade da formação social brasileira. O empreendimento colonial na América e a escravidão moderna que o sustenta são partes constitutivas da acumulação primitiva do capital (Marx, 2017)[4]. O Brasil, como de resto a região latino-americana, é inserido no mundo moderno na condição subordinada de colônia de exploração, subordinação pautada pelas relações de produção, portanto, também de suas classes sociais. Integrado ao mercado mundial como fornecedor de metais preciosos, gêneros agrícolas e matérias-primas, o Brasil colabora para a formação e o desenvolvimento do sistema capitalista e, ao passo que se expande a grande indústria, também contribui para a mudança de eixo da acumulação – a passagem para a mais-valia relativa –, assim como para contrabalançar a tendência de queda da taxa de lucros nos países centrais (Marini, 2000)[5]. Por outro lado, uma vez que o desenvolvimento das forças produtivas no Brasil é menor que a dos países industriais, ele lhes transfere parte de sua mais-valia via comércio e sofre, portanto, uma baixa em sua taxa de lucro. Para compensar suas perdas de valor, o Brasil precisa aumentar a produção, incrementar a massa de valor intercambiado, por meio de uma maior exploração do trabalho e não pelo incremento da sua capacidade produtiva. A superexploração da força de trabalho caracteriza-se pelo pagamento dessa força abaixo do seu valor real, modalidade esta em que, como dissecado por Marx (2017), parte do fundo de salário se converte em fundo de acumulação do capital[6], o que se traduz no baixo padrão de vida da classe trabalhadora no Brasil. Ao contribuir, assim, para o desenvolvimento e a expansão do capitalismo europeu, ao coadjuvar a transição para a mais-valia relativa, cuja acumulação depende do aumento da capacidade produtiva do trabalho e não apenas da exploração do trabalhador, a economia brasileira é compelida a se apoiar na superexploração do trabalho, reproduzindo um padrão de produtividade do trabalho sempre inferior ao dos países centrais, mesmo quando avança no capitalismo industrial (Marini, 2000). Importa observar que a agudização dos métodos de extração do trabalho excedente se impõe como tendência no Brasil numa fase em que a economia agroexportadora ainda não está baseada internamente em relações capitalistas, mas sustentada no trabalho compulsório, não obstante vinculada ao mercado mundial por meio das exportações, portanto, submetida à lógica da produção de valor (de troca), de forma que “o afã de lucro”, os efeitos do intercâmbio desigual com os países industriais implicarão numa maior exploração do negro escravizado[7]. Vale destacar que o negro escravizado é uma mercadoria, o que compreende o tempo total de sua existência: o tempo produtivo e o tempo não produtivo. A diferença básica do capitalismo em relação às demais formas de produção mercantil reside na transformação não do trabalhador, mas da sua força de trabalho em mercadoria, [...] isto é, o tempo de sua existência utilizável para a produção, deixando ao próprio trabalhador os cuidados de responsabilizar-se pelo tempo não produtivo, do ponto de vista capitalista. É esta a razão pela qual, ao subordinar-se uma economia escravista ao mercado capitalista mundial, a agudização da exploração do escravo se acentua, já que interessa então a seu proprietário reduzir seus tempos mortos para a produção e fazer coincidir o tempo produtivo com o tempo de existência do trabalhador. (Marini, 2000, p. 128)[8] No entanto, a intensificação do trabalho escravo, que reduz o tempo de vida produtiva do trabalhador, somente se viabiliza quando é possível repô-lo[9]. No Brasil, a interrupção do tráfico, a partir de 1850[10], fez com que as atividades produtivas, justamente aquelas destinadas à exportação, passassem a investir no trabalho assalariado, o que culminou com a Abolição[11]. Uma das formas de compensação do impacto da Abolição, especialmente nas zonas decadentes do Nordeste em que os recém-libertos, não substituídos pela mão de obra imigrante, continuaram sujeitos às mesmas arbitrariedades e violência dos seus ex-proprietários[12], foi a criação de alguns instrumentos para atar o trabalhador à terra como “a inclusão de um artigo no código civil que vinculava à pessoa as dívidas contraídas: o sistema de ‘barracão’, verdadeiro monopólio do comércio de bens de consumo exercido pelo latifundiário no interior da fazenda” (Marini, 2000, p. 129). Esse sistema, assim como o “cambão” (esquema em que o trabalhador paga o aluguel da terra trabalhando gratuitamente alguns dias para o proprietário), foi uma das modalidades da superexploração do trabalho assalariado. A condição subordinada da economia e seu lastro escravocrata são mantidos com a formalização da independência nacional do Brasil. No último quartel do século XIX, a Abolição da Escravidão e a Proclamação da República também não expressaram um revolucionamento da ordem social brasileira. A constituição do capitalismo verdadeiro, do capital industrial, somente desponta no século XX, numa quadra histórica de acirramento das disputas imperialistas e quando já havia ocorrido uma revolução anticapitalista, o que reduzia profundamente seu arco de possibilidades, de forma que a trajetória histórica brasileira é marcada pela contraposição exacerbada entre evolução nacional/desenvolvimento econômico e progresso social, que se expressa no baixo padrão de reprodução da vida material e espiritual da maioria de sua população. Conforme a análise de Chasin (2000) sobre o que denominou via colonial de objetivação do capitalismo brasileiro, é da lógica processual do sistema capitalista o engendramento de formações sociais desiguais e combinadas, distintas formas de ser e ir sendo capitalismo, que não negam o caráter universal da anatomia da sociedade burguesa, mas que se concretizam sob formas particulares. Dada sua origem colonial e emergência hipertardia, o capitalismo brasileiro configura-se num modo de ser marcado por conciliações entre o novo e o velho. Este foi constituído por uma burguesia que nasce e se desenvolve comprometida com a secular estrutura agrária latifundiária sustentada na superexploração da força de trabalho. A conciliação que preserva o arcaico obstaculiza ao mesmo tempo o pleno desenvolvimento do novo, uma vez que a renúncia dessa burguesia à reforma agrária, sua dependência da agroexportação, portanto, seu compromisso com a subordinação constitutiva, implicou na conservação de limites e contradições que aquela estrutura impôs à ampliação do mercado interno de consumo e ao desenvolvimento pleno da própria indústria. Limites e contradições que não serão resolvidos, mas aprofundados com a associação subordinada da burguesia com o capital externo a partir da segunda metade da década de 1950, já num contexto de acirramento do imperialismo e sob nova divisão internacional do trabalho, da qual resultou uma industrialização que, atendendo aos desígnios do capital subordinante (imperialista) e aos interesses imediatos do capital subordinado (receptor daquele), não está baseada na expansão e completude dos bens de produção e no barateamento dos bens-salários (que são os que determinam o valor da força de trabalho), mas nos chamados bens suntuários (dos quais as multinacionais automobilísticas são exemplo) que, dada a vigência da superexploração da força de trabalho, só podem ser consumidos pelos setores de média e alta renda. O avanço de uma industrialização, que está apartada das necessidades de consumo da classe trabalhadora, e a conciliação com o velho mantêm elevado o valor da força de trabalho, sem que esta seja remunerada de acordo com seu valor real, ao mesmo tempo vão selando a superexploração da força de trabalho, que “é o coração concreto da democracia de proprietários no Brasil” e o caráter incompleto/incompletável (portanto, subordinado) do capitalismo brasileiro (Chasin, 2000, p. 173). Este foi constituído por uma burguesia que não pôde e nunca pretendeu empunhar as bandeiras de suas congêneres revolucionárias: a autonomia econômica e a formação de um Estado Democrático. Conformando-se com sua subordinação estrutural ao imperialismo, cujos ordenamentos econômicos não atendem às necessidades da classe trabalhadora, ao contrário se viabilizam à custa dela, recorrendo à conciliação pelo alto com as demais classes proprietárias e a soluções políticas conservadoras a burguesia brasileira exerce seu poder político de forma autocrática, isto é, excluindo a participação política das forças populares e rechaçando qualquer debate e questionamento de sua base econômica[13]. O caráter permanentemente autocrático do Estado brasileiro se afirmou ao longo da história republicana, quer sob a forma ditatorial/bonapartista – a ditadura das oligarquias rurais (1889-1930), a chamada política dos governadores, o Estado Novo (1937-1945) e a Ditadura Militar (1964-1984) –, quer em suas expressões institucionalizadas, que sucederam aquelas, incluindo o período republicano atual (iniciado em 1985 e erroneamente chamado de democratização da vida nacional) que, sob a legalidade da constituição de 1988, sofreu o golpe parlamentar de 2016 (Vaisman; Assunção, 2016). O poder autocrático da burguesia é a forma política gerada pelo e adequada ao caráter hipertardio e subordinado do capitalismo brasileiro, que é destituído das condições de possibilidade de viabilização da democracia (Chasin, 2000). A natureza autocrática da burguesia brasileira caracteriza-se pela sistemática barragem ao progresso social, assim sendo, pela repressão a qualquer movimentação social nessa direção. A burguesia autocrática precisa, pois, repelir a participação das categorias do trabalho e racializar a classe trabalhadora, já que a integralização do conjunto das categorias sociais, inclusive étnicas, mesmo nos estreitos limites da democracia burguesa, exigiria romper com sua plataforma econômica, com a subordinação constitutiva, isto é, romper com as bases materiais do seu poder autocrático. 2. Racialização da classe trabalhadora no Brasil: da escravidão à escravidão do trabalho livre Estruturada no latifúndio e sustentada no trabalho compulsório, a economia colonial é, na expressão caiopradiana, “uma vasta empresa colonial” (Prado, 1986), cujo dinamismo é desvinculado das necessidades internas, das demandas e carências daqueles que nela vivem e labutam (Souza; Rago, 2014). Até o fim do século XIX, a produção de riqueza, isto é, o atendimento dos capitais metropolitanos e do aparelho de luxo e fausto da classe senhorial, foi alicerçada na violência, no terror[14] e na exploração do negro escravizado até o limite da morte (Moura, 2021). Como trouxeram à tona Moura (1981) e Nascimento (2016), ao contrário do que reza o mito da passividade/acomodação/docilidade do escravo, que grassa em parcelas da historiografia e do pensamento social brasileiro, os negros criaram um amplo leque de resistência e oposição à escravidão, “entre as quais se incluíam o suicídio, o crime, a fuga, a insurreição, a revolta”[15], assim como o banzo (Nascimento, 2016, p. 71). Segundo Moura (2019), do ponto de vista das classes dominantes da época, era necessário que o negro fosse tomado como irracional, primitivo e inferior, em oposição ao homem branco, europeu, civilizado, e que suas diversas formas de rebeldia fossem entendidas como patológicas e/ou biológicas. Ocorre que essa ideologia racista é incorporada e produzida pelo pensamento social brasileiro e pela literatura, nos quais, com raras exceções, o negro quase nunca é tratado como agente social dinâmico de nossa história, tampouco como herói, no máximo, na condição de humilhado e ofendido[16]. As teorias racistas e eugenistas dos países centrais foram, sem dúvida, incorporadas, adaptadas e reproduzidas por nossas elites (Schwarcz, 1993). A ideia de que o Brasil seria mais civilizado quanto mais branco fosse foi sustentada por vários expoentes do pensamento social brasileiro. Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), ele próprio um “mulato”, considerava os negros “um dos fatores da nossa inferioridade como povo” (apud Nascimento, 2016, p. 82). Francisco José Oliveira Vianna (1883-1951), também preocupado com a miscigenação como fator de degeneração, considerava o mulato “incapaz de ascensão, degradado nas camadas mais baixas da sociedade”, porém existiriam “mulatos superiores, arianos pelo caráter e pela inteligência ou, pelo menos suscetíveis da arianização, capazes de colaborar com os brancos na organização e civilização do país” (2005, p. 170-171). Mesmo na obra de um dos maiores defensores da suposta convivência racial pacífica, Gilberto de Mello Freyre (1900-1987), encontramos a exaltação da cultura dos dominadores brancos: as mestiçagens etnoculturais teriam ocorrido “sem que significasse repúdio à predominância de valores culturais europeus na formação brasileira” (apud Nascimento, 2016, p. 52). O ideólogo Antonio José de Azevedo Amaral (1881-1942), um dos principais expoentes do debate teórico dos anos 1830, defensor de uma modernização conservadora, excludente/autocrática, postulava que o Estado – o verdadeiro demiurgo da construção da identidade nacional, lastreada pela industrialização e pelos princípios da eugenia – deveria “eliminar e/ou desativar condições da reprodução dos ‘degenerados seres inferiores’, como também promover a reprodução dos elementos superiores”, o que pressupunha um programa imigratório de controle racial (Rago, 2019). O processo de difusão do pensamento racista, em suas diversas expressões, incluindo o mito da democracia racial, que penetraram profundamente na subjetividade do brasileiro em geral, contou, sem dúvida, com um amplo trabalho tanto dos ideólogos das classes dominantes quanto com o silenciamento/subserviência teórica/ideológica de parcelas da ciência social brasileira, o que foi fortemente denunciado, embora por angulações teóricas distintas, por Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes, Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, entre outros. Retomando a discussão proposta por Moura (2019), ele tem razão ao afirmar que poucos cientistas sociais buscaram restituir “ao negro escravo a sua postura de agente social dinâmico, não por haver criado a riqueza comum, mas exatamente pelo contrário; por haver criado mecanismos de resistência e negação ao tipo de sociedade na qual o criador dessa riqueza era alienado de todo o produto elaborado” (p. 45-46). Por outro lado, é fundamental destacar a base objetiva do pensamento racista. Se o negro escravizado[17] pôde aparecer no plano subjetivo, na ideologia dominante, destituído de humanidade, de sua dimensão de rebeldia, é porque na vida vivida, efetiva, na forma social escravocrata, todo o seu ser lhe foi alienado. Seu corpo, sua mente, suas capacidades, foram-lhe usurpados, reduzidos à mercadoria como um bem semovente[18], um ser coisificado, propriedade de outro. O negro escravizado é apenas meio de extração do mais-trabalho: família, ancestralidade, línguas, cultura, religiosidade, relações sociais e vínculos afetivos foram-lhe negados ou destroçados. Não pode ser amado, não pode amar. As relações reprodutivas e seus frutos são apropriados pelo senhor. Seu corpo, objeto sexual e instrumento para reprodução geracional dos proprietários: os escravos para a manutenção da casa grande, a escrava que é estuprada pelo senhor, a “cria da casa” pelo sinhozinho, a ama de leite que é forçada a enjeitar seus próprios filhos, a prostituição que é imposta à escrava[19]. Sob todos os aspectos citados, é sobre a mulher negra que recaiu toda a infâmia da escravidão, assim como do racismo, da superexploração e do patriarcado de hoje (Gonzales, 1984; Carneiro, 2011). Como já dissera Marx (2017), sob a lógica da produção do mais-valor, o negro escravizado é apenas objeto de exploração até o limite da morte. É justamente contra essa desumanização das relações sociais que o negro se rebela. A escravidão não o despojou de sua humanidade, embora não tenha podido realizá-la. Contudo, é aquela base objetiva, dada pelas relações sociais de produção, que nos informa que a ideologia racista não é uma subjetivação apartada da forma social escravocrata, mas resultado desta. Ela expressa essa forma social e é necessária à sua reprodução. Ela tem um caráter de classe, expresso tanto pelas classes proprietárias, que necessitam justificar a escravidão, quanto por vários intelectuais que, comprometidos com os interesses daquelas classes e/ou subsumidos à ideologia dominante, estão impossibilitados de elevar a crítica à escravidão à sua radicalidade. Quando a escravidão, que fora fundamental para a acumulação primitiva e a formação do sistema capitalista, torna-se um entrave ao desenvolvimento e à expansão deste, quando essa mesma escravidão se choca com a escravidão do trabalho livre[20], o próprio capital força sua abolição. Todavia, a abolição do trabalho compulsório no Brasil, que é o último país do mundo a decretá-la, não implicou em mudanças efetivas na vida dos negros e da população não branca em geral. O período que vai da proibição ao tráfico (1850), que onera o investimento na mão de obra escrava, até a abolição da escravidão (1888) corresponde ao processo no qual as classes proprietárias e autoridades governamentais, cônscios da inevitabilidade da substituição do trabalho escravo pelo livre, logram estabelecer as principais medidas que lhes dão o controle do processo de transição. A discussão que prevalece no seio das classes dominantes e seus porta-vozes não é a preocupação com a integração social plena da futura população negra liberta, mas o de como preservar seus interesses fundamentais. Para tanto, conquistam duas medidas: a Lei de Terras (1850)[21] e a política de imigração/branqueamento. Segundo a legislação que vigorava até então, o Estado era proprietário das terras, que obtiveram no século XIX o status de patrimônio público, de sorte que a aquisição de terras somente poderia ocorrer por meio de doações do Estado. Tal situação por si só amedrontava os senhores fundiários e os políticos em face da possibilidade futura de uma abolição que incluísse a doação de terras aos libertos, via governo imperial (Moura, 2021). A Lei de Terras dissipou essa preocupação: autorizava o Estado a vender as terras no mercado para quem tivesse capital para adquiri-las. A nova lei, inclusive, previa a venda de terras aos “descendentes de raças civilizadas”, como forma de atrair o imigrante, e vinha com dispositivos para regularização das terras (extremar as terras do domínio público, revalidação de sesmarias, legitimação de posses e imposto territorial), que praticamente se tornaram letra morta (Carvalho, 2010)[22]. Sob a fachada de democratização das possibilidades de acesso à terra, formalizou-se, assim, a liberdade do capital, a manutenção da estrutura fundiária, a posse do latifúndio de monocultura exportadora nas mãos dos mesmos proprietários, não a emergência de condições para a realização da liberdade do povo negro. A escravidão moderna já havia engendrado o pensamento racista que a justificava e garantia o seu funcionamento. Desde a fase colonial, os negros traficados da África para o Brasil, assim como os povos originários, são tomados como bárbaros, raças inferiores envoltas em superstição, fetichismo, animismo. São sub-humanos ou inumanos, em oposição ao homem branco, europeu, civilizado, cuja cultura e religiosidade são, estas sim, legítimas e superiores. Mediante essas concepções, foi facilmente dado um passo à ideologia do branqueamento, que norteou as políticas de imigração, assim como a redefinição dos sistemas classificatórios de hierarquização social e cultural, com base no tipo ideal branco, de seleção étnica e de barragem contra a população afrodescendente, em especial, a negra. O auge da sua elaboração e difusão corresponde exatamente ao período de transição do trabalho escravo para o livre, no qual a população afrodescendente é peremptoriamente descartada para o trabalho assalariado. Com o agravamento da crise social, nos estertores da escravidão, os trabalhadores livres, em geral, descendentes de negros e indígenas, trabalhadores intermitentes, ou seja, a grande massa de mão de obra nacional, despojada de seus meios de subsistência[23] e, pois, marginalizada, vão se avolumando com os negros escravizados, agora em número reduzido. No entanto, é a parcela de mão de obra não branca, em especial negra, que é apresentada pela classe dominante, seus porta-vozes e grupos imigrantistas, como congenitamente inferior, animalesca, ociosa, desordeira, perigosa e incapaz para o trabalho livre. A crise social não é, portanto, atribuída à subsunção econômica, social e política do país, à existência e persistência da escravidão, mas ao povoamento do seu território de raças inferiores, incapazes de se integrar socialmente e inaptas para atender às necessidades de desenvolvimento do país. Enquanto o homem branco, europeu, é seu oposto: superior, disciplinado, capaz de dominar técnicas avançadas de produção, disposto à integração social. Como raça superior, progressivamente eliminaria a “mancha negra”, branquearia a nação, pavimentaria, assim, o caminho da civilização brasileira. Essa ideologia seguiu sustentando, nas décadas seguintes à Abolição, propostas de esterilização e controle de natalidade dos negros. A busca “da redenção de Cam” de nossas elites continua atualmente por meio do genocídio cotidiano de jovens negros. Durante séculos de escravidão, entretanto, foi a mão de obra negra que alicerçou a riqueza do país. Além de trabalhar nos eitos, os negros eram eficientes no setor manufatureiro e artesanal, os mais habilidosos na metalurgia, cujas técnicas foram trazidas da África e aperfeiçoadas, detinham, assim, diversas capacidades que, inclusive, rendiam dividendos aos seus proprietários por serviços prestados a outros, especialmente no meio urbano. São os casos de “escravos de ganho”, que são forçados pelo seu proprietário a trabalhar na rua, cujos rendimentos eram apropriados pelo seu senhor: escravas prostitutas de ganho, barbeiros, médicos, vendedores ambulantes, entre outros (Moura, 2019). O processo de substituição da mão de obra nacional pelo trabalhador branco imigrante, que começa com o fim do tráfico, em 1850, e se amplia a partir do movimento abolicionista, não foi determinado pela suposta inferioridade do negro e superioridade do branco, tampouco por falta de mão de obra nacional. O contingente de trabalhadores desocupados era superior ao número de imigrantes que aportaram no Brasil (1851-1900)[24], portanto, não havia crise de mão de obra que justificasse a política de imigração. Esta vingou por força da pressão e articulação política dos grupos e das empresas de imigração, que obtiveram volumosos lucros com o segundo tráfico, e dos fazendeiros da zona cafeeira, que substituíram a compra onerosa de negros escravizados de outras regiões do país pelo pagamento de baixos salários à mão de obra branca importada. Houve, assim, uma troca da mão de obra negra pela força de trabalho branca imigrante[25]. Se para a grande massa de trabalhadores não brancos faltavam planos de integração social, projetos de inserção na estrutura produtiva e ocupacional, para os trabalhadores brancos imigrantes, foram direcionados investimentos privados e públicos. Todavia, sem ignorarmos as diversas privações e formas de opressão a que foram submetidos os trabalhadores imigrantes no Brasil, o fato é que enquanto a população não branca, nacional, foi alijada do acesso à terra e das demais condições de vida e integração social, os trabalhadores brancos imigrantes tiveram a oportunidade de acesso à propriedade e foram integrados socialmente. Na última década do século XIX, desfrutavam de uma posição social melhor do que a dos negros brasileiros, constituindo-se já no início do século XX numa camada de pequenos proprietários, quer por meio de poupança individual, quer com apoio institucional. A Lei de Terras que impede o acesso da população negra liberta à propriedade é a que preserva nossa secular estrutura fundiária: o latifúndio baseado na produção de gêneros voltada para o capital internacional, não para o atendimento das carências da grande massa – estrutura essa, vale lembrar, exacerbada com a produção de commodities do neocolonialismo atual. As classes proprietárias permanecem voltadas para seus interesses imediatos, centrados na estrutura agroexportadora, enquanto o capital externo, sobretudo inglês, já exerce seu domínio não apenas por meio do comércio mundial, mas pela penetração nos ramos produtivo, comercial e financeiro do país (Prado, 1986). A abolição da escravidão – a transição para o modo de produção capitalista – ocorre, portanto, sob a manutenção da subordinação do país, sob a reiteração das condições socioeconômicas geradoras da exclusão e marginalização das forças populares, majoritariamente negra. Esta, que fora usurpada de suas condições de existência e da propriedade sobre si mesma, foi libertada formalmente do jugo dos proprietários e do Estado e jogada no mercado simplesmente como trabalhadores livres, somando-se à massa de libertos que já se encontrava nessa situação, isto é, despojada de meios de produção[26]. A política de imigração e os mecanismos de discriminação contra o negro cerceiam, a favor da mão de obra branca, o acesso do proletariado negro ao mercado de trabalho ou o confinam em postos subalternos, de forma que a classe trabalhadora negra é duplamente usurpada: dos meios de produção e da única possibilidade de sobrevivência: a venda de sua força de trabalho. Entre a situação de escravidão e a escravidão da liberdade de vender a força de trabalho, as mudanças foram e continuam sendo mínimas. Segundo Moura (2019), os mecanismos ideológicos e práticos de discriminação, controle, repressão e barragem, criados contra os negros escravizados, serão redefinidos contra os negros, que os mantêm, até hoje, “em espaços sociais restritos e controláveis pelas classes dominantes” (p. 131). A estrutura produtiva e comercial urbana é ocupada majoritariamente por trabalhadores imigrantes[27]. A população não branca e negra, em especial, não é incorporada ao proletariado nascente, ela vai “compor a grande franja de marginalizados exigida pelo modelo do capitalismo dependente[28] que substituiu o escravismo” (p. 94), uma massa que será “reserva de segunda categoria do exército industrial” (Moura, 2021, p. 148) – a última a ser admitida e a primeira a ser demitida. A extrema exclusão socioeconômica dos libertos exigiu o aumento da repressão policial. Foram baixados decretos, leis, regulamentos e normas para garantir o controle, punir e disciplinar a grande massa negra marginalizada. Além do cerceamento da locomoção dos negros desempregados, foram restabelecidas antigas “restrições às festividades características da população negra, como batuques, cateretês, congos e outras. Multiplicaram-se as instituições destinadas a confinar loucos, criminosos, menores abandonados e mendigos” (Costa, 2008, p. 138). Como destacado por Abdias do Nascimento (2016), as culturas africanas que resistiram, resistiram na clandestinidade, “foi na conquista do lugar, dentro do contexto brasileiro, de uma cultura perseguida de um povo marginalizado” (p. 120). A República (a emancipação da classe dominante branca do jugo da Coroa[29]), proclamada logo após a Abolição, que removera as bases do Império, volta-se imediatamente contra a população negra marginalizada: cria o Código Penal (1890) que reprime os capoeiristas e torna mais rígida a punição ao crime de vadiagem; destrói, em 1893, o cortiço carioca Cabeça de Porco, que resistira por décadas, entre outras ações repressivas que marcam as políticas urbanistas/higienistas de expulsão territorial de negros e pobres para os morros e as favelas, que perduram até hoje (Rolnik, 1989; Maricato, 2013). A partir do desenvolvimento capitalista, com ou sem o amparo da lei, o negro será socialmente excluído, visto em todas as suas formas de existência como perigo social, identificado ao ócio, à malandragem, à periculosidade, entre outros estereótipos que penetraram profundamente na consciência do brasileiro em geral. Será culpado por sua miséria e marginalização e, com efeito, punido[30]. De acordo com Moura (2019), como não houve mudanças radicais na transição da escravidão para as relações de produção capitalistas, a ideologia racista foi mantida, reformulada e difundida, o que permitiu à classe dominante “justificar o peneiramento econômico-social, racial e cultural” imposto ao negro (p. 39). A difusão da ideologia da miscigenação benevolente e da democracia racial (pensamento este, vale dizer, da mesma natureza de outras concepções burguesas) atua para escamotear uma realidade social profundamente desigual, antagônica e discriminatória, e legitimar o racismo na sociedade capitalista. Dessa forma, se existe democracia racial e os negros são socialmente marginalizados é porque eles não souberam acompanhar o ritmo do progresso e aproveitar as oportunidades sociais, são culpados, portanto, por sua inferioridade econômica, social e cultural[31]. A subalternidade deve-se, assim, à incapacidade das camadas negras e não às barreiras de peneiramento a que foram submetidas. No entanto, os mecanismos de peneiramento, de seletividade racial, determinam “o imobilismo social” do negro (Moura, 2019). O preconceito de cor e a discriminação restringem as possibilidades sociais e as expectativas de vida do negro, o que pode ser constatado no comportamento racista rotineiro de grandes parcelas da população branca, nas escolhas afetivas, nas relações de amizade e familiares, nos processos educacionais, no mercado de trabalho (sobretudo para a trabalhadora negra[32], que ocupa os postos mais subalternos, recebe os salários mais baixos e sofre as maiores taxas de desemprego do país[33]), assim como na atuação das forças policiais (as mais letais do mundo), que vitimam, na esmagadora maioria, homens negros, especialmente jovens[34]. Esse processo histórico e rotineiro de discriminação, marginalização e violência tem, sem dúvida, implicações profundamente complexas na consciência, no comportamento e na personalidade do negro. Como forma de escapar da discriminação, segmentos não brancos tendem a fugir de sua realidade, produzindo uma autoimagem distorcida, assimilando a moralidade burguesa, mascarando-se justamente com os valores que foram criados para discriminá-los (Moura, 2019; Fanon, 2020)[35]. O racismo, no entanto, não é uma via de mão única, ele não só medeia as relações sociais como é produto da prática social que produz o mundo e os indivíduos que atuam nesse mundo. A subjetividade do branco/do racista não pode escapar dos efeitos do racismo (Faustino, 2019), posto que é constitutiva dessas relações historicamente construídas. A inferiorização/racialização da população afrodescendente, que é operada ideológica e socialmente, objetiva-se na totalidade da vida social concreta. O pensamento e a prática social racista, que expressam a incapacidade de reconhecimento do negro como ser humano e, vale dizer, outras formas de alienação/estranhamento/opressões próprias da sociabilidade capitalista obstam o livre desenvolvimento da personalidade e autoafirmação humana de todos os indivíduos. Ao menos duas questões ainda se impõem: por que o racismo se faz socialmente necessário? Qual é a função desempenhada pela racialização da classe trabalhadora na acumulação do capitalismo brasileiro? 3. Racialização, superexploração da classe trabalhadora e autocracia burguesa Moura (2019) jamais desvinculou o problema da discriminação e marginalização do povo negro, sobretudo da grande massa negra proletária e pobre, que reconhece como “o centro nevrálgico do dilema racial no Brasil”[36] (p. 31), da forma social capitalista. Embora não tenha se detido no exame da categoria da superexploração da força de trabalho e como esta se coloca como única alternativa ao capitalismo brasileiro, reconheceu a funcionalidade da racialização do negro na relação capital e trabalho no Brasil. O Negro foi obrigado a disputar a sua sobrevivência social, cultural e mesmo biológica em uma sociedade secularmente racista, na qual as técnicas de seleção profissional, cultural, política e étnica são feitas para que ele permaneça imobilizado nas camadas mais oprimidas, exploradas e subalternizadas. Podemos dizer que os problemas de raça e classe se imbricam nesse processo de competição do negro, pois o interesse das classes dominantes é vê-lo marginalizado para baixar os salários dos trabalhadores no seu conjunto. (Moura, 2021, p. 215) Moura (2019) também reconheceu que o trabalhador negro “tem especificidades, particularidades e um nível de complexidade muito mais profundo do que o trabalhador branco”, no entanto, “está a ele ligado porque não se poderá resolver [...] o problema do racismo brasileiro, sem atentarmos para o fato de que esse racismo [...] tem causas econômicas, sociais, históricas e ideológicas que alimentam seu dinamismo” (p. 32). Não obstante, para aprofundar o exame das funções desempenhadas pelos mecanismos de seleção étnica e de discriminação contra o negro na acumulação do capital, é fundamental ter em conta a particularidade do capitalismo brasileiro que, conforme visto anteriormente, sustenta-se no poder autocrático do Estado e na superexploração da força de trabalho. Forjada pelo sistema capitalista e pela escravidão moderna, a racialização da classe trabalhadora é constitutiva da formação social brasileira e do capitalismo de via colonial, que emerge já contando com um exército de mão de obra majoritariamente composto de não brancos, de uma grande massa de trabalhadores excluída da economia agroexportadora, cujo esgotamento cria um excedente de mão de obra que realimentará a superexploração da força de trabalho no capitalismo industrial, que deu seus primeiros passos na década de 1930. O avanço do capitalismo industrial brasileiro, conforme mencionado, somente ocorreu a partir de meados dos anos 1950 por meio de sua associação subordinada ao imperialismo. No entanto, sua expansão, sua modernização e seu aumento de produtividade reiteraram a superexploração da força de trabalho. Ou seja, o progresso técnico permitiu ao capitalista “intensificar o ritmo de trabalho do operário, elevar a sua produtividade e, simultaneamente, manter a tendência a remunerá-lo em proporção inferior ao seu valor real” (Marini, 2000, p. 147). Marini não se debruçou sobre o problema da racialização da classe trabalhadora, mas sua análise da superexploração da força de trabalho é uma chave importante para a discussão das bases materiais do racismo. Segundo esse cientista social, a introdução de inovações tecnológicas do exterior numa economia subordinada, já baseada na superexploração da força de trabalho, resulta na ampliação do exército industrial de reserva, que é um dos elementos que viabiliza a superexploração da força de trabalho, e numa grande heterogeneidade tecnológica, que leva os setores monopólicos, que produzem a custos de produção mais baixo, a se apropriarem de uma mais-valia extraordinária, e os setores de baixa composição orgânica a recorrerem a superexploração da força de trabalho para compensar a perda de parte de sua mais-valia para aqueles setores. Entretanto, uma vez que os setores produtivos com baixa composição orgânica reúnem a maior parte da força de trabalho do país, a redução salarial tende a se estender, em termos relativos, aos setores monopólicos, inclusive, porque nestes “também há uma força de trabalho empregada cujo nível de remuneração obedece, em termos gerais, ao nível médio fixado em empresas que trabalham em condições médias” (1979a, p. 8). De forma que: [...] a superexploração se reflete em uma escala salarial cujo nível médio está abaixo do valor da força de trabalho, o que implica que mesmo aquelas camadas de trabalhadores que conseguem sua remuneração acima do valor médio da força de trabalho (trabalhadores qualificados, técnicos etc.) veem seu salário constantemente empurrado para baixo [...] pelo papel regulador que o salário médio desempenha em relação à escala salarial como um todo. (Marini, 1979a, p. 8-11) Afora outros problemas que fogem ao escopo do presente texto[37], vale destacar o fundamental dos lineamentos de Marini: a superexploração da força de trabalho diz respeito ao conjunto da classe trabalhadora no Brasil, não é uma forma de extração do trabalho excedente específica de uma determinada categoria ou grupos de trabalhadoras e trabalhadores. A partir desses lineamentos, é possível ver que a parcela racializada do proletariado, discriminada e marginalizada no mercado, é funcional para viabilizar e reproduzir a superexploração da força de trabalho, quer por sua expulsão para o exército de desempregados que, por sua vez, como afirma Marini (1979b), “viabiliza a pressão do capital sobre as condições de trabalho e remuneração dos trabalhadores” (p.37)[38], quer por sua baixa remuneração, que incide sobre o salário médio no mercado de trabalho. A racialização do proletariado negro, que é a maioria da força de trabalho no Brasil, os desempregados e subempregados criam o que Marx (2017) já apontava: as condições que permitem ao capital impor à classe trabalhadora o grau de exploração que lhe convém para maximizar a massa de trabalho não pago ao menor custo possível. Pouco importa para o capital que sua expansão e regime de exploração resultem no definhamento da classe trabalhadora já que ele tem à sua disposição uma massa de trabalhadores, sempre crescente, obrigada a se candidatar à morte). Situação esta que só pode ser contraditada pela organização e ofensiva da própria classe trabalhadora. O racismo atua, sem dúvida, como divisor da classe trabalhadora, ao lado de outras formas de alienação/estranhamento e demais condições e formas de opressão (inerentes ao capital[39]), que o reforçam e são por ele reforçadas, colocando os de pele branca e os de pele negra em esferas opostas, supostamente irreconciliáveis, enquanto o antagonismo entre capital e trabalho é obnubilado. Tal situação, no entanto, não elimina nem o fato de que a superexploração da força de trabalho é exercida sobre o conjunto da classe trabalhadora, nem a obviedade de que a parte mais oprimida do proletariado é a trabalhadora negra. A superexploração da força de trabalho expressa, assim, umas das bases materiais do racismo. A classe trabalhadora negra tem, contudo, demandas e desafios específicos. Como insistiam Fernandes, Moura e Gonzalez, ao trazerem para o centro da luta antirracista no Brasil a realidade da grande massa negra proletária, a situação do negro vincula-se à dinâmica da luta de classes, mas com particularidades muito mais complexas que as do trabalhador branco[40], sobretudo a trabalhadora negra, sobre a qual recaem as opressões racial, patriarcal e de classe. O racismo é, pois, uma das formas que permite ao capitalismo brasileiro exercer plenamente seu domínio sobre o conjunto da classe trabalhadora[41]. Os diversos esquemas classificatórios e de peneiramento racial, perpetuados na sociedade brasileira, que inferiorizam e discriminam o negro, conforme o padrão ideológico, cultural e estético da classe dominante branca, não são mais codificados. Até 1950, os anúncios de emprego tinham a explícita advertência de não se aceitar “pessoas de cor”, mas mesmo a partir da lei Afonso Arinos (1951), que proibiu a discriminação racial, os anúncios passaram a usar o eufemismo “pessoas com boa aparência”. Os esquemas discriminatórios não têm o amparo da lei[42], como teve a segregação racial pelas Leis Jim Crow nos Estados Unidos (1877-1965), mas são igualmente objetivos, são institucionalizados pela vida, pela prática social, que produz a sociedade e os seres que atuam nela, produzindo os mesmos efeitos: barram o negro, limitam seus espaços e suas relações sociais, levam a adoecimentos de toda sorte[43], à violência racial e ao genocídio negro. O racismo se objetiva, assim, na totalidade das relações sociais da realidade brasileira, na reprodução da vida, no trabalho, nas relações familiares, nos vínculos afetivos e nas relações sexuais, nos processos educacionais, institucionais e políticos, assim como na linguagem. No entanto, qual é a fonte que o retroalimenta, que o faz necessário? Esta não é senão uma forma social (capitalista), cuja particularidade (capitalismo de via colonial) exacerba e torna mais violenta as contradições inerentes ao capital, uma vez que se funda sob a exclusão das massas populares, sustenta sua acumulação na superexploração da força de trabalho, para a qual é funcional a racialização da classe trabalhadora. O capitalismo brasileiro de via colonial caracteriza-se por uma forma de acumulação viabilizada por meio da superexploração da força de trabalho e por submeter as parcelas mais excluídas e negligenciadas pelas suas relações de produção a formas de trabalho análogas à escravidão, isto é, um capital que se alimenta do mínimo indispensável à sobrevivência física dos trabalhadores. O capitalismo brasileiro, que se sustenta na exclusão das forças populares, na racialização e na superexploração da classe trabalhadora, não pode se reproduzir sem sua outra face, o Estado autocrático, quer em sua expressão ditatorial/bonapartista, quer sob o Estado de Direito, das liberdades políticas e institucionais. O Estado de Direito pode, inclusive, aperfeiçoar os dispositivos autocráticos, que são necessários para rechaçar qualquer ameaça real ou potencial das forças do trabalho[44]. O desenvolvimento do capitalismo brasileiro não somente não traz consigo a democracia como necessita barrá-la, e não apenas barrar qualquer movimentação social que vise suplantar as minorias autocráticas que consubstanciam o historicamente velho (a subordinação estrutural, a contraposição entre desenvolvimento e progresso social...), como precisa eliminar direitos conquistados pela classe trabalhadora, como as reformas trabalhista e previdenciária, que intensificam a superexploração do trabalho e a oficializa nos dispositivos legais, enquanto o Estado transfere a riqueza para o capital monopólico/financeiro por meio da dívida pública. A discriminação e a violência raciais são uma das maiores expressões da autocracia burguesa, que mantém em “espaços restritos e controláveis” os setores populares, o povo negro, que ao longo de toda a história brasileira foi silenciado a ferro e fogo. A população afrodescendente é a maior vítima da repressão e tortura desde a fase colonial, mas foram poucos os que se lembraram dela ao denunciarem os horrores da ditadura militar (1964-1984). Engendrado pela escravidão moderna e reformulado nos momentos seguintes da vida nacional, o racismo é constitutivo do desenvolvimento do sistema capitalista, da formação social brasileira e do capitalismo de via colonial. O racismo não é apenas uma herança do passado colonial e escravocrata, ele é funcional ao capital (viabiliza a superexploração do conjunto da classe trabalhadora) e é expressão do caráter autocrático da burguesia brasileira que, conforme visto, é incapaz de assumir a universalidade da sociedade brasileira, de integrar o conjunto de suas categorias sociais em sua diversidade étnica e cultural, mesmo nos estreitos limites da democracia burguesa. O racismo não é uma subjetivação ou prática social apartada do sistema capitalista, mas produto dessa relação social de produção. O racismo não é apenas uma ideologia ou um pensamento, tampouco um fenômeno autossustentado, ele tem bases objetivas, dadas pela natureza da forma social que o engendra. Como uma dada ideologia ou pensamento, o racismo orienta e medeia ações humanas concretas, quer individuais, quer de classes ou institucionais, posto que nenhuma ação social é destituída de pensamento, de prévia ideação, mas emerge e opera em determinadas condições sócio-históricas, de modo que, em suas várias expressões, ideológicas e práticas, não subsistiria sem uma profunda afinidade com a lógica do capital e, em particular, com o modo de ser e ir sendo do capitalismo brasileiro. Considerações finais A partir da promulgação da chamada constituição cidadã, em 1988, houve, sem dúvida, importantes avanços no campo do Estado de Direito. Além do Sistema Único de Saúde (SUS) e outras conquistas, antigas reivindicações dos movimentos e lideranças dos povos originários e afrodescendentes foram incorporadas nas legislações e políticas de Estado[45] – à custa do suor e sangue de seus protagonistas, não por concessões beneficentes das classes dominantes. Durante o boom internacional das commodities, houve melhorias na base da pirâmide social por meio de programas sociais de renda (que sequer se tornaram políticas de Estado) e de políticas afirmativas de recorte social e racial, mas pesquisas empíricas atestam que a concentração de riqueza[46], as desigualdades sociais[47] e étnico-raciais, a violência racial e de gênero recrudesceram no país, a par da criminalização da classe trabalhadora, de suas lideranças e dos movimentos sociais, a exemplo da repressão às Jornadas de Junho de 2013 (Miguel, 2023) e da violência cotidiana no campo[48] que, por sua vez, divide com a questão da mobilidade urbana o problema da propriedade territorial no país. Os povos indígenas e quilombolas obtiveram conquistas jurídicas para acesso a seus territórios, mas a maioria ainda não recebeu a titulação de suas terras[49]. A despeito do aumento do número de negros com instrução formal, de sua presença significativa nas instituições de ensino superior, a seletividade racial continua impondo aos trabalhadores negros, sobretudo, às trabalhadoras negras, o desemprego, as ocupações mais subalternas e os salários mais baixos no mercado de trabalho[50]. Os mecanismos de controle e repressão de outrora, criados pelas classes dominantes contra a rebeldia dos negros escravizados, são traduzidos hoje com o encarceramento em massa de negros e pobres, cuja maioria sequer foi julgada. Quase um milhão de seres humanos vivem em presídios que lembram “navios negreiros” (Alves, 2017). São traduzidos por um Estado militarizado e miliciano[51], responsável pela continuidade do genocídio negro, sobretudo de jovens, por um Estado que facilita a expulsão territorial de negros e pobres para as periferias das grandes metrópoles. A profilaxia das classes dominantes, das autoridades e lideranças políticas, inclusive de “esquerda”, restringe-se, porém, à segurança pública, à modernização das polícias e à legislação antiterrorista. São instrumentos eficazes, sem dúvida, para defesa da propriedade privada e para o controle social, com o que se naturalizam os territórios da favela e da prisão como lugares demarcados para os pretos e pobres, o que está em perfeita sintonia com o estreitamento congênito do horizonte de classe da burguesia brasileira, cujo caráter incompleto/incompletável e subordinado consolidou-se, a partir do fim dos anos 1980, no bojo da mundialização do capital e da atual divisão internacional do trabalho, comandadas pelo capital monopólico/financeiro (Sobrinho, 2019), de forma que quanto mais subordinada, quanto mais estreito seu espaço de atuação, mais mesquinha e truculenta[52]. As classes dominantes no Brasil (que compreendem o que restou da chamada burguesia nacional e o capital externo) e suas elites políticas identificam modernidade com o neocolonialismo, modernização com privatização da riqueza/dos serviços públicos, com avanço da fronteira agrícola e mineral, com depredação de seu patrimônio ambiental (que dizima os povos originários e condena a sobrevivência do planeta[53]) e, assim, tornam inócuas as conquistas históricas no campo do direito e da representatividade política e, ainda, pressionam por novos dispositivos legais de proscrição dos povos originários, a exemplo do chamado marco temporal para demarcação de terras[54]. A complexidade do racismo no Brasil reside, assim, tanto na profundidade e diversidade de formas de subalternização do povo negro e seus respectivos padecimentos físicos e psíquicos, quanto no fato de ele dividir com os demais problemas sociais do país as mesmas raízes. A discriminação e a violência raciais devem ser combatidas por dispositivos jurídicos e institucionais, mas desvincular o racismo da forma de dominação burguesa no Brasil, do capital incompleto e subordinado, como se o capital e suas personae não tivessem nenhuma responsabilidade, ou reduzi-lo a uma questão de representatividade política, a uma demanda identitária (que pouco ou nada tem a ver com identidade negra, com as demandas, a realidade e lutas da grande massa negra) a ser atendida no interior da mesma forma social que o engendra e o faz necessário, é contribuir para um ambiente já bastante confortável para o capital. Os avanços no campo do direito e da representatividade política, embora significativos e necessários, não suplantam as bases objetivas do racismo e as condições socioeconômicas geradoras das desigualdades sociais, não por deficiências jurídicas e institucionais ou porque essas, dirão alguns, não avançaram o suficiente, mas porque, como dizia Marx (2010), “a impotência é a lei natural da administração” (p. 60). O Estado, mesmo o mais democrático, “deixa em pé os pilares do edifício” (Marx, 1977, p. 10), mantém suas bases de sustentação, a divisão social do trabalho e a propriedade privada, de sorte que a esfera do direito, a esfera administrativa, deve limitar-se a uma “atividade formal e negativa”, posto que “lá onde começa a vida civil e o seu trabalho, cessa o seu poder” (Marx, 2010, p. 60), isto é, onde exatamente se encontram as raízes da penúria social, do racismo e do genocídio[55]. Contudo, se o Estado moderno “tem a violência como seu conteúdo mais central, uma vez que é a outra face do capital” (Cotrim, 2016, p. 10), os níveis de violência não são idênticos a todas as formas de Estado. Em países como o Brasil, marcado pela reiterada oposição entre desenvolvimento econômico e progresso social, a extrema exclusão socioeconômica e racial, que é a base de sustentação da acumulação capitalista no país, exige o aumento da repressão. O racismo é um dos problemas sociais mais graves e complexos do mundo contemporâneo e, em particular, do Brasil. Não é de modo algum fortuita a relação entre a intensificação da crise estrutural do capital/o avanço do neoliberalismo, a partir dos anos 1970, e o aumento da violência estatal, da violência de gênero e da chamada precarização do trabalho (Cotrim, 2022), inclusive nos países centrais. Todavia, se o Brasil somente é coetâneo com o primeiro mundo nessa quadra histórica de degradação social, é porque sua ordem social foi fundada e se desenvolveu até hoje sob a subsunção externa, a violência racial e a exclusão material e política das massas populares que, por sua vez, sustentaram o padrão de vida dos países centrais. Notas [1] Maria Goreti Juvencio Sobrinho é doutora em Ciências Sociais (PUC/SP) e mestre em Ciência Política (Unicamp). Atualmente é pesquisadora do Núcleo de Estudos de História: Trabalho, Ideologia e Poder (NEHTIPO) PUC- SP. E-mail: mgjsobrinho@gmail.com. [2] A burguesia brasileira “possui uma costela nacional e outra internacional” (Fernandes, 1985, p. 66). [3] “[...] a revolução dentro da ordem é impossível para eliminar as iniquidades econômicas, educacionais, culturais, políticas etc., que afetam os estratos negros e mestiços da população. Mesmo quando o negro não são sabe o que é socialismo, a sua luta por liberdade eigualdade possui uma significação socialista” (Fernandes, 2017, p. 42). [4] Em 1846, Marx, ao falar da escravidão dos negros no Suriname, no Brasil e nas regiões sul da América do Norte, demarcou a conexão entre escravidão, colonialismo e capitalismo: “A escravidão direta é tão crucial para girar as engrenagens do industrialismo atual quanto a maquinaria, o crédito etc. Sem a escravidão não haveria algodão, sem algodão não haveria indústria moderna. Foi a escravidão que deu valor às colônias, foram as colônias que criaram o comércio mundial, e o comércio mundial é condição necessária para a indústria em larga escala. [...] A escravidão é, portanto, uma categoria econômica de importância fundamental” (apud Anderson, 2019, p. 143). [5] O Brasil colabora para a produção de mais-valia relativa já que incrementa a oferta mundial de alimentos (bens-salário) que, por sua vez, reduz o valor real da força de trabalho nos países industriais, o que faz com que nestes o incremento da produtividade se expresse na elevação da cota de mais-valia. Ajuda a contrabalançar a tendência à queda da taxa de lucro nos países industriais, que resulta da elevação da composição orgânica do capital, já que aumenta a oferta mundial de bens primários, que reduzem o valor do capital variável e do capital constante (Marini, 2000). [6] Segundo Marini (2000), a superexploração da força de trabalho ocorre por meio de três mecanismos, que podem ser utilizados de forma isolada ou combinada: ampliação da jornada de trabalho, aumento da intensidade do trabalho e da redução salarial. Adverte que “o conceito de superexploração não é idêntico ao de mais-valia absoluta, já que inclui também uma modalidade de produção de mais-valia relativa – a que corresponde ao aumento de intensidade do trabalho”. A mais-valia absoluta não significa, necessariamente, que a força de trabalho seja remunerada abaixo do seu valor real. Para que ocorra a superexploração da força de trabalho, mediante o prolongamento da jornada de trabalho (ampliação do trabalho excedente), é necessário que a força de trabalho seja remunerada abaixo do seu valor real, isto é, que não receba uma remuneração equivalente ao seu desgaste. Nesse sentido, vale lembrar que, segundo Marx, “toda variação na magnitude, extensiva ou intensiva, do trabalho afeta [...] o valor da força de trabalho, na medida em que acelera seu desgaste” (apud Marini, 2000, p. 126). [7] “Isso explica por que o trabalho dos negros nos estados sulistas da União Americana conservou certo caráter patriarcal, enquanto a produção ainda se voltava sobretudo às necessidades imediatas. Mas à medida que a exportação de algodão tornou-se o interesse vital daqueles estados, o sobretrabalho dos negros, e, por vezes, o consumo de suas vidas em sete anos de trabalho, converteu-se em fator de um sistema calculado e calculista. O objetivo já não era extrair deles uma certa quantidade de produtos úteis. O que importava, agora, era a produção do próprio mais-valor” (Marx, 2017, p. 310). [8] “No caso do escravo, o salário-mínimo aparece como uma magnitude constante, independente de seu trabalho. No caso do trabalhador livre este valor de sua capacidade de trabalho e o salário médio que corresponde ao mesmo não estão contidos dentro desses limites predestinados, independentes de seu próprio trabalho, determinados por suas necessidades puramente físicas. A média aqui é mais ou menos constante para a classe, como o valor de todas as mercadorias, mas não existe nesta realidade imediata para o operário individual cujo salário pode estar por cima ou por baixo desse mínimo” (Marx, Capítulo VI (Inédito), apud Marini, 2000, p. 127). Discorrendo sobre as diferenças entre trabalho escravo e trabalho assalariado, Marini concluiu que o trabalho escravo é incompatível com a superexploração da força de trabalho: “salvo na hipótese de que a oferta de trabalho seja totalmente elástica (o que não se verifica na América Latina, a partir da segunda metade do século XIX), o regime de trabalho escravo constitui um obstáculo ao rebaixamento indiscriminado da remuneração do trabalhador [...]. Não acontece o mesmo com o trabalho assalariado e, em menor medida, com o trabalho servil” (Marini, 2000, p. 127). [9] Como afirma Marx (2017), “o senhor de escravos compra seu trabalhador como compra seu cavalo. Se perde seu escravo, ele perde um capital, que tem de ser reposto por meio de um novo gasto no mercado de escravos. [...] Preocupações econômicas que poderiam oferecer uma espécie de segurança para o tratamento humano do escravo [...] transformaram-se, após a introdução do tráfico escravista, em razões para a mais extrema deterioração do escravo. [...] Por isso, é uma máxima da economia escravista, em países importadores de escravos, que a economia mais eficaz está em extrair do gado humano [...] a maior quantidade possível de trabalho no menor tempo possível” (p. 338-340). [10] Lei Eusébio de Queiróz, n. 581/1850. [11] Lei Imperial, n. 3353/1888. [12] Essa situação é retratada no conto “Bons dias” de Machado de Assis. [13] O que ocorre por meio do politicismo. A respeito, ver Chasin, 2000. [14] A escravidão não teria subsistido sem o terror cotidiano, por meio de diferentes formas e instrumentos: “o tronco, a gargalheira, o anjinho, o açoite, a prostituição forçada, a desarticulação familiar, a cristianização compulsória, a etiqueta escrava em relação ao senhor, o homossexualismo imposto, a tortura nas suas diversas modalidades” (Moura, 2021, p. 42). Encontramos a figuração de alguns dos horrores e atrocidades perpetrados contra os negros escravizados nos desenhos do italiano Angelo Agostini, em atividade no Brasil na segunda metade do século XIX (Maringoni, 2011). [15] A República dos Palmares, “surpreendentemente progressista para a época”, tinha como base uma estrutura auto-organizacional, da produção e de seus resultados, voltada para as necessidades dos próprios quilombolas (Moura, C., 2021, p. 55-57). [16] Clóvis Moura (2019) e Abdias do Nascimento (2016) consideram Machado de Assis um exemplo de intelectual que se embranqueceu, que teria privilegiado em sua obra personagens do universo da classe branca dominante e se subsumido ao padrão linguístico/estilístico metropolitano. Entretanto, a nosso ver, a obra machadiana é marcada por uma crítica contundente à escravidão, na qual a rebeldia do ser humano escravizado também é retratada. No conto Mariana, por exemplo, os traços mais viscerais da classe escravocrata são tipificados no pensamento e nas ações do personagem Coutinho, o objeto do amor da personagem Mariana, a escrava, a “mulata”, “a cria da casa” que, impossibilitada de realizar sua humanidade, comete o suicídio. O suicídio aqui é o instrumento de rebeldia de Mariana, posto que a uma vida desumana, à impossibilidade de realizar seu amor por Coutinho, escolheu a morte. A narrativa machadiana retrata a humanidade de Mariana, em nítida superioridade ao padrão humano dos demais personagens daquele universo societário, assim como o patriarcado, no qual a mulher (incluindo a que pertence à classe dominante, retratada pela personagem Amélia, a noiva de Coutinho) é objeto do prazer, da vaidade, da satisfação e da felicidade do homem. A posição de Coutinho em relação à mulher, o modo como pensa e trata a escrava, seu interesse e sua aversão ao amor de Mariana expressam tanto o racismo e a superioridade de classe como a opressão de gênero, o que nos remete à complexidade do racismo, que quase nunca se objetiva desvinculado de outras formas de alienação/estranhamento/opressões. Sobre o realismo machadiano, ver Cotrim, 2020. [17] Marx (2020), em um de seus primeiros trabalhos de crítica à economia política, explicitando os vários limites dessa ciência, que naturaliza a sociedade burguesa, que é incapaz de apreender o capital fundamentalmente como relação social, como uma determinada forma de ser dos homens, historicamente efetivada, pergunta: “O que é o negro?”, em seguida, responde: “Um homem da raça negra. Uma explicação vale a outra. Um negro é um negro. Só se torna um escravo em determinadas condições”. Igualmente sucede com as demais coisas que se tornam capital: “Uma máquina de fiar algodão é uma máquina de fiar algodão. Só em determinadas condições se torna capital. Excluída dessas condições, ela é tão pouco capital como o ouro é em si e por si dinheiro ou o açúcar é o preço do açúcar” (p. 521). [18] Em termos jurídicos, o negro escravizado era tratado como um animal, um bem semovente, sem obrigações jurídicas, era objeto do direito do indivíduo que o possuía, não sujeito de direito. Entretanto, em face da rebeldia do negro escravizado, real e/ou potencial, foram criadas também legislações penais, nas quais o escravo era responsabilizado por crimes, deveria responder a processo, ir a julgamento, sofrer penas. Sobre as transformações do instituto jurídico da escravidão no Brasil, suas contradições e polêmicas, ver Chignoli, Daniel Nogueira. De objeto a sujeito: o estatuto jurídico dos escravos no Império do Brasil. 2018. Dissertação (Mestrado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. [19] Abdias Nascimento (2016, p. 73), desmascarando o mito da miscigenação benevolente, lembra: “O costume de manter prostitutas negro-africanas como meio de renda, comum entre os escravocratas, revela que além de licenciosos, alguns se tornavam também proxenetas”. [20] “O contrato pelo qual ele vende sua força de trabalho ao capitalista prova [...] que ele dispõe livremente de si mesmo. Fechado o negócio, porém, descobre-se que ele não era ‘nenhum agente livre’, que o tempo de que livremente dispõe para vender sua força de trabalho é o tempo em que é forçado a vendê-la, que, na verdade, seu parasita não o deixará ‘enquanto houver um músculo, um nervo, uma gota de sangue para explorar’” (Marx, 2017, p. 373). [21] Lei número 601, 18 de setembro de 1850: "Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por simples titulo de posse mansa e pacifica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a titulo oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento de colonias de nacionaes e de extrangeiros, autorizado o Governo a promover a colonisação extrangeira na forma que se declara. [...] Art. 1º Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra. [...]” Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l0601-1850.htm#:~:text=LEI%20No%20601%2C%20DE,sem%20preenchimento%20das%20condi%C3%A7%C3%B5es%20legais.%20Acessado%20em:%2010%20jul.%202023. [22] Algumas mazelas da estrutura fundiária brasileira, originária das chamadas sesmarias, foram, de certa maneira, percebidas já em 1821 por José Bonifácio, cuja visão, segundo Moura (2020), era mais progressista do que os legisladores da lei de terras de 1850 e dos abolicionistas, em geral, posto que chegou a propor a criação de uma legislação que, embora não eliminasse o direito do Estado de doar terras, recomendava sua extensão também a índios, mulatos, negros e forros, além de incluir novos critérios para o tamanho da propriedade e para as terras improdutivas e despovoadas. [23] Vale lembrar que a miséria também grassava entre a população branca proletária, à margem da opulência das classes proprietárias. Pai contra mãe, outro conto de Machado de Assis sobre o universo societário da escravidão, narra as contradições, o embate entre a vida e a morte entre os personagens Cândido, o pai, branco, pobre, que é levado ao ofício “caçador de escravos fugidos”, e Arminda, a escrava grávida fugida. No entanto, é sobre a mulher negra escravizada que a opressão e a degradação social são mais profundamente implacáveis: ao seu retorno forçado ao calabouço, aborta, enquanto o rebento do branco vinga. [24] Entre 1851-1900, entraram 2.092.847 imigrantes europeus no Brasil. Entretanto, “em 1882 tínhamos, nas províncias de São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Ceará e Rio de Janeiro, para 1.443.170 trabalhadores livres e 656.540 escravos, uma massa de desocupados de 2.822,583” (Moura, 2019, p. 115). [25] Com a entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial, que obsta a imigração subvencionada, recorre-se ao contingente de trabalhadores não brancos, do mesmo modo que os negros escravizados foram recrutados para lutar e morrer pela nação durante a Guerra do Paraguai. [26] Marx (2017) critica os historiadores burgueses que apenas reconhecem um dos aspectos do processo histórico que transforma os produtores em trabalhadores assalariados: a libertação do jugo da servidão e da corporação, não vendo que “os recém-libertados só se convertem em vendedores de si mesmos depois de lhes terem sido roubados todos os seus meios de produção, assim como todas as garantias de sua existência que as velhas instituições feudais lhes ofereciam” (p. 787). [27] Segundo Moura (2019), nas regiões prósperas da economia cafeeira, os trabalhadores negros foram totalmente excluídos e marginalizados, enquanto nas zonas decadentes do Nordeste, que não contavam com capital para investir na substituição de mão de obra, os recém-libertos, assim como a população não branca em geral, foram integrados “em uma economia da miséria” (p. 119), sujeitos, vale recordar, àquelas modalidades de superexploração da força de trabalho como visto anteriormente. [28] Segundo Moura (2021), a longa duração do “modo de produção escravista” o teria levado, em seus estertores (1850-1888), a encontrar-se com as forças imperialistas, o que estrangulou as possibilidades de desenvolvimento de um capitalismo autônomo/nacional. A transição para o trabalho livre teria engendrado o que o autor denomina “capitalismo dependente”. Vale observar que o conceito de dependência é usado desde os anos 1960 por autores com distintas perspectivas de classe. [29] Esse transformismo da Proclamação da República é retratado na obra machadiana Esaú e Jacó. Sobre os dois personagens centrais do romance, a figura do narrador nos informa: “Pedro era monarquista, Paulo republicano. Sobre a abolição, os dois concordam, mas por razões diversas [...]. A diferença única entre eles dizia respeito à significação da reforma, que para Pedro era um ato de justiça, e para Paulo era o início da revolução. E mesmo o disse, concluindo um discurso em São Paulo, no dia 20 de maio: ‘A abolição é a aurora da liberdade, esperemos o Sol, emancipado o preto, resta emancipar o branco’” (Assis, 2020, p. 224-225). [30] É da natureza do Estado a incapacidade de compreensão e resolução dos males sociais (Marx, 2010). [31] A ideologia racista, que transfere para o negro a responsabilidade por sua marginalização, foi expressa até mesmo por uma figura progressista como Celso Furtado, que responsabiliza o negro pelo atraso econômico brasileiro. Avaliando a corrente migratória europeia para São Paulo, após a Abolição, afirma: “as vantagens que apresentava o trabalhador europeu com respeito ao ex-escravo são demasiado óbvias para insistir sobre elas [...]. Cabe tão somente lembrar que o reduzido desenvolvimento mental da população submetida à escravidão provocará a segregação parcial desta após a Abolição, retardando sua assimilação e entorpecendo o desenvolvimento econômico do país” (apud Moura, 2019, p. 113-114). [32] As mulheres pretas ou pardas são a maioria da população de jovens entre 15 e 29 anos que não estudam nem estão ocupadas no Brasil (2019-2021). “Síntese de indicadores sociais, uma análise das condições de vida da população brasileira 2022” do IBGE. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101979. Acessado em: 14 jul.2023. [33] Segundo PNAD do IBGE (maio de 2023), a taxa de desocupação para pretos (11,3%) e pardos (10,1%) ficou acima da média nacional (8,8%), enquanto para brancos (6,8%) ficou abaixo. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/home/pnadcm. Acessado em: 14 jul. 2023. [34] Os pretos e pardos chegam a 84,1% de todas as vítimas de intervenções policiais. “Anuário Brasileiro de Defensoria Pública 2022”. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/05-anuario-2022-letalidade-policial-cai-mas-mortalidade-de-negros-se-acentua-em-2021.pdf. Acessado em: 14 jul. 2023. Segundo o “Atlas da Violência” IPEA, 2021, os homens negros ultrapassam 70% das vítimas de homicídios no Brasil, a maioria jovem, entre 15 e 29 anos. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/5141-atlasdaviolencia2021completo.pdf. Acessado em: 14 jul. 2023. [35] Franz Fanon (2020) buscou mostrar que, ao invés das “máscaras brancas”, “outra solução é possível. Ela implica uma reestruturação do mundo” (p. 95). [36] Essa questão é sempre ressaltada por Moura (2019) em suas críticas a alguns grupos da classe média negra desvinculados da grande massa negra que “não lhe transmitem identidade e consciência étnicas, [...] com isso, reproduzem uma ideologia que justifica vê-la como periférica, como o negativo do próprio problema do negro” (p. 31). Florestan Fernandes (1976), debruçando-se sobre os desafios do povo negro no contexto da modernização conservadora/excludente da ditadura militar, afirma: “O próprio negro acaba rompendo os obstáculos identificando-se com os interesses e os valores dos estratos sociais dominantes e de suas elites [...]. Por conseguinte, o único inconformismo que quebra as barreiras históricas se transforma, no terrível processo de ascensão econômica, social e cultural do negro, em um elemento de manipulação do negro pelo branco e pelo sistema” (p. 81). Lélia Gonzáles também trouxe para o centro do debate antirracista a realidade, as demandas e os dilemas da grande massa negra proletária, sobretudo da mulher negra, quer em suas críticas ao preconceito racial e de classe no interior do movimento feminista branco, quer em suas análises dos movimentos negros no Brasil (Gonzáles, 1982, 2020; Gonzáles; Hasenbalg, 1982). [37] Por exemplo, a tendência de generalização da superexploração da força de trabalho por todo o sistema capitalista (Marini, 2000). [38] Durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), o capital criou vários instrumentos para quebrar a resistência da classe trabalhadora, além da repressão, a substituição da estabilidade no emprego pelo FGTS, a eliminação do direito de greve, entre outros, que tornaram mais efetiva a função do exército de reserva. Atualmente, o próprio crescimento vertiginoso do exército de desempregados e a imposição de regime de trabalho sem direitos, em escala planetária, quebram a resistência da classe trabalhadora. “A organização do processo capitalista de produção já desenvolvido quebra toda a resistência; a constante geração de uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e da demanda de trabalho, e, portanto, o salário nos trilhos convenientes às necessidades de valorização do capital; a coerção muda exercida pelas relações econômicas sela o domínio do capitalismo sobre o trabalhador” (Marx, 2017, p. 808). [39] Capital, como relação social, forma social que resulta da consumação da divisão do trabalho e da propriedade privada, da separação dos indivíduos de suas forças sociais (materiais e espirituais), pois assentada na divisão da sociedade em classes, na diferenciação, separação e oposição dos indivíduos. A sociabilidade do capital, como expressão da usurpação radical dos indivíduos autoprodutores de suas forças sociais, que foram objetivadas sob a forma do capital e da política, que determinam as contradições entre produção social e apropriação privada, entre vida pública e vida privada, entre vida individual e vida genérica, corresponde à pré-história da humanidade, à longa fase de sociabilidades incapazes de autocondução, isto é, de indivíduos que ainda estão impedidos de controlar a sua própria existência (Marx, 1977, 1989, 2010; Chasin, 2000b). [40] “Todos os trabalhadores possuem as mesmas exigências diante do capital. Todavia, há um acréscimo: existem trabalhadores que possuem exigências diferenciais, e é imperativo que encontrem espaço dentro das reivindicações de classe e das lutas de classes. [...] Por isso, existem duas polaridades, que não se contrapõem, mas se interpenetram como elementos explosivos – a classe e a raça” (Fernandes, 2017, p. 84-85). [41] Analisando o significado histórico do 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra (instituído, em 1978, em Salvador, pelo Movimento Negro Unificado), Fernandes (2017) afirma: “Os ativistas negros [...] precisam, acima de tudo, despertar a consciência do caráter suprarracial da solidariedade proletária, porque, no fundo, a superexploração do negro é a condição tanto da desvalorização do trabalho operário em geral quanto do fortalecimento do despotismo das classes burguesas” (p. 47). [42] A legislação brasileira avançou ao tipificar o racismo como crime hediondo, Lei 7716/1989 (disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm), assim como na tipificação da injúria racial como crime de racismo, Lei 14.532/2023 (disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14532.htm). [43] A esse respeito, ver: “Os efeitos psicossociais do racismo” (2008). Disponível em: http://www.ammapsique.org.br/baixe/Os-efeitos-psicossociais-do-racismo.pdf. [44] Recorde-se que a transição pelo alto da ditadura militar manteve os traços nevrálgicos do capitalismo brasileiro: a superexploração da força de trabalho e sua estrutura autocrática. A Lei de Anistia (1979) igualou os assassinos e torturadores aos assassinados e torturados. Não houve condenação dos responsáveis pelos crimes da ditadura. O aparato de repressão, muito mais sofisticado que o do Estado Novo, foi mantido e aperfeiçoado, a exemplo da prática de tortura, disseminada no sistema prisional, e da Lei de Terrorismo de 2016. “A Constituição de 1988, sob a égide da qual foram realizadas as eleições de 1989, embora tenha trazido avanços em alguns aspectos, seguiu a tradição brasileira de restringir na própria Carta os direitos nela garantidos, ou remeter para a legislação ordinária sua regulamentação, que tende a limitá-los ou simplesmente não é efetivada. Ademais, manteve disposições relativas à propriedade de terras e dos meios de comunicação presentes na Constituição anterior, elaborada pela ditadura, e revestiu o velho decreto-lei com o manto da medida-provisória; não eliminou ‘a componente militar nas equações do poder, a não ser nos limites consentidos pela auto-reforma da ditadura’ [...]. Muitas das cláusulas constitucionais relativas às forças armadas, às polícias militares, ao sistema judiciário militar e à segurança pública não sofreram alterações em relação à Constituição ditatorial de 1967 e à sua emenda de 1969 [...]. A militarização da polícia, herança da ditadura bonapartista, também não foi banida, e continuou em vigor a Lei de Segurança Nacional promulgada em 1983, às vésperas da data oficial de encerramento da ditadura” (Cotrim, 2019, p. 61). Sobre os limites da Constituição de 1988, ver Fernandes, 1989. [45] Lei n. 12.990/2014, que versa sobre a reserva de vagas para negros em concurso público e a Lei n. 12.711/2012, que contempla as reservas de vagas para alunos negros e indígenas nos institutos federais de educação. [46] Relatório: “Mapa da Riqueza no Brasil” (2023), FGV Social. Disponível em: https://cps.fgv.br/riqueza. [47] Os problemas estruturais (moradias insalubres, falta de moradia e de saneamento básico, insegurança alimentar, entre outros), enfrentados pelas populações mais vulneráveis do Brasil, já vinham se intensificando e foram explicitados e aprofundados durante a pandemia de covid-19. O recrudescimento das políticas neoliberais reduziu drasticamente os investimentos nas áreas da saúde e da educação, penalizando diretamente a classe trabalhadora, já assolada pelo desemprego e pela perda de direitos. “Pesquisa: desigualdades e vulnerabilidades na epidemia de COVID-19 (2021). Disponível em: https://repositorio.unifesp.br/handle/11600/61363. Acessado em: 5 abri. 2023. [48] “Em 2022, registramos 47 assassinatos em conflitos no campo, um crescimento de 30,56% na comparação com o ano de 2021, no qual 36 pessoas foram vítimas dessa violência extremada. No ano de 2022, pelos registros da CPT, houve ainda um aumento de 272,73% nos números de tentativas de assassinato – passando de 33 para 123 pessoas – e de 43,06% nos números de ameaças de morte – de 144, em 2021, para 206 pessoas ameaçadas em 2022. No caso das tentativas de assassinatos, é o maior número desse tipo de violência registrado em todo o século XXI”. In: Conflitos no campo Brasil 2022, Centro de documentação Dom Tomás Balduíno. Goiânia: CPT Nacional, 2023, p. 7. Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/downlods/summary/41-conflitos-no-campo-brasil-publicacao/14302-livro-2022-v21-web. Acessado em: 22 set. 2023. [49] Observatório Terras Quilombolas da Comissão Pró-Índio de São Paulo. Disponível em: https://cpisp.org.br/direitosquilombolas/observatorio-terras-quilombolas/. [50] Baseado nos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) do período de 1987 até 2022, o Relatório das Desigualdades Raciais (2022) conclui que houve “uma importante atenuação das desigualdades raciais presentes na educação formal”. Entretanto, observou-se “a manutenção de desigualdades duráveis que mantêm brancos e amarelos com melhores níveis de escolaridade, de trabalho e renda, se comparados ao grupo formado por pretos, pardos e indígenas. [...] apesar da melhoria no acesso à educação, pretos, pardos e indígenas ainda sofrem com altas taxas de desocupação. Quanto à renda, a desigualdade é ainda mais acentuada, novamente em favor de brancos e amarelos”. Disponível em: https://gemaa.iesp.uerj.br/relatorios/relatorio-das-desigualdades-raciais-2022/. Acessado em: 22 ago. 2023. A respeito, ver também Damasceno, 2022, p. 174-192. [51] Como mostra a pesquisa de Alves (2019), as milícias do Rio de Janeiro surgiram durante a ditadura militar, mas elas não são um poder paralelo, são o próprio Estado. [52] “'Quanto mais a ordem do capital se desenvolve e completa, tanto mais se autonomiza e independe da intervenção estatal para se estabelecer e dominar. O segredo do Estado é a sociedade civil’ [...]. O que não significa, evidentemente, que o capital possa descartar a política, mas sim que as tarefas para as quais continua precisando dela se reduzem cada vez mais à repressão e ao esmagamento da classe trabalhadora pelo exercício da violência, policial ou econômico-jurídica. Para isso, não se carecem de grandes qualidades humanas, ao contrário, quanto mais rebaixados forem seus agentes, tanto mais adequados serão para o cumprimento de tais tarefas. O esvaziamento da política se junta, pois, a acentuação de sua ‘insensibilidade congênita frente à dimensão humana, em confluência e de acordo com a lógica do capital’ [...], insensibilidade ainda mais aguda quando se trata da política de um capital atrófico” (Cotrim, 2019, p. 65). [53] Ver a análise de Liszt Vieira sobre a Cúpula da Amazônia (8 e 9 de agosto de 2023, Belém do Pará), que produziu apenas discursos, sem compromissos e planos concretos para salvar a floresta e seus povos, o que se alinha com a prática concreta do governo atual, que segue com a liberação indiscriminada de agrotóxicos, projetos de exploração de combustíveis fósseis e de construção de ferrovias, entre outros. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/cupula-da-amazonia/. [54] https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2023-06/entenda-o-que-esta-sendo-julgado-no-caso-do-marco-temporal. [55] O Estado repousa sobre debilidades sociais, resulta dos próprios limites e negatividades da sociedade civil, isto é, da escravidão. “Com efeito, esta dilaceração, esta infâmia, esta escravidão da sociedade civil é o fundamento natural em que se apoia o estado moderno, assim como a sociedade civil da escravidão era o fundamento no qual se apoiava o estado antigo. A existência do Estado e da escravidão são inseparáveis. O estado antigo e a escravidão antiga – fracas antíteses clássicas – não estavam fundidos entre si mais estreitamente do que o estado moderno e o mundo moderno de traficantes – hipócritas antíteses cristãs”. Se a impotência é um traço congênito do estado, determinado pela sociedade civil, se o estado quisesse superar sua impotência, ele teria, pois, que cometer o suicídio (Marx, 2010, p. 60-61). Referências ALMEIDA, Sílvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018. ALVES, Dina. 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- Sobre o conceito de exército industrial de reserva: aspectos históricos e atualidade.
de Ronaldo Vielmi Fortes Este texto foi publicado originalmente na Revista Temporalis v.18, n.36 no ano de 2019. Decerto não é fácil sustentar a validade da determinação marxiana de exército industrial de reserva nos dias atuais, dado a vasta literatura que, a partir principalmente da década de 60 do século passado, pôs em questão a figura do trabalho e do trabalhador como protagonistas da dinâmica social. Em suas variadas vertentes que vão desde a escola de Frankfurt (nas figuras prioritárias de Jurgen Habermas e Klauss Offe), passando por André Gorz, até a leva sociológica calcada na ideia vaga e difusa da sociedade pós-industrial, hoje se assiste o entoar quase uníssono da afirmação do fim do trabalho, assim como do papel exíguo da classe trabalhadora nas tendências políticas e econômicas do mundo da economia globalizada. O debate que se pretende fazer neste contexto, longe de pretender revolver o conjunto de questões complexas surgidas a partir do debate suscitado por tais ideias, pretende ao menos polemizar contra tais perspectivas, por vezes, tomadas como apodíticas. Esse artigo visa tentar demonstrar que assertivas dessa monta não são elementos passíveis de serem constatadas de maneira direta, como fatos incontestavelmente demonstrados e nem mesmo constituem afirmações evidentes por si mesmas, pois implicam a consideração de variáveis, de larga série de nuances, de mediações sociais importantes características das formações atuais, que põem em dúvida a certeza imediata de teses dessa natureza. A FORMAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA NO SÉCULO XIX: Para os objetivos aqui propostos se faz necessário retomar a definição marxiana e acompanhar, pelo menos em suas linhas mais gerais, os decursos históricos dos desdobramentos de tal categoria no âmbito da dinâmica processual da sociabilidade. A consideração histórica abre a possibilidade de acompanhar o movimento real das transformações na organização do trabalho e dos trabalhadores ao longo dos últimos dois séculos, propiciando elementos mais seguros para a compreensão e a crítica do suposto desfecho histórico do protagonismo da classe trabalhadora, que culmina com a configuração atual desse processo. Para nos limitarmos apenas às elaborações de Marx mais atinentes ao nosso tema, podemos remeter ao famoso capítulo 23 de sua obra maior, na qual o autor acolhe uma larga série de dados históricos no intuito de demonstrar as estratégias e mecanismos que vigoraram ao longo do século XIX no intuito de promover a criação da classe trabalhadora. Marx destaca em sua análise que a "[...] população trabalhadora excedente é um produto necessário da acumulação ou do desenvolvimento da riqueza com base capitalista, essa superpopulação se converte, em contrapartida, em alavanca da acumulação capitalista, e até mesmo numa condição de existência do modo de produção capitalista. Ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de maneira tão absoluta como se ele o tivesse criado por sua própria conta. Ela fornece a suas necessidades variáveis de valorização o material humano sempre pronto para ser explorado, independentemente dos limites do verdadeiro aumento populacional" (MARX, 2013, p. 707). Em linhas gerais, Marx aponta para o fato de o desemprego estrutural ser uma condição da sociedade capitalista. Essa superpopulação relativa é o elemento necessário capaz de fornecer aos processos de acumulação do capital não apenas a força de trabalho diretamente empregada na produção, mas igualmente uma reserva de mão-de-obra que possa vir a substituir a essa, em caso de necessidade. Trata-se da manutenção de uma superpopulação relativa apta a ser utilizada pelas indústrias tal logo seja necessário. É a garantia do próprio sistema em manter disponível esse fator imprescindível –a força de trabalho –a seu processo de reprodução, além de servir como instrumento de controle sobre os preços dos salários, pelo mecanismo da oferta e demanda do mercado de trabalho. Merece destaque também, tal como analisa Marx no mesmo livro, a necessidade de habituar os trabalhadores às novas condições necessárias à produção capitalista. No século XIX ela implicava em seus primeiros momentos, como pressuposto para ampliação e incremento da produção, a disponibilidade de força de trabalho suficiente para ser aplicada na indústria, consentâneo à necessidade de engendrar uma nova tradição laborativa junto à classe trabalhadora. Marx refere esse processo como a criação pelo hábito e pela educação das condições sociais tidas como normais pela própria classe trabalhadora: “Não basta que as condições de trabalho apareçam num pólo como capital e no outro como pessoas que não têm nada para vender, a não ser sua força de trabalho. Tampouco basta obrigá-las a se venderem voluntariamente. No evolver da produção capitalista desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição e hábito, reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais e evidentes por si mesmas. A organização do processo capitalista de produção desenvolvido quebra toda a resistência; a constante geração de uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e da demanda de trabalho, e, portanto, o salário, nos trilhos convenientes às necessidades de valorização do capital; a coerção muda exercida pelas relações econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador. A violência extraeconômica, direta, continua, é claro, a ser empregada, mas apenas excepcionalmente” (MARX, 2013, p. 808). É significativo o fato de Marx destacar como elemento decisivo para o processo de acumulação capitalista a exigência de o modo de produção passar a ser assumido pelas massas, pela classe trabalhadora, como elemento naturalmente posto, algo evidente por si, na medida em que se põe como intrínseco à própria natureza da sociabilidade humana, como condição social efetiva. A habituação do trabalhador, para usar um termo posteriormente consagrado por Harry Bravermann, constitui elemento imprescindível para o estabelecimento do processo. A coerção social, por vezes desempenhada pelo Estado, não pode ser o único critério de estabilidade da forma social historicamente posta, o convencimento e a formação do próprio perfil das individualidades e, mais importante ainda, da própria classe trabalhadora como forma de aceitação das regras do jogo são elementos essenciais para a criação e a manutenção do status quo. Esse aspecto pode ser observado nos primórdios da criação da grande indústria, momento em que se colocou a necessidade de reunir trabalhadores sob um mesmo teto e retirar-lhes o planejamento e administração do próprio trabalho como forma de incrementar a produtividade. Alocar a todos debaixo do mesmo teto significava o controle sobre a atividade produtiva, além do controle do tempo trabalhado. Enquanto artesãos, os trabalhadores gestavam sua própria atividade e administravam o tempo conforme suas próprias decisões e necessidades. A esse propósito vale reproduzir as elucidativas palavras de Harry Bravermann: “O controle sem centralização do emprego era, senão impossível, certamente muito difícil, e assim o requisito para a gerência era a reunião de trabalhadores sob um único teto. O primeiro efeito de tal mudança era impor aos trabalhadores horas regulares de trabalho, em contraste com o ritmo auto-imposto que incluía muitas interrupções, meio-expedientes e feriados, e em geral impedia a extensão da jornada de trabalho para fins de produzir um excedente nas condições técnicas então existentes” (BRAVERMANN, 1974, p. 66). Acerca da mesma factualidade histórica, Norman Scott Brien Gras, em obra escrita em 1934, descreve por meio de um detalhamento minucioso as condições e situações presentes nos primórdios da instauração da indústria, momento em que ele localiza o nascimento do gerenciamento da produção: “Era simplesmente para fins de disciplina, de modo que os trabalhadores pudessem ser eficazmente controlados sob a supervisão de um capataz. Sob um teto, ou ambiente pequeno, eles podiam começar o trabalho de madrugada e continuar até o pôr do sol, fixando-se períodos para repouso e alimentação. E sob pena de perda de todo o emprego eles podiam ser mantidos por todo o ano” (GRAS, 1930, p.77). Anteriormente às alocações do trabalho nas fábricas, o comum era a produção em pequenos locais de trabalho, ou até mesmo nas próprias residências dos artesãos. Tal forma de organização do trabalho deixava praticamente todo o planejamento da atividade nas mãos dos próprios artesãos, que organizavam seu tempo em conformidade ao conjunto de outras atividades desempenhadas em seu cotidiano. Todo processo produtivo ficava, na visão do capitalista, sujeito a uma larga série de contratempos, tais como feriados, dias religiosos, atividades afins desempenhadas por esses trabalhadores artesãos, além de impedir um controle preciso do tempo gasto para a produção dos produtos encomendados. Retirar dos trabalhadores o planejamento da atividade tornou-se então imprescindível para o processo de acumulação em curso naquele momento. Para tanto tornara-se necessário o controle do tempo de trabalho. A primeira providência a causar forte impacto na transformação do trabalho desses artesãos consistiu na mudança da localização do local onde tal atividade viria a ser empreendida. Deslocar o processo produtivo das casas desses artesãos para grandes galpões, onde passou a se concentrar toda a atividade, marcou e afetou sobremaneira a vida e a prática desses trabalhadores. Sidney Pollard em seu livro The Genesis of Modern Management, explicitou tais processos de modo ainda mais elucidativo, já que não se restringiu à simples descrição de fatos, mas preocupou-se em destacar os aspectos mais negativos de tais decorrências históricas: “Os trabalhadores que deixaram o ambiente de sua oficina doméstica ou sua propriedade no campo pela fábrica entraram em uma nova cultura com um novo senso de direção. Isso não foi mais do que ‘a nova ordem econômica necessitava... A parte humana: sem alma, despersonalizada, desencarnada, que pôde se tornar membra, particularmente como pequenas engrenagens, de um complexo mecanismo” (POLLARD, 1968, p.190). E mais a frente o autor acrescenta: “Junto com a ligação tenaz da cultura existente e o medo do desconhecido, estava o medo do conhecido, pois foram poucas as áreas do país na qual a moderna indústria, particularmente de tecidos, se incumbiu de largos edifícios, que não estavam associados a prisões, workhouses e orfanatos. Esta conexão é usualmente negligenciada, particularmente por aqueles historiadores que assumem que os novos trabalhos recrutaram apenas trabalho livre” (POLLARD, 1968, p.192). As observações de Pollard –que, diga-se de passagem, não é de modo algum um pilar do anticapitalismo, muito pelo contrário –são importantes de serem desdobradas. Em primeiro lugar as condições impostas eram inaceitáveis para os trabalhadores habituados à condição de planejamento de suas próprias atividades, aqueles ainda vinculados à forma artesanal da organização do trabalho. Encerrar-se em galpões fechados, sob a constante vigilância e orientação de seu trabalho por parte do supervisor, implicava não apenas o cerceamento do trabalhador, mas a perda do controle de suas atividades. Não por acaso os primeiros a se submeterem a tais condições não eram propriamente os trabalhadores livres, mas presidiários, membros das workhouses e crianças oriundas de orfanatos, cuja proveniência não lhes concedia grandes opções ou direito de escolha frente suas condições de trabalho. O trabalho em fábricas ou ateliês era compreendido como encarceramento, cerceamento, controle e desgaste evidente dos indivíduos. Paulatinamente a nova forma da organização produtiva se impôs, em grande parte dada a sua eficácia em responder às exigências do ciclo de acumulação capitalista, tornando prática comum aos principais ramos da atividade produtiva. As gerações posteriores, vergados pela eficiência na nova forma da gestão da produção, com o tempo terminaram por tomar a nova forma da atividade laborativa como natural, algo compreendido como forma espontânea-natural da reprodução da vida. Se retomarmos os escritos de Marx, os diversos exemplos históricos recolhidos acerca das condições do trabalho nesse período são bastantes ilustrativos desse duplo âmbito da dinâmica da acumulação capitalista do séc. XIX. O uso da maquinaria como substituição do trabalho artesanal, manufatureiro, implica tanto o aumento do numerário de trabalhadores disponíveis para o funcionamento da indústria, como aquelas atividades periféricas do próprio processo de acumulação, que sem valer-se do incremento tecnológico, aproveitou a disponibilidade crescente de mãos de obra provocada pela maquinaria nas grandes fábricas do período. O uso das forças subsidiárias –mulheres e crianças –proporcionado pelas máquinas a vapor aumenta a produtividade e, precisamente em função deste aumento, promove o incremento da disponibilidade de mão-de-obra. O excesso populacional, o crescente número de trabalhadores na condição de disponibilidade, permite o empreendimento de formas ainda manufatureiras funcionando de maneira consentânea à grande indústria. O rebaixamento acintoso dos salários compensava a baixa produtividade desses empreendimentos periféricos, com os gastos irrisórios com trabalhadores. Na revolução industrial, portanto, tem lugar a dinâmica oscilante entre o desenvolvimento da grande maquinaria na indústria, mas igualmente a exacerbação das formas mais rudimentares da produção, características da manufatura. A competitividade levada a cabo pelos ramos mais tecnologicamente avançados, claramente acompanhada pelo aumento da produtividade e a queda dos custos de produção, é compensada pelos ramos menos desenvolvidos, pelo uso da mão-de-obra extremamente barata disponível no período em questão. Tal oferta desequilibrada de trabalhadores permite a coexistência, durante certo lapso de tempo, da produção calcada na maquinaria com as formas ainda anteriores da manufatura. Decerto, tal convívio não é algo pacífico, nem mesmo duradouro, uma vez que o curso do processo produtivo em última instância termina por se render às formas mais avançadas da produção, ou seja, à grande indústria com base na maquinofatura. Em relação à classe trabalhadora há, portanto, dois aspectos imprescindíveis para o ciclo da acumulação capitalista: um contingente suficiente de trabalhadores empregados na atividade produtiva e outro na condição de desempregados com vista na possibilidade de substituí-los e, como segundo aspecto, com constata-se a necessidade de habituar os trabalhadores às exigências da produção, adequando-os às formas organizativas de maneira que eles passem a considerá-las como naturais, modos tradicionais e amplamente aceitos da consecução do trabalho 2. A TRANSIÇÃO PARA O SÉCULO XX: NOVO CICLO AMERICANO DE ACUMULAÇÃO A criação do exército industrial de reserva, assim como a formação da própria classe trabalhadora apareceram como elementos chaves do processo de acumulação capitalista. Tal processo não pôde, no entanto, deixar de apresentar desequilíbrios, de criar situações que implicaram de modo direto conflitos sociais agudos. Ao mesmo tempo em que criou as condições para a existência de farta mão-de-obra, as tendências postas em movimento em meio a esses processos econômicos levaram a criação de um excedente populacional, incapaz de ser absorvido pelos diversos ramos da atividade produtiva. Tal fenômeno social gerou conflitos óbvios no seio da sociedade, na medida em que uma grande massa de indivíduos não se viu inserida no mercado de trabalho, levando à formação de um contingente significativo de excluídos. Cabe advertir, no entanto, que não se trata apenas de um crescimento populacional naturalmente determinado. Outros aspectos sociais cumpriram papel de maior relevância para a formação dessa superpopulação relativa. O uso da maquinaria que propicia a absorção de forças de trabalho subsidiárias, trabalho da mulher e infantil, compõem elementos importantes da criação da disponibilidade de mão-de-obra. Mais dramático, no entanto, são acontecimentos históricos como é o caso da grande fome na Irlanda ou da expulsão dos camponeses de suas terras ocorridas nos estados alemães autônomos, ambos frutos das próprias tendências inerentes ao capitalismo. No primeiro caso, a grande fome irlandesa foi o resultado da divisão de terras favoráveis aos grandes latifundiários ingleses, que de uma maneira incessante e intermitente expulsavam de suas terras os camponeses. Esses tiveram que dar lugar às vastas pastagens de gado e ovelhas, à produção de cereais, cuja produção era toda ela direcionada às necessidades do mercado inglês. Ao povo irlandês restavam apenas as batatas. Com a praga provocada por um fungo que se acometeu sobre o tubérculo, milhões se viram na condição de famigerados, levando à morte certa de um milhão de pessoas. No caso alemão, parte significativa dessa mão de obra excedente era constituída por camponeses espoliados de suas terras, artesãos desalojados do processo produtivo, expropriados dos seus meios de subsistência, em função do desenvolvimento da grande indústria. Enquanto na Europa alguns países incentivaram a emigração, no outro lado do Atlântico, a escassez do contingente populacional de trabalhadores constituía um problema sério para os EUA do século XIX. Ao longo de todo esse século, os EUA receberam ondas sucessivas de imigração, grande parte delas incentivadas pelo próprio governo americano. A dimensão que tal mobilidade populacional tomou ao longo do século XIX nos permite designar todo esse processo como o maior movimento de imigração da história moderna. Tal fenômeno migratório forneceu aos EUA a força de trabalho necessária para o incremento do processo de sua economia. O processo pode ser caracterizado por duas longas ondas de migração ocorridas ao longo do século XIX, e destacam em linhas bem demarcadas a transferência daquela mão-de-obra excedente europeia para as terras norte-americanas. Entre as duas ondas migratórias, encontra-se a linha demarcatória decisiva identificada pela Guerra Civil dos anos 1861-5. Trata-se de acontecimento histórico de grande relevância, pois é em virtude da guerra civil que os EUA definem o perfil de seu capitalismo. Entre o sul de economia fundamentalmente agrária –calcada na exportação de commodities para a Inglaterra (fundamentalmente o algodão) –e o norte com uma base industrial já parcialmente desenvolvida, o processo histórico americano abriu as portas para a realização de sua própria revolução industrial, favorecendo um expressivo e rápido desenvolvimento de sua economia (cf. TEIXEIRA,1999). Para efeitos de nossa discussão não nos cabe discorrer para além dessas linhas sobre esse processo. Importa-nos destacar que em seu primeiro momento a imigração ocorrida de 1815 até a guerra civil, alimenta a economia americana fundamentalmente de mão-de-obra alocada na agricultura –plantations–além de favorecer o processo de colonização, rumo ao oeste distante –faroeste. A segunda onda de imigração permite a criação do exército industrial de reserva necessário ao processo de transformação do ciclo de acumulação americana ocorrido nos últimos anos do séc. XIX e início do séc. XX (cf. CORIAT, 1982). Após o conturbado período da guerra civil americana, as condições para conseguir terras se mostraram praticamente impossíveis. Por diversos fatores, tais como a especulação sobre os valores da terra, assim como a colonização levada a cabo nos anos anteriores, impediram a alocação desses novos imigrantes nas atividades do campo, levando a maior parte a buscarem nas cidades meios para sustentar a vida. A concentração nos grandes centros criou os elementos viabilizadores para o uso desta mão-de-obra nas grandes indústrias cujo nascedouro data dos anos intermediários desses séculos. Contudo, um problema se colocava quanto ao uso da mão-de-obra abundante. Os imigrantes que chegaram aos EUA se caracterizavam por uma total desqualificação técnica, eram trabalhadores sem preparo para a indústria. Em sua maioria, camponeses empobrecidos que nunca haviam tipo qualquer experiência nas formas da produção moderna em voga no século XIX. Nesse sentido, vale lembrar que o trabalho nessa época se dava sob o domínio preponderante dos trabalhadores de ofício, isto é, uma forma de trabalho qualificada, que pressupunha anos de aprendizagem para a sua formação. Essa mesma qualificação é responsável por outro aspecto importante: a criação dos sindicatos dos trabalhadores de ofício como elemento de resistência e obstáculo aos interesses dos capitalistas. Há dois problemas a serem resolvidos: por um lado a forte pressão e resistência da classe trabalhadora (trabalhadores de ofício) que limitava a livre ação dos capitalistas no âmbito da organização e uso da mão-de-obra, por outro, era necessário o incremento quantitativo de trabalhadores a serem usados na atividade produtiva. A equação a ser resolvida invocava a necessidade de utilizar a grande disponibilidade de trabalhadores sem nenhuma qualificação técnica nos processos produtivos. A organização científica do trabalho cunhada por Taylor é a possibilidade de transformar uma mão de obra ociosa e sem aplicabilidade produtiva até o momento, em elemento chave para o processo de industrialização americana em curso. Em outras palavras, sua resposta é a alternativa real para as necessidades postas pelo conjunto das condições econômicas e sociais de seu tempo. Ao delegar à uma pequena elite de gerentes e engenheiros a elaboração minuciosa de toda a atividade produtiva, implicando uma gestão hiper-racionalizada do trabalho, Taylor pôs à disposição das indústrias a mão de obra não qualificada disponível, uma vez que prescinde da qualificação técnica e da capacidade de planejamento do trabalhador. O perfil do trabalhador é o daquele que no processo produtivo equivale ao simples dispêndio de força física, uma vez que toda sua atividade é previamente pensada e organizada por um grupo seleto de engenheiros. Não fica de fora também desse contexto a necessidade de habituar o trabalho às novas exigências dos processos industriais. A linha de montagem proposta por Ford recebe em seus inícios uma ampla resistência por parte dos operários, que se recusam a trabalhar na nova forma de organização proposta. Essa situação de resistência fica clara já nos primórdios da implementação da nova gestão do processo produtivo: “Com máquinas e chefes onipresentes supervisionando cada tarefa, pareceu não ser necessário pagamento de incentivo. Ford rapidamente descobre, entretanto, que essas condições produzem uma incrível taxa de rotatividade de trabalho. Para manter uma força média de 13 mil trabalhadores durante o tempo de prosperidade entre outubro de 1912 e outubro de 1913, Ford teve de empregar 54 mil pessoas, uma taxa de rotatividade anual de 416%” (MONTEGOMERY, 1977, p.234) Não será nesse caso o uso direto da violência extra econômica o elemento a ser utilizado, pelo contrário, o incentivo econômico, mais particularmente salarial, será o responsável por vergar a classe trabalhadora às novas exigências. O famoso caso da oferta salarial de D$ 5,00 por dia oferecidos por Henri Ford para um conjunto bem seleto de trabalhadores que cumpriam as exigências de seus gerentes, a redução da jornada de trabalho de 9 para 8 horas, trouxe às dependências de sua indústria a força de trabalho necessária a seus empreendimentos e fez com que, apesar de desgastantes e inóspitas, as novas condições de trabalho fossem aceitas por todos. Vale lembrar que esses elementos motivadores não eram aplicados de maneira indiscriminada a todo trabalhador. As condições exigidas dirigiam-se aos trabalhadores que demonstravam clara adesão às novas prerrogativas da empresa e visavam diretamente a formação do perfil necessário dos trabalhadores aptos a aceitar e desempenhar as novas funções projetadas: “[...] em janeiro de 1914, Ford proclama as 8 horas diárias e o novo plano ‘de participação nos lucros’ para todos os empregados. Qualquer homem ou mulher acima de vinte e dois anos que contribuísse apoiando aos outros, trabalhasse na companhia seis meses ou mais, e fosse considerado como ‘aceitável’ pelo Departamento Sociológico da companhia era elegível para o ‘share profit’, recebendo o salário de cinco dólares por dia. O staff de mil ‘sociólogos’ investigava os hábitos, a vida no lar e as atitudes dos trabalhadores para descobrir quem era aceitável e no final de março de 1914 foram aprovados 57% desses para receber os mágicos cinco dólares." (MONTEGOMERY, 1977, p.235). Nesse caso também há a necessidade da formação do exército industrial de reserva e da habituação do trabalhador como critérios imprescindíveis do ciclo de acumulação capitalista. A resistência das primeiras gerações é quebrada, para na sequência se tomar como normal o modus operandi das novas relações e organização do trabalho. Quer pela coerção, pela motivação ou pela cooptação, os mecanismos da habituação do trabalhador dão provas históricas de sua eficácia. Outro caso clássico da ofensiva e a adestração promovida contra a classe trabalhadora teve curso duas décadas antes no Japão. Trata-se do nascimento do toyotismo que implicou não apenas mudanças expressivas na gestão do trabalho, na organização das empresas, mas igualmente o ataque frontal às formas da organização sindical dos trabalhadores, como pressuposto viabilizador das mudanças necessárias de serem perpetradas. Pouco se comenta sobre o desmantelamento dos sindicatos de trabalhadores ocorrida nos idos de 1950 e 1953. Por meio de uma clara aliança entre o setor industrial e o setor financeiro japonês foi possível, por exemplo, à empresa Nissan –apoiada em suas estratégias pelo banco Fuji Bank, pertencente à mesma companhia –sustentar-se por quase um ano de greve, quebrando de maneira definitiva toda a resistência da classe trabalhadora no período. Com prisões das lideranças e o desmantelado consumado dos sindicatos se tornou possível o implemento das novas condições de trabalho, forçando deliberadamente os trabalhadores a adesão incondicional aos interesses das empresas (cf. GOUNET, 2002, p.30-31). Após as medidas coercitivas, incentivos são aplicados para forjar o novo modelo de trabalhador adequado às novas exigências gerenciais. O mais famoso deles é o emprego vitalício para os trabalhadores permanentes das grandes companhias. No entanto, é preciso advertir os limites e as verdadeiras intenções por trás de tais benefícios concedidos: “[...] o emprego vitalício é apanágio dos trabalhadores fixos da empresa-mãe. Só podem contar com ele os empregados com contrato por tempo indeterminado e que trabalham nas montadoras automobilísticas. Os que se encontram em regime de subcontratação, particularmente os das pequenas e médias empresas, não possuem o mesmo direito. Ora os operários das grandes empresas não representam mais que um terço da mão-de-obra assalariada. Isso significa que dois trabalhadores em cada três não tem estabilidade no emprego. Além disso, a própria Toyota a partir de 1956 começou a contratar temporários. Em 1961, menos da metade dos operários que trabalhavam nas fábricas da empresa eram estáveis.” (GOUNET, 2002, p.100-101). O toyotismo não significa apenas a gestão da força produtiva, mas de maneira consentânea mudanças decisivas na organização da empresa. O modelo das terceirizações, as subcontrações, é elemento decisivo da nova forma da gestão empresarial. Claramente a terceirização fragiliza a organização da classe trabalhadora na medida em que a fragmenta em uma diversidade de empresas o próprio processo produtivo. Tal fragilização e controle da mão-de-obra fomenta a produtividade e ao mesmo tempo reduz custos relativos ao pagamento de salários. Esses são elementos chaves no recrudescimento da competitividade japonesa no comércio internacional, particularmente a partir da década de 1960. 3. A CRISE MUNDIAL E AS MUDANÇAS NA GESTÃO DO TRABALHO A vigência atual e o sucesso do toyotismo não devem ser vistos como simples elementos oriundos da eficiência técnica dessa forma de gestão. Vale lembrar que seus primórdios estão postos na década de 1950, mas sua eficácia e projeção internacional inicia-se de maneira mais precisa na década de 1970. O que explica sua projeção hegemônica, principalmente na indústria automotiva, são os novos componentes históricos do ciclo de acumulação capitalista do período. Em termos gerais podemos dizer que as transformações no mundo do trabalho são consequências do movimento próprio aos ciclos de acumulação capitalista. A esse propósito são necessárias algumas ponderações, ainda que rápidas e circunscritas ao nosso tema, no intuito de entender a correlação entre as metamorfoses do trabalho e as determinantes econômicas próprias do período. Quem nos ajuda a compreender essa dinâmica é o historiador marxista Robert Brenner. Para o autor: “A partir de meados da década de 1960, os fabricantes localizados nos blocos econômicos de desenvolvimento mais tardio –mais notadamente no Japão, mas também na Alemanha e em outras partes da Europa ocidental –foram, portanto, capazes de combinar técnicas relativamente avançadas com salários relativamente baixos para reduzir de forma drásticas os custos relativos de suas produções em comparação àqueles necessários para produzir os mesmos bens na economia americana, de desenvolvimento anterior. Desse modo, eles não só conseguiram impor seus preços relativamente baixos no mercado mundial e inchar de modo dramático as suas cotas desse mercado, como foram também capazes, precisamente em virtude de seus custos relativamente reduzidos, de ao mesmo tempo manter suas antigas taxas de lucro. Os produtores americanos, portanto, se viram confrontados com preços para os seus produtos que apresentavam um crescimento mais lento, mas se encontravam amarrados a custos inflexíveis por se acharam atravancados por instalações e equipamentos (capital fixo) que incorporavam métodos de produção que se tornaram subitamente muito caros, bem como por níveis salariais relativamente altos, que não podiam ser empurrados para baixo de forma rápida.” (BRENNER, 2001, p. 56) Em termos sintéticos, para o autor, esse período é caracterizado pela crise de superprodução, ou em outros termos, a crise provocada pelo excesso de capacidade instalada. O agravamento da situação incidiu não muito tempo depois sobre as próprias economias do Japão e da Alemanha, generalizando-se para todos as economias do mundo. Brenner, insiste em demonstrar que os elementos mais decisivos dessa crise não foi sequer superado nos dias atuais, caracterizando aquilo que ele designa como estagnação persistente. Não é o lugar, aqui, para desenvolver de maneira minuciosas tais questões, para nós importa as consequências diretas que toda esta situação acarreta na dinâmica capitalista de acumulação, e minimamente relacioná-la com o problema da necessidade da reorganização do fator econômico força de trabalho, como mote para minimamente equacionar aspectos da crise de fim de ciclo de acumulação capitalista. Que nos seja permitido retornar mais uma vez a Marx, já que é em tal pensador que a categoria em tela nesse artigo tem sua origem. Marx, no livro III, capítulo 14, de O capital apresenta seis contratendências que atuam como forças contrárias à queda tendência da taxa de lucro, são elas: I- aumento do grau de exploração do trabalho; II- compressão do salário abaixo de seu valor; III- barateamento dos elementos do capital constante; IV- superpopulação relativa; V- comércio exterior e VI- aumento do capital acionário (Marx, 2017). Dentre os seis relevantes pontos das tendências contra arrestantes, ao menos três se relacionam de maneira mais direta com os propósitos de nossa discussão. Em relação ao primeiro ponto, cabe destacar o papel do desenvolvimento científico e tecnológico no aumento da produtividade da força de trabalho. Esse sem dúvida, ao lado da ofensiva contra o trabalho, é um dos fatores decisivos do processo de acumulação hoje em curso. Aqui cabe apenas mencioná-lo, pois a complexidade da questão impõe o tratamento em separado de tal temática. O segundo ponto, é evidente por si mesmo, a compressão dos salários implica menores gastos e o aumento da taxa de retorno ao capitalista. O terceiro ponto, quarta tendência relacionada por Marx e que está diretamente relacionado com a nossa questão, permite minorar os efeitos da queda tendencial por meio da utilização da mão de obra excedente. Essa pode tanto contribuir criando um excesso de competitividade entre os trabalhadores, como pode também permitir o uso da mão-de-obra disponível na criação de novos ramos de produção, onde a composição orgânica de capital pode vir a se caracterizar pelo grau mais elevado de uso de trabalho vivo. Nesses ramos, a vantagem consistiria na presença massiva do capital variável associado aos baixos rendimentos dos trabalhadores provocados particularmente pela concorrência entre eles. Retomaremos esse ponto logo à frente. Ao voltarmos nossa atenção aos acontecimentos nos EUA, podemos vislumbrar a presença histórica de algumas dessas tendências. A crise da economia mundial gerou o aumento do desemprego, que conjuntamente a outros fatores favoreceram a forte ofensiva contra a organização da classe trabalhadora. Dados estatísticos demonstram que entre o período de 1973 e 1979, os fabricantes americanos conseguiram “[...] reduzir a média anual de crescimento dos salários reais por hora de trabalho para 1% comparada aos 2% entre 1970 e 1973. De 1979 a 1995, essa média anual despencou para 0,65%” (BRENNER, 2003, p.99). As perdas dos trabalhadores do setor automotivo americano ilustram bem essa tendência do período. Mecanismos conquistados ao longo de anos que permitiam aos trabalhadores americanos ganhos reais em seus salários, como por exemplo o AIF e o COLA¹, a partir de 1979, declinam frente às condições catastróficas impostas pelas indústrias automotivas americanas. Do mesmo modo, a flexibilidade permitida pelo modelo toyotista na exploração dos trabalhadores, leva a termo acordos como o Job Control System², impondo às empresas americanas o novo modelo produtivo advindo do Japão. Thomas Gounet demarca as vantagens que o toyotismo obtinha sobre a velha forma da gestão fordista da produção: “A flexibilidade do aparato produtivo e sua adaptação às flutuações da produção acarretam a flexibilização da organização do trabalho. O parcelamento das tarefas do fordismo já não é suficiente. As operações essenciais do operário passam a ser, por um lado, deixar as máquinas funcionarem e, por outro, preparar os elementos necessários a esse funcionamento de maneira a reduzir o máximo o tempo de não-produção. Assim, rompe-se a relação um homem/uma máquina. Na Toyota, desde 1955 um trabalhador opera em média cinco máquinas.” (GOUNET, 2002, p.27) Foi necessário quebrar toda a resistência proveniente da classe trabalhadora para modificar a organização produtiva americana e para isso várias estratégias foram utilizadas, porém a de maior efeito foi sem dúvida a ameaça da possibilidade de, na crise, as empresas optarem pela demissão de trabalhadores. É ilustrativo dessas ofensivas contra a classe trabalhadora um dos primeiros atos da presidência de Ronald Reagan. Conforme lembra o economista americano Robert Brenner: “[...] a administração Reagan desferiu o coup de grâce no movimento trabalhista americano ao demitir os membros em greve do sindicato dos profissionais controladores de tráfego aéreo (o PACTO). Desde então as campanhas sindicais definham ao ponto da insignificância, popularam práticas trabalhistas injustas cometidas pelas gerências durante campanhas de organização sindical e a densidade sindical desmoronou.” (BRENNER, 2003, p.98-99) Além desse confronto direto dirigido aos direitos trabalhistas, na mesma administração de Reagan tem início a redução dos investimentos do Estado nos benefícios e políticas sociais. Associada ao discurso liberal, a redução dos gastos públicos –que incidiu prioritariamente sobre os chamados custos sociais, com medidas que afetaram diretamente a saúde, a cobrança de mensalidades nas universidades, etc. –permitiu a redução dos impostos, beneficiando as empresas americanas e conferindo a elas novo fôlego na medida que tais medidas favoreciam o aumento –ainda que provisório –de sua taxa de lucro. Em suma, o entoar neoliberal adverte para a necessidade da redução dos gastos públicos no intuito de reduzir impostos como forma de aliviar também a pressão da carga tributária sobre os lucros. As medidas adotadas por Reagan durante seu governo, promoveram uma série de reduções na arrecadação, associada ao crescente déficit público do governo americano, o que viabilizou a redução dos impostos no setor manufatureiro da taxa média de 46%, no período de 1965 a 1981, para 28% entre 1981 e 1990 (Cf. BRENNER: 2003, p. 99). Devemos, entretanto, retornar ao problema central de nossa discussão, qual seja, o papel do exército industrial de reserva no ciclo de acumulação capitalista de nossos dias. 4. DESLOCALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO E OFERTA INTERNACIONAL DE TRABALHO Passados quase cinquenta anos, em meio a crescimento e abalos econômicos a situação muda em suas linhas de adoção de medidas mais gerais, porém mantém, guardadas as devidas diferenças e especificidades, os fundamentos anteriormente postos em destaque. Ainda é necessária a articulação entre a disponibilidade de mão-de-obra e a formação dessa em conformidade às novas condições de trabalho. A esse propósito vale acrescentar que com o esquema geral da organização produtiva advinda de maneira mais contundente com o toyotismo foram lançadas as bases da forte onda de terceirização das empresas e da tendência cada vez mais forte ao uso da deslocalização do processo produtivo, elementos que se tornaram preponderantes como alternativas diante da crise da década de 70. Não queremos com isso afirmar, como vemos de costume, o toyotismo como a forma hegemônica do novo ciclo de acumulação, porém merece destaque o fato de elementos específicos provenientes dessa forma de organização do trabalho responderem de maneira adequada às novas exigências postas pela dinâmica da economia próprias dos novos tempos. Em particular os elementos da terceirização e da deslocalização da produção têm constituído uma das mais fortes tendências dos últimos tempos. A deslocalização, talvez o aspecto mais relevante para a discussão aqui em curso, consiste na tendência de conduzir o processo produtivo para fora do próprio país de origem, de forma que a busca pela disponibilidade de mão-de-obra e pelas vantagens oferecidas pela precária regulamentação das leis trabalhistas em certas regiões do mundo, passa a não mais se limitar às fronteiras do próprio país, estendendo-se para outras regiões do globo que oferecem condições mais favoráveis às empresas. Países como México, Indonésia, China, Taiwan, dentre outros, aparecem como alternativas viáveis para o uso de um exército industrial de reserva posto agora em um plano internacional. Nos dias atuais, há de se destacar o papel da China na divisão internacional do trabalho, como componente que ilustra de maneira evidente as novas tendências implementadas. Esse aspecto não pode ser negligenciado uma vez que a partir da década de 1990 torna-se expressivo o número de corporações internacionais a produzir nesse país, chegando por vezes, a abandonar definitivamente o próprio território de origem. Do ponto de vista da formação do exército industrial de reserva alguns dados sobre a China, quando comparados a outras regiões do mundo, demarcam ainda a validade desse fator enquanto elemento decisivo dos processos de acumulação do capital. “A população ativa empregada na indústria e na construção contava com mais de 160 milhões em 2001, dentre os quais 65-70 milhões nas cidades (compreendido aí os desempregados) e 90 milhões nas zonas rurais (compreendido aqueles que tem um emprego temporário nas vilas). O número de trabalhadores na indústria na China ultrapassa a soma de todos os países da OCDE (131 milhões). No setor industrial urbano, ele ultrapassa o da União Europeia e dos EUA tomados conjuntamente (64 milhões). Ele eclipsa também os recursos de mão-de-obra mobilizados na indústria de outros grandes países em desenvolvimento: 9 milhões no Brasil, 13 milhões na Indonésia, 25 milhões na Índia.” (LEMOINE, 2013, p. 50). Que se ressalte aqui novamente, esses números se reportam tão somente à alocação de mão-de-obra no setor industrial, no caso chinês em outros ramos da economia esse quantitativo cresce a patamares exorbitantes. Não por acaso, no decorrer de todo esse período a China assumiu os ares de uma nação que estava por se constituir como a fábrica do mundo. No entanto, as vantagens da situação do trabalho chinês para os empreendimentos das grandes corporações não consistem apenas no enorme contingente de mão de obra disponível cuja jornada de trabalho é de 12 horas diárias, nem com a reduzida condição regulatória própria do início do século, e nem ainda, com o baixo preço da força de trabalho. Outro fator aparece igualmente como decisivo: a flexibilidade do trabalho. Quem nos mostra outro aspecto são os dirigentes da gigante Apple, ao descrever de maneira aberta e franca o critério decisivo que os levaram a adotar a deslocalização da produção. Eles lembram que não foi difícil para Apple organizar sua produção na China, haja vista que na montagem e preparação para a produção do iPhone a empresa, por meio da Foxconn (corporação de Taiwan), foi capaz de recrutar cerca de 8.700 engenheiros industriais e mais de 200 mil trabalhadores em apenas 15 dias; enquanto, por estimativa, essa mesma proporção de mobilização de mão-de-obra em um país como os EUA levaria pelo menos 9 meses para se efetivar. Outra vantagem, segundo um ex-executivo da firma de Cupertino, consiste no fato de toda a cadeia de suprimentos necessários se localizar no interior da própria China: “Você precisa de mil juntas de borracha? Basta bater na fábrica ao lado. Precisa de um milhão de parafusos? A fábrica para isso está a um quarteirão de distância. Quer que o parafuso seja um pouco diferente? Isso leva apenas três horas para ser feito.” Caso exemplar, bastante ilustrativo dessas vantagens, ocorreu nos idos de 2007 por ocasião do lançamento do iPhone. Há um mês do lançamento do iPhone, Steve Jobs chamou uma reunião com seus principais diretores e mostrou a tela de seu aparelho arranhada para os presentes. Conta-se que ele dirigiu a todos com as seguintes palavras: “As pessoas vão carregar esse telefone em seus bolsos. Elas também carregam suas chaves no bolso. Eu não vou vender um produto que fica arranhado. Eu quero uma tela de vidro, e eu o quero perfeito em seis semanas” (DUHIGG; BRAKSHER, 2012). Após a reunião, imediatamente, foram tomadas providências para sanar o problema: Em meados de 2007, após um mês de experimentos, engenheiros da Apple finalmente aperfeiçoaram o método para reduzir arranhões no vidro, então ele pode ser usado na tela do iPhone. A primeira carga de telas chegou à cidade da Foxconn no silêncio da noite, de acordo com um antigo executivo da Apple. Foi quando o gerente acordou milhares de trabalhadores, que vestiram seus uniformes –branco e preto para homens, vermelhos para mulheres –e rapidamente se alinharam para montar, com as mãos, os telefones. Em três meses, Apple vendeu um milhão de iPhones. Após isso, Foxconn montou aproximadamente mais 200 milhões (DUHIGG; BRAKSHER, 2012). Em comparação aos trabalhadores americanos, os chineses apresentam a flexibilidade necessária capaz de suprir as exigências da empresa. De maneira direta Jennifer Rigoni, ex-gerente de suprimentos da Apple na China, declara a esse respeito: “em que fábrica nos EUA pode encontrar 3.000 pessoas durante a noite e convencê-los a viver em dormitórios? Há uma ampla flexibilidade do trabalho na China que a coloca como mais vantajosa para produzir do que em países excessivamente regulamentados e com uma classe trabalhadora organizada, como é o caso dos EUA.” Não por acaso, o famoso jantar oferecido por Barack Obama ao CEO da Apple, Steve Jobs(cf. DUHIGG; BRAKSHER: 2012), no qual o presidente americano o interpela sobre a possibilidade de retornar postos de trabalho para a nação americana, recebeu um taxativo não como resposta. Hoje, a insistência do atual presidente americano, Donald Trump sob a bandeira do make America great again, impõe fortes pressões para forçar a empresa a retornar sua produção nos EUA, algo somente possível mediante absurdas concessões do governo americano às exigências cada vez mais vorazes da corporação em questão (redução de impostos para repatriação de capital, privilégios para a instalação da Foxconn em Wisconsin etc.). A permissibilidade da deslocalização do trabalho também viabiliza às grandes corporações escapar da pressão da organização dos trabalhadores em seu próprio país e aproveitar condições mais vantajosas oferecidas por outras nações; ao mesmo tempo se valem da enorme disponibilidade de mão-de-obra presente em um país, por exemplo, como a China. Nesse caso, a alocação de trabalhadores em seu processo produtivo, assim como o exército industrial de reserva já não se encontra mais dentro dos limites das fronteiras de seu próprio país. A diminuição de empregos nos EUA encontra-se diretamente associada a essas novas tendências, e porque não ver nessa mesma dinâmica de deslocalização um mecanismo de controle capaz de promover a redução do preço da força de trabalho nos EUA. Seja pela redução dos custos salariais, seja pela desregulamentação das leis trabalhistas, seja pela flexibilização do trabalho, ou ainda, pela oportunidade de escapar das pressões das leis trabalhistas e das organizações dos trabalhadores de seu próprio país, a opção de grandes corporações ainda se pauta em dois critérios decisivos: a necessidade da superpopulação relativa e a ofensiva contra a organização da classe trabalhadora. Em relação a esse último critério vale lembrar o impacto internacional provocado por essa grande oferta de mão-de-obra proporcionada por países periféricos. Em grande medida redundou na desregulamentação das leis trabalhistas em diversos países centrais. Apenas para citar em passant um caso dentre os mais importantes: na Alemanha em 2003, a designada Agenda 2010, levou ao congelamento de salários e deu origem a um amplo setor de trabalhadores de baixa remuneração (400 euros). Além disso, para citar apenas as medidas mais centrais de tal plano que: 1) promoveu um modelo de terceirização baseado em trabalho temporário ou de subcontratação; 2) permitiu a redução da aposentadoria para o patamar de 60% do último salário recebido na ativa, e, consequentemente, 3) implicou o aumento da idade mínima necessária para a aposentadoria, que passou de 65 para 67 anos; 4) permitiu a redução nos custos empresariais na demissão de trabalhadores (Cf. RIGOLLETO; PÁEZ, 2018). O efeito de tais medidas se alastrou para a Espanha, cuja reforma trabalhista se deu em moldes muito próximos aos alemães no ano de 2012, e para Itália, com o Act Jobs, em vigor desde 2015. As mesmas tentativas de mudanças nas leis trabalhistas geraram na França forte onda de protestos que, mesmo com grandes resistências de trabalhadores e estudantes, não conseguiu conter a onda reformista que acometeu o velho continente. Essa tendência reformista foi a resposta orquestrada para conter ou amenizar a crise que assola a economia mundial desde 2008 e já se fizera presente em 2001³. Em linhas gerais as reformas significam a redução da pressão dos salários sobre os lucros, fomentado tanto pelo retorno às formas do século XIX de exploração do trabalho por meio da mais valia absoluta –ou seja, aumento da jornada de trabalho–, como por mecanismos de redução dos salários. A produção em países cujo preço dos salários é mais baixo, associado à flexibilidade da regulamentação e da mão-de-obra se tornou um mecanismo eficaz para conduzir os gastos salariais a patamares mais baixos. Junto a isso, medidas tributárias tendem a reduzir os custos dos gastos sociais. O ensejo é retornar às realizações próximas àquelas realizadas por Reagan durante seu governo. Em síntese, tais medidas têm como primazia a contenção da crise da queda tendencial da taxa de lucro, fenômeno que tem se intensificado de maneira flagrante na economia mundial nas últimas duas décadas. O Brasil tardiamente assume seu lugar na fila das reformas. Obviamente a natureza de nossas reformas são mais perversas diante da particularidade tacanha da economia e da sociedade brasileira. A reforma trabalhista brasileira segue a linha das tendências internacionais, consistindo em um modo desesperado de a classe capitalista brasileira fazer frente às condições cada vez mais rígidas de exploração do trabalho hoje em curso no mundo. De igual maneira prepara as bases para a redução dos custos sociais de nossa sociedade, como forma de aliviar também a pressão tributária sobre o lucro das empresas. A reforma da previdência atende a essa segunda alternativa à crise. Tudo o que dissermos nos permite ponderar: se ainda é possível insistir na validade da definição marxiana podemos então dizer que o exército industrial de reserva não se limita mais às fronteiras de um país, mas tem a dimensão da oferta mundial de mão-de-obra. Além disso, é possível mediante tais considerações problematizar a concepção fácil e não devidamente argumentada acerca da pouca relevância do trabalho e da figura do trabalhador nas novas condições da sociabilidade de nossos dias. O que de fato assistimos na atualidade é a complexificação das formas de exploração do trabalho, associadas a uma grande ofensiva contra a classe trabalhadora, capaz de atenuar sua organização e resistência diante dos ataques aos direitos conquistados por anos de intensa luta. Podemos dizer que as questões relativas ao trabalho já não dizem respeito apenas às circunstâncias nacionais, às particularidades de cada país, mas o que ocorre em uma nação resvala suas consequências diretamente em outras nações. Nesse sentido, mais do que antes, a alternativa para a classe trabalhadora nos conduz novamente à famosa frase que encerra o Manifesto do Partido comunista de Marx e Engels: Trabalhadores de todo o mundo uní-vos! Referências BRAVERMANN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Guanabara, 1974. BRENNER, Robert. O boom e a bolha: os Estados Unidos na economia mundial. Rio de Janeiro: Record, 2003. BRENNER, Robert. 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Praticamente, são definidos por tipo de ofício regras de trabalho (Work rules) bastante rígidas: tipos de tarefas que cada categoria de trabalhadores deve executar (as tarefas que não figuram na lista não podem ser impostas ao operador concernente), número de peças por hora, etc. É portanto uma forte rigidez que pesa sobre o sistema americano em relação a outros sistemas (francês ou italiano por exemplo)” (CORIAT, 1990, p. 235). 3: Não é simples coincidência o fato da reforma trabalhista alemã ter ocorrido 2 anos após a grande crise na economia mundial ocorrida em 2001.
- O Congresso e o flerte autocrático: o futuro do Brasil como uma conversa de compadres
A forma política que tentou equacionar a luta de classes no Brasil a partir do fim dos anos 1980 tem sofrido mudanças significativas. O chamado presidencialismo de coalizão, ao mesmo tempo em que se reafirma e prevalece como modelo, também aponta para uma transformação. Há sinais de esgotamento e de transmutação. Basta ver o exemplo do Poder Judiciário, que inaugurou uma imensa cruzada moral contra a corrupção através da Operação Lava-Jato, a qual abalou significativamente a vida da República. Iniciada por arrivistas em busca de fama no grotão chamado Curitiba: Moro, Dallagnol e seus cupinchas tentaram se lançar ao centro do poder no país, conquistando até mesmo ministros do STF. Explorando a trilha de lama deixada pelos governos petistas, seu principal feito foi prender Lula, tirando-o da disputa eleitoral de 2018. Mas a alegria durou pouco. Moro caiu em desgraça por ter se associado ao governo Bolsonaro. Além disso, a confabulação entre juiz e promotor foi descoberta e o STF, que hoje se vê sem forças materiais para encarar Bolsonaro, livrou Lula das condenações, no que parece ser uma tentativa desesperada de equilibrar o jogo eleitoral através da soltura do único candidato que pode vencer o imbecil capitão. Malfadada a aventura jurídica do bando de rábulas, o Legislativo ganhou protagonismo. Se antes eram os “políticos corruptos”, alvos dos justiceiros dos tribunais, agora a festa parlamentar, pouco pudica, acontece à luz do sol. Os dias felizes advém de um gigantesco esquema de repasses de verbas pelo Poder Executivo chamado orçamento secreto. Evidentemente, uma pilantragem tão arrojada e de tal monta só poderia ter saído da cabeça de um dos nossos gorilas, o general Luiz Eduardo Ramos – então chefe da Secretaria de Governo da Presidência da República. Depois de mais de um ano de governo, tentando cumprir suas promessas de bufão, Bolsonaro evitava adotar a prática de loteamento de cargos e ministérios para os partidos – até então, o grande sustentáculo do modelo presidencialista brasileiro. Sem muitas perspectivas de efetivar um golpe de Estado, diante da pandemia, isolado politicamente, sob ameaças de impeachment e de paralisação de seu governo, a virada dessa situação se deu com a eleição dos candidatos bolsonaristas à presidência da Câmara – Arthur Lira (PP) – e do Senado – Rodrigo Pacheco (PSD). Claro que foi preciso ceder um dos mais importantes ministérios, a Casa Civil, ao notório pilantra Ciro Nogueira (PP). Entretanto, Bolsonaro conseguiu manter as aparências através das emendas completamente obscuras de um orçamento paralelo que compra a base parlamentar e que tem garantido sua sustentação. Lira tornou-se um verdadeiro administrador dessa montanha de dinheiro. De um sabujo do governo, passou a ser reconhecido como uma espécie de presidente de facto da República. O sujeito concentra, segundo nosso jornalismo crítico – ou quase crítico –, um poder nunca antes visto nas mãos de um presidente da Câmara. Desde 2019, o Poder Legislativo controlou R$ 115 bilhões em emendas parlamentares, um montante três vezes maior que os R$ 33 bilhões dos quatro anos anteriores, além de que, pela primeira vez em dez anos, o número de projetos tornados leis, com assinatura de deputados e senadores, superou os de iniciativa do Poder Executivo. Mesmo depois de todas as evidências de corrupção que envolvem tal orçamento – um clientelismo fundado na relação entre os deputados e suas bases estaduais e municipais –, o bem bolado segue a todo vapor. O orçamento secreto está sendo ampliado, enquanto as instituições da República – as quais dormem furiosamente –, como STF e TCU, limitam-se a proclamar que isso “fere a Constituição” por não respeitar a transparência na divisão das verbas. Sob a retórica de tornar o esquema mais transparente e atender aos clamores mais republicanos, a canalha parlamentar segue sua escalada, tornando a pilantragem orçamentária não tão transparente, mas cada dia mais institucionalizada. A recondução de Lira ao cargo em 2023 é quase garantida, já que metade das emendas que tem sob seu poder só será liberada aos deputados depois que for reeleito. As últimas notícias são de que o Centrão de Pacheco e de Lira buscou – embora sem sucesso – embutir na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2023 uma regra que tornaria as indicações das emendas do orçamento secreto praticamente impositivas. Mas a questão vai além da simples farra com o vil metal. O poder político concentrado nas mãos dos chefes parlamentares têm mudado a prática da vida legislativa. Em maio de 2021, Arthur Lira bancou uma alteração regimental para diminuir o poder de veto da oposição. Além disso, a tramitação de matérias que interessam à cúpula do Congresso, que nos tempos de Eduardo Cunha durava cerca de 269 dias, com Lira caiu para 140 dias. Agora a cúpula da Câmara se prepara para atacar o STF, o qual tem sido um incômodo para Bolsonaro e para certas ações do Legislativo. A ideia é um acinte aos doutores constitucionalistas, já que este covil de ladrões chamado Câmara de Deputados pretende elaborar uma PEC que permita aos parlamentares anularem decisões do STF sempre que elas não sejam unânimes e contenham uma alegada extrapolação dos “limites constitucionais”. E Arthur Lira já tem pensado no futuro. Como já alertamos em outro editorial, Lira segue com sua campanha pela implantação do semipresidencialismo no país, agora com um “grupo de trabalho” composto por ilustrados uspianos. O objetivo do político alagoano é que o chefe da administração federal – que hoje é o presidente da República –, seja escolhido não mais pelo voto direto, mas sim pelo Congresso, na figura de um primeiro-ministro. O semipresidencialismo serviria para que o protagonismo da Câmara, arrancado de Bolsonaro, se tornasse permanente e oficial. A proposta – que conta com apoio de gente como Michel Temer e Gilmar Mendes – tiraria o peso que tem o voto popular no presidente da República. Ela evitaria que tanto os chamados outsiders, como Bolsonaro, peguem o grande capital de surpresa nas eleições, como inviabilizaria também candidatos que contam com certa indisposição de setores da burguesia, mas que possuem imenso apoio popular capaz de elegê-los, tal como é o caso de Lula. O controle sobre o presidente seria muito mais fácil, evitando desgastantes impeachments. Além disso, diminuiria de vez o número de partidos, centralizaria a disputa e reduziria o clientelismo interiorano – essa reminiscência de um período em que a gestão do Estado era, predominantemente, um pacto entre as frações industriais e agrárias da classe dominante. Tudo isso garantiria maior agilidade e poder ao Legislativo, sendo possível atender melhor aos interesses impopulares do capital. Um deputado preposto de Lira já foi discursar sobre a ideia semipresidencialista a uma simpática plateia da burguesia paulista na Fiesp. Os jornalões ainda não parecem ter encampado a proposta – talvez estejam ainda envergonhados de dizer alguma coisa depois da imensa contribuição que deram à criação do bolsonarismo nos últimos anos. Lira é astuto. Está lançando a ideia na véspera do furdunço geral que promete ser as eleições de 2022 e seus desdobramentos. É possível que sua intenção de garantir tanto poder ao Congresso venha a ser útil para a burguesia, para os militares emporcalhados pela sujeira que fizeram – não nos esqueçamos que foram os generais que forçaram a implementação do parlamentarismo em 1961 para tirar poder de João Goulart e frear suas reformas de base –, e útil até mesmo para Lula e para o PT – os quais pretendem fazer qualquer coisa pela ilusão da governabilidade. Se o governo presidencialista tem, no Brasil, uma clara orientação antipopular, o semipresidencialismo vem com o objetivo de ser uma saída ainda mais conservadora, ainda mais de conchavos – agora todos feitos exclusivamente no parlamento –, transformando o governo em uma verdadeira conversa de compadres, cada vez mais imune à pressão popular. O que incomoda os parlamentares hoje é ter que lutar pelo voto de quatro em quatro anos, pois ainda que sob uma democracia capitalista, a “opinião popular” – mesmo com seu forte viés manipulatório – precisa ser levada em conta. Afinal, o que poderia explicar a atual flexibilização do chamado teto de gastos? O capital no Brasil lutou incessantemente nos últimos anos para implementar regras fiscais rígidas e ferir de morte os chamados gastos sociais. O Congresso acompanhou a euforia fiscalista dos jornalões que bradavam pelo “equilíbrio das contas públicas”. Entretanto, chegamos às vésperas das eleições com um exército de famélicos, desempregados e doentes – mas que, apesar de tudo, ainda votam. Só um economista da FGV ou um comentarista político poderia ser contra a ampliação dos auxílios sociais. Pois então, vemos Bolsonaro, Lira e até Paulo Guedes incitando o “furo” ao teto de gastos, declarando estado de emergência nacional – num espetacular drible à Constituição e às regras eleitorais – para aprovar a “PEC Kamikaze” – assim apelidada pelos fanáticos do fiscalismo. O Congresso também engavetou as reformas tributárias e administrativas – tão exigidas pela Febraban –, dando uma banana para as principais pautas da grande burguesia na reta final antes das eleições. Pois na verdade, a luta de Arthur Lira – esteja ele consciente disso ou não – é parte da luta de importantes setores da burocracia do Estado brasileiro por mais autonomia em meio à dinâmica geral da luta de classes. Se por um lado desejam uma relativa independência do lobby de alguns setores da burguesia (ainda que, efetivamente, ao fim, trabalhem para a prevalência dos interesses do capital) – tal como prova a bolada que aprovaram para si mesmos de R$ 4,9 bilhões de fundo eleitoral, abocanhando mais recursos públicos e dependendo menos de recursos privados –, por outro lado, o semipresidencialismo aliviaria as pressões políticas advindas das necessidades da classe trabalhadora e de outras camadas populares. Diante de tudo isso, a forte tradição autocrática do Brasil assombra os mais incautos como se fosse essa uma vocação nossa. Pior, os candidatos que se autointitulam democratas, que pretendem transformar a luta de classes em uma disputa eleitoral do ódio contra o amor, pouco se interessam pelo tema. O fato é que Bolsonaro – o Poder Executivo – já deixou claro que ainda não deu um golpe porque não possui força para isso. O STF – cérebro do Poder Judiciário –, em suas lamentações professorais, pode ter perdido a chance de ouro de realizar um tipo simpático de ditadura da toga através do lava-jatismo. O Congresso, no entanto, parece ainda ruminar uma saída para si. Não devemos duvidar que aquela alcova está ensaiando sua hora e sua vez. Quem sabe através de um “grande acordo nacional”? Quem sabe não seja a hora de uma frente ampla de pilantras que seduza essa burguesia voraz, mas que anda um tanto atônita? É preciso não se iludir com doces sonhos democráticos e republicanos – os quais nem Montesquieu acreditava tanto assim. Há uma horda de trambiqueiros dispostos a tudo, a qualquer picaretagem para salvar seus cargos, seus orçamentos e seus negócios. É precisamente essa gente que aparenta estar completamente acima dos diferentes interesses das classes sociais, que parecem representar o bem comum, a ordem e toda essa fraseologia. Bolsonaro acirrou a bagunça que tomou a Nova República nos últimos anos. A classe trabalhadora ainda lambe suas feridas de décadas de derrota, enquanto a burocracia operária petista rifa o futuro em troca de cargos fugazes. Entre a burguesia, não despontou, até agora, nenhum setor capaz de unir toda a classe capitalista numa saída unívoca, ou capaz de encabeçar sozinho uma solução política independente dos demais setores burgueses. Entre os poderes da República, portanto, é possível que prevaleça o salve-se-quem-puder, a imposição do mais forte e os acordos covardes de gabinete. Os digníssimos democratas de hoje, amanhã podem estar negociando anistias e silêncios com generais, ministros e parlamentares. E é em meio a tudo isso que, talvez, o Congresso planeje finalmente dar sua contribuição derradeira na história da autocracia burguesa no Brasil. Aquele que sobreviver verá.
- A “particularidade” como categoria estética em György Lukács
Wesley Sousa (1) Henrique Leão Coelho (2) Breve introdução A questão da estética não é um tema marginal na obra do filósofo húngaro György Lukács (1885 – 1971). Com uma base filosófica e cultural alemã de largo alcance, seus escritos estiveram consignados com referência às teses neokantiana e posteriormente hegeliana (por exemplo de Alma e as Formas e Teoria do Romance). Ao longo disso, condensam-se ao corpus de suas obras inaugurais que lhe deram, naquele contexto, repercussões notáveis. Conforme observa a intérprete Arlenice Silva, é “em A alma e as formas (1910), obra central das primeiras incursões de Lukács no campo da Estética. Ali a questão da forma já ganhava alguns contornos históricos, indicando a direção da historicização que ocorreu com mais força a partir de A teoria do romance (1916)” (Silva, 2009, p. 96). O autor foi conhecedor das produções relacionadas à filosofia da arte e à estética na história da filosofia, sobretudo no cenário cultural, intelectual e político na Alemanha. Porém, o pressuposto de que partimos em nosso artigo, por outro lado, é que ele muito mais um filósofo da estética do que um filósofo político (cf. Tertulian; Santos, 2018). Importa principiar com a seguinte consideração: para a temática aqui envolvida, o pensamento estético da maturidade de Lukács “tem como uma de suas peculiaridades mais originais o fato de buscar um enraizamento na vida cotidiana” (Frederico, 2000, p. 302). Dessa forma, para seguir as palavras de Deribaldo Santos, outro intérprete da obra estética lukácsiana, cujas as quais no procedimento do pensador húngaro e seus desdobramentos, teríamos um reposicionamento do campo da estética sob auspícios do marxismo, a partir da década de 1930[1]: Esse risco gerado no seio da filosofia idealista quer arrancar a íntima vinculação da universalidade com particularidade e a singularidade, o que hipostasia, fetichizando a universalidade em uma essencialidade para si. Contraposta a esse fetiche idealista há ainda a possibilidade de outro tipo de fetichização, cuja crença defende as generalizações como meros produtos subjetivos do pensamento humano. Se se segue esse caminho, todo o mundo da aparência sofre uma fetichização de signo contrário àquela, ou seja, típica do positivismo (Santos, 2018, p. 126). O desdobramento que Lukács teve em mente, e que Santos destaca, foi “arrancar a íntima vinculação da universalidade com particularidade e a singularidade”, que pode ser vista nas próprias palavras de Lukács, na sua obra tardia de 1957, intitulada Introdução à uma estética marxista. Para o filósofo húngaro, coube a Marx, junto a Engels, desvelar “de um modo historicamente concreto, sem preconceitos esquemáticos”, em correlação, “como casos concretos e expressões de uma dialética do universal e particular (Lukács, 2018, p. 95)[2]. A categoria da “particularidade” Nicolas Tertulian, em seu livro intitulado Lukács: etapas de seu pensamento estético, argumenta que o pensamento estético de Lukács trata-se de um elemento pertencente a um tipo de conhecimento específico, perpassando a pletora ampla de sua discussão filosófica. Com isso, os problemas que Lukács tematiza, possuem suas resoluções nos marcos legais do objeto: Os teoremas do sistema de estética de Georg Lukács devem ser relacionados com suas teses finais relativas aos problemas fundamentais da filosofia: causalidade-teleologia, necessidade-liberdade, realidade-valor. A tese cardeal que estabelece uma proporcionalidade direta entre a profundidade da subjetividade e a de seu enraizamento no mundo objetivo encontra sua justificação na análise das formas mais elementares da relação sujeito-objeto (Tertulian, 2008, p. 198). Não obstante, quando Lukács retoma a objetividade e historicidade efetivas no pensamento estético superando seu anterior idealismo, não deixa de referir-se a Aristóteles. O filósofo grego ainda vige como contributivo da apreensão da peculiaridade do estético. Segundo o filósofo, o pensador grego, por sua vez, se situava longe da concepção de modelo e cópia, instituída por Platão e os neoplatonistas[3]. Lukács tributa a Aristóteles a maneira de colocar a arte como uma atividade humana de criação, ou seja, uma forma de objetivação do/no mundo, sobretudo, uma mimesis (imitação) artística. Para o nosso problema, a categoria da particularidade se mostra central porque Lukács é bastante claro ao referir que “esta superação da universalidade na particularidade artística apresenta-se, de acordo com o período, com o gênero ou com a individualidade do artista, sob variadíssimas formas” (Lukács, 2018, p. 154). Dessa forma, na literatura, não importa a orientação pessoal política do artista, nem sua filiação ideológica ou de classe. O que está em jogo, vale mencionar, é que quanto “maior for o conhecimento que o artista [escritor, por ex.] tiver dos homens e do mundo, quanto mais numerosas forem as mediações que descobrir e (se necessário) acompanhar que a extrema universalidade, mais acentuada será esta superação” (Lukács, 2018, p. 155). Por isso, ainda que preliminarmente, versa-se acerca da possibilidade de uma estética marxista e de seus resultados insignes. Por isso, é que convictamente se ultrapassa certo conteúdo voluntarista do fazer artístico e mesmo a incomunicabilidade indivíduo-mundo presente no primeiro idealismo (subjetivo) de Lukács. Para que retomemos a Introdução: Esta identificação com o sujeito representado, contudo, deve ser melhor concretizada. Quando a juventude soviética comparece às representações de Casa de Bonecas ou de Romeu e Julieta e revive apaixonadamente as suas figuras e os seus eventos, é claro que cada espectador sabe que eventos concretos daquela espécie estão completamente fora de sua vida, que pertencem inapelavelmente ao passado. Mas de onde deriva a força evocativa destes dramas? Acreditamos que resida no fato de que neles é revivido e feito presente precisamente o próprio passado, e este passado não como sendo a vida anterior pessoal de cada indivíduo, mas como a sua vida anterior enquanto pertencente à humanidade. O espectador revive os eventos do mesmo modo, tanto no caso em que assista a obras que representam o presente, como no caso em que a força da arte ofereça à sua experiência fatos que lhe são distantes no tempo ou no espaço, de uma outra nação ou de uma outra classe. Um fato igualmente inegável é o de que massas de proletários leram Tolstói com entusiasmo, do mesmo modo como massas de burgueses leram Gorki com entusiasmo (Lukács, 2018, p. 263). Conforme se analisa, no limite temático, a literatura (e isso valeria para o teatro, cinema, etc. cada qual com suas especificidades) ultrapassa o mero formalismo personalista do seu autor (escritor), ou seja, não interessa o que chamemos de “literatura burguesa” ou “literatura operária”, como por vezes ocorre a esse ímpeto apressado. Lukács está convencido, por outro lado, a desmistificar tal impetração do famigerado “realismo socialista”, muito em voga pelo advento do stalinismo e da burocracia socialista que vigoraram por décadas no século passado. Para um marxista sério e decidido, a inquietação pela estética deve ser tratada nos seus próprios termos, visando a inteligência das coisas, e não a imputação partidária refringente. O autor discorre acerca das contribuições de Lukács e assevera que o comportamento estético, em verdade, não é mais que um, dentre muitos outros modos possíveis, do homem reagir às solicitações da realidade objetiva[4]. Não obstante, uma forma peculiar de reflexão e criação que tem como fundamental a superação da pura universalidade ou da pura singularidade, evidenciando a particularidade como nó górdio dos fios invisíveis entre individuação e sociabilidade determinada. Acerca da possibilidade de uma “estética marxista” Em meados da década de 40, quando nosso autor redige sua Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels[5], deflagra-se a influência da lógica hegeliana revezando sua proeminência com a travessia de recuperação do núcleo teórico de Marx, como afirmação ontológica materialista. No entanto, Lukács fala de “leis gerais”, além de “sistema” para referir-se à teoria marxista (o que ao longo de suas argumentações geram problemas consequentes), o que implica apreender uma certa Lógica entre universal e particular de maneira ainda Idealista: há, de fato, um formalismo teórico, algo que tentou evitar, mas deixando “entrar pela porta dos fundos”[6]. Doravante, embora mais uma vez – como em textos das décadas passadas – o autor acerte na crítica da parcelarização da totalidade articulada do ser social, o autor não granjeia seu melhor auge de retomada e renascimento da filosofia marxista em seu verdadeiro sumo: a crítica à ciência burguesa que remonta a fulcral necessidade de estudar as esferas sociais como parte de um todo, assevera com correção aspectos sociais em determinações recíprocas que a cada momento precisam ser apreendidos. No entanto, por vezes, essa afirmativa aparece meandrada pela referência da aplicação do método “materialismo dialético”, acarretando a mácula idealista sobredita. É correta a sua afirmação sobre o veio deletério da ciência burguesa que corrompe e decompõe a realidade fazendo o isolamento das esferas sociais, dando ares de autonomia absoluta a cada complexo, e obscurecendo a apreensão dinâmica de conjunto que perfaz uma sociabilidade (Lukács, 2011, p. 95). Em suma, Lukács quer demonstrar que a atividade espiritual (cultural, artística, etc.) não é apenas aparência, mas um campo múltiplo de respostas, ligados às prioridades da economia e da totalidade social, sendo a arte uma dessas possíveis respostas em uma sociabilidade configurada. Evidenciando as conquistas dos Manuscritos de 44 de Marx, e aprofundando no aspecto artístico, toca-se também no fato degradante de no capitalismo a arte autêntica estar derrogada tendencialmente, ancoragem lukacsiana em afirmativa de Marx. Porém, o autor infere que a propositura marxista não é uma inovação, mas só com ele as determinações da dilapidação do cerne artístico tornam-se mais claras. Nesse marco, a obra O Capital seria seminal para demonstrar o caráter infértil e refringente do capitalismo à arte (fetiche da mercadoria, alienação, etc.). Não se trata de um defronte isolado da estética, mas da averiguação do problema artístico tendo em vista a constelação social geral – o que se chama de “particularidade”. Lukács, tendo em vista a decomposição do homem no mundo do capital, parte para uma defesa da arte autêntica como humanitas, isto é, deflagração das determinações sociais e defesa da humanização do homem. A humanitas é, segundo o autor, parte de toda literatura e arte autêntica. Não basta que seja consciência sobre o homem, mas defesa obstinada de sua aspiração de revolvimento de sua fase depauperada. A arte, assim merecendo a insígnia, é adversária ferrenha da velhacaria teratológica que afoga as possibilidades de humanização, isto é, da síntese de determinações que engendram a relação-capital como relação social por excelência do presente. O filósofo remete ao fato de o humanismo ser agora protagonizado pelo proletariado que eleva as revoluções burguesas e o progressismo anterior a um estado mais rebuscado de conquista da emancipação do homem e do desenvolvimento multifacetado e satisfatório de suas potências. Ao mesmo tempo, enfim, o artista não pode ser outra coisa senão aquele que denuncia o presente aquém, exangue e vil, do homem e ratifica caminhos da superação como em Goethe e Shakespeare tratados por Marx nos seus Manuscritos de 44. Assim, o filósofo húngaro, ainda, acertadamente dejeta do marxismo qualquer floreio romântico, nostálgico ou pessimista, afirmando a superioridade do marxismo sobre o anticapitalismo romântico; no capitalismo não se vê qualquer fatalidade, calamidade inexorável, mas vida genérica deletéria que apresenta o homem como ser levado a reboque pelo sujeito capital, vida efetiva invertida. Não se trata, concomitantemente, de um elogia passadista, de um irracionalismo aristocrático, e sim da acusação crítica do presente, em vista do futuro enriquecedor possível pela superação da forma social capitalista. O autor húngaro volta a Marx para falar da crítica ao texto de Eugene Sue (Os mistérios de Paris), abordagem estatuída em sua A Sagrada Família: no bojo de Marx, é afirmada sua superficialidade, seu preconceito burguês posto em obra, sua identificação com o ponto de vista dessa classe, em uma palavra, obra como representação da consciência fetichizada. Se ninguém lê Sue mais, aposta Lukács, é porque as modas burguesas engendram novos autores para acalentar literariamente o mundo imediato-aparente. Essa questão é fundamental para termos nossa resposta ao problema: a arte só pode ser abordada, segundo o prisma marxista que ora abordamos, a partir da preponderância do realismo. Por realismo, deixa claro o filósofo, não se trata do realismo ingênuo naturalista, que é um descritivismo de superfície. Por outro lado, em Marx trata-se também de negar a autonomia absoluta da arte, sua completa independência do solo social do qual parte. Enfim, segundo Lukács, no autêntico marxismo haveria a identificação da grande arte como realismo e o afastamento do mero registro fotográfico e da arte (no “âmbito da teoria e da prática” artística) como desenvolvimento formalista, fechado em si mesmo, “jogo vazio de formas”: modo mimético peculiar e instauração realista do imanente, em um amplo manifesto pela recomposição do homem, contra os estranhamentos das sociabilidades efetivamente configuradas[7]. Ainda, o artista está vinculado a esta ou àquela classe, consciente ou não, mas sua ideologia, original ou adotiva, pode ser “neutralizada” pelo próprio processo de criação, ainda que dali se parta. Há exemplos bastante conhecidos, como Balzac: este era monarquista, porém a distância entre suas ideias políticas na época reacionária e a concepção do mundo expressa na sua Comédia Humana ao retratar a aristocracia decadente e a vida social burguesa, é marcante. A indicação de Benedito Nunes nos traz outro exemplo de importante significação: “Outro exemplo notável é a obra de Dante, que sintetizando exemplarmente a visão medieval do mundo, antecipa a eclosão do humanismo renascentista” (Nunes, 2016, p. 89). O ponto central para Lukács é distinguir a narrativa literária da simples descrição. É claro que, em geral, a literatura não é o “ponto alto” da arte, mas um tipo específico dela. Para o filósofo, a crítica literária é parte de sua “teorização”. Assim, a alternativa “participar ou observar” estaria vinculada a duas posições socialmente postas em que os escritores assumem em “dois sucessivos períodos do capitalismo” (Lukács, 1968, p. 57). Conforme pode-se notar, a preocupação do autor passaria a ver a “alternativa narrar ou descrever corresponde aos dois métodos fundamentais de representação próprios destes dois períodos” (Lukács, idem). Isso distinguiria um Balzac de um Émile Zola. Balzac, Dickens e Tolstoi representam a sociedade burguesa que se está consolidando através de graves crises; [...] participaram ativamente dele, se bem que em formas diversas; [...] Flaubert e Zola [como filhos da sociedade burguesa consolidada e não aceitando os caminhos do ódio e desprezo pelo regime político, social de seu tempo] são demasiado grandes e sinceros para seguir esse caminho. Por isso, como solução para a trágica contradição do estado em se achavam, só puderam escolher a solidão, tornando-se observadores e críticos da sociedade burguesa (Lukács, 1968, p. 56-7). Portanto, o pensamento de Lukács nesse sentido indica a superação dos aspectos cotidianos e aparentes, mesmo perpassando por eles, por meio do reflexo estético, característico da literatura, por exemplo, na vida social dos seres humanos e suas expressões. Lukács faz essa busca na distinção do realismo e do naturalismo: o segundo servia-lhe uma postura até mesmo anti-humanista. Todo naturalismo é, assim, um tipo de realismo ingênuo, mas, ao contrário, nem todo realismo é um tipo de naturalismo. O “realismo crítico”, por conseguinte, tem seu lugar na estética não como postura exógena das subjetividades humanas, ou seja, é uma posição que vai muito mais além de uma tomada de decisão pessoal-subjetiva de cada um. Considerações finais Para isso, o eixo central repõe o desvelamento da categoria da particularidade, como nódulo elementar do pensamento estético do autor húngaro em questão. Com isso, na argumentação exposta pontuamos que, no que se refere à arte – em especial a literatura –, sua particularidade estética mesma que propulsionaria, dentro de sua função específica no mundo social, as vicissitudes da elevação qualitativa de seu espírito. Cristalizamos nosso raciocínio final com um breve ensaio, com título O Humanismo de Shakespeare, em que Lukács mostra como, mesmo com passar dos séculos, a arte consegue ultrapassar sua temporalidade da criação e ainda marcar outras gerações sem perder sua particularidade como obra de arte. Todavia, o exemplo de Shakespeare é notável. Segundo Lukács, a Renascença seguia princípios pelos quais as realizações humanas na Terra tinham seu amplo valor, sobretudo cultural; ao passo que “criava atitudes particulares do homem em relação ao mundo, à natureza e à sociedade” (Lukács, 1968, p. 149). Segundo Lukács, ninguém antes de Shakespeare tinha, na arte literária, traduzido “tão bem a integridade e a indivisibilidade do homem, isto é, a absoluta primazia do que se passa no interior do homem sobre todas as suas realizações objetivas” (Lukács, 1968, p. 149). Com isso, na criação/fruição estética autêntica, os sujeitos sociais ultrapassam uma cadeia de heterogeneidades do mundo cotidiano brutalizado, para assim identificar, através da ação e tipicidade das personagens, a figuração homogeneizadora que concentra toda a sua atenção em adentrar-se no mundo efetivo – por meio da evocação estética –, fora das contingências cotidianas que geram as descontinuidades de um universo fragmentado. Essa concentração da atenção, ou seja, esse momento de esforço exigente, fugaz, suspensivo, emerge da mobilização das forças espirituais, culturais, e produz – por meio da catarse, do enlevo – uma elevação do entendimento cotidiano e ao desvelamento próprio à arte (Frederico, 2000). Referências COTRIM, Ana. O realismo nos escritos estéticos de Georg Lukács dos anos trinta: a centralidade da ação. São Paulo. Dissertação de mestrado. FFLCH. Departamento de Filosofia, USP, 2009, 391p. FREDERICO, Celso. Cotidiano e arte em Lukács. Estudos Avançados, São Paulo, v. 14, n. 40, p. 299-309. LUKÁCS, György. Arte e Sociedade: escritos estéticos 1932-1967. Organização, introdução e tradução de José Paulo Netto e Carlos Nelson Coutinho. 2° edição. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011, p. 87-120. _______________. Introdução à uma estética marxista: sobre a particularidade como categoria da estética. São Paulo: Instituto Lukács, 2018. _______________. Narrar ou Descrever? In: Ensaios sobre Literatura. Prefácio Leandro Konder. 2° edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 47-100. _______________. O Humanismo de Shakespeare. In: ________________. Prefácio Leandro Konder. 2° edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 157-154. _______________. O debate sobre o Sickingen entre Marx-Engels e Lassalle. In: Marx e Engels como historiadores da literatura. Tradução e notas Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2016. NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. São Paulo: Loyola, 2016. SANTOS, Deribaldo. Estética em Lukács: a criação de um mundo para chamar de seu. São Paulo: Instituto Lukács, 2018. SILVA, Arlenice. O lirismo no jovem Lukács. Kriterion, Belo horizonte, n° 119, jun., 2009, p. 93-113. TERTULIAN, Nicolas. Georg Lukács: etapas de seu pensamento estético. Tradução Renira Lisboa Lima. São Paulo: Editora UNESP, 2008. [1] Para ver sobre a questão da produção marxista na década de 30: Cf. Cotrim, 2009. [2] Para uma exposição mais alongada, com a devida rigorosidade, por ex., ver: Santos, Deribaldo. Estética em Lukács. São Paulo. Instituto Lukács, 2018. [3] Lukács diz: “Aristóteles deu ao desenvolvimento da estética um impulso duradouramente salutar, na medida em que, por um lado, colocou no centro da estética o reflexo da realidade objetiva e não o reflexo das ideias, como no neoplatonismo; por outro lado, porém, e ao mesmo tempo, este reflexo foi ele energicamente diferenciado da cópia puramente mecânica da realidade” (LUKÁCS, 2018, p. 124). [4]Nota-se aqui a seguinte passagem de Santos, que corrobora a tese de Oldrini: “A problemática sobre antropomorfização, desantropomorfização, imanência e transcendência garante ao esteta, por meio do recurso de aproximação e distanciamento, diferenciar o complexo artístico do científico e do religioso em relação ao cotidiano, o que lhe permite, mesmo que a nível inicial, apoderar-se de um parâmetro para conceituar a arte” (SANTOS, 2018, p. 64). [5] Ver em: LUKÁCS, György. Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels. In: Arte e Sociedade. (Orgs). José Paulo Netto e Carlos Nelson Coutinho: UFRJ, 2011. Ao citarmos o livro (Lukács, 2011), é deste ensaio pelo qual estaremos referindo-se aqui. [6]Ainda que não seja a intenção abarcar todos os elementos ainda idealistas-hegelianos, julgamos correto trazer essas inferências para que o leitor disponha de maior panorama da evolução lukácsiana. 10 Segundo Tertulian: “Lukács se dedica a estabelecer como toda uma série de traços, que, nas produções da atividade estética, aparecem amplificados, atacados, algumas vezes invertidos, podem encontrar-se em estado germinativo, fundidos em um magma indiferenciado, na vida e no pensamento cotidianos” (Tertulian, 2008, p. 204).
- A luta democrática no Brasil hoje: uma breve nota
Por Pedro Badô O acontecimento deste último domingo (08/01) decantou rapidamente o pesadelo daqueles que acreditavam que a eleição de Lula traria de volta o tranquilo Brasil das primeiras décadas deste século. A quebradeira em Brasília relembrou a alguns aquilo que preferiam esquecer. A chamada "frente ampla" ao redor de Lula uniu diferentes – e inconciliáveis – interesses. O povão e as camadas médias lulistas – estas últimas com seus valores legitimamente progressistas e com suas ilusões liberais – votaram pela melhoria de suas condições de vida. Já os mais relevantes setores do grande capital que apoiaram a chapa Lula-Alckmin, estavam mais interessados na estabilidade que o novo governo poderia proporcionar. A candidatura de Lula encarnou um certo conservantismo frente ao caos trazido à tona pelo governo Bolsonaro. Lula não precisou prometer nada de muito novo, a não ser o resgate do modelo da Nova República que havia sido rompido pelo impedimento de Dilma. Frente ao quiproquó que o capital criou para si – provavelmente seus gestores não tinham plena consciência de que a coisa chegaria ao ponto em que chegou –, o novo governo do PT só precisaria recomeçar do ponto em que a história da Nova República foi interrompida. Seria necessário, portanto, não mais que passar uma borracha no governo de Temer e de Bolsonaro, para, em seguida, colocar o futuro para caminhar novamente naquela segura estrada criada pela Constituição de 1988. Entretanto, está cada dia mais claro que não é possível simplesmente retomar o fio da meada, agir como se não tivessem ocorrido mudanças sociais profundas nestes últimos anos. Não é assim que a vida real funciona. A complexa dinâmica do atual modo de produção capitalista no Brasil e no mundo criou o bolsonarismo, essa força social pungente. Há importantes setores de uma pequena e média burguesia engajada na luta política, que conta também com uma tropa de choque bem disposta. Com toda certeza, veremos nomes de empresários catarinenses, paranaenses, paulistas, mato-grossenses e amazonenses envolvidos com os últimos acontecimentos. Donos de transportadoras, produtores de soja, donos de postos de gasolina no norte do país, madeireiros e garimpeiros terão seus CPFs e CNPJs revelados. Militares e policiais aposentados, idosos solitários, membros de seitas católicas, pastorecos e maluquinhos de igreja, grupelhos masculinistas e senhoras à espera do apocalipse gay estarão nas listas de passageiros dos ônibus fretados para Brasília. No entanto, o que nos interessa mais exatamente é a disposição para a chamada luta democrática que o ataque bolsonarista gerou entre muitos setores sociais. Para isso, em primeiro lugar, deve-se compreender que aqueles interesses inconciliáveis que formaram a "frente ampla" de 2022 só poderiam tomar uma forma abstrata de "defesa da democracia". Entretanto, poucos compromissos verdadeiramente democráticos foram assumidos até agora. No derradeiro dia da posse de Lula, foi a plateia quem pautou a única palavra de ordem democrática: "Sem anistia!". Vejam, não estamos falando ainda de uma revolução socialista. Mesmo se nos colocarmos no estreito antro da democracia burguesa, as únicas e verdadeiras posições democráticas possíveis de serem defendidas no Brasil de hoje, estão completamente fora de questão. E não que tenhamos alguma ilusão com o regime democrático da burguesia ou alguma grande esperança de democratizar verdadeiramente o cotidiano da classe trabalhadora sem uma revolução social. Mas se o objetivo é defender a tal democracia, sejamos, como afirma Lênin – claro que em outro contexto histórico –, "democratas consequentes". Levemos a democracia até suas últimas consequências. Até agora, não vimos nenhum compromisso do Presidente de Lula em utilizar sua influência política para pautar o fim da Polícia Militar, a principal instituição responsável por perpretar o genocídio da população negra no país. Esta seria uma verdadeira posição democrática. Os marxista brasileiro devem não apenas propor o fim imediato das PMs, como devem defender a imediata implementação de comitês de autodefesa nas favelas, bem como comitês de autoproteção dos territórios indígenas. Comitês municiados e geridos pela própria população local. Um governo verdadeiramente democrático deveria posicionar-se imediata e favoravelmente aos gritos de "Sem anistia!", afirmando sua dedicação não apenas em punir a insubordinação militar vista nos últimos anos, mas também levar até o fim as punições pelos crimes da ditadura de 1964. Deveríamos estar falando de mudança nos currículos das escolas militares e em uma execração pública de generais como Heleno e Braga Neto. Está mais que evidente a sanha golpista dessa gente. Se não deram um golpe de Estado agora foi porque não encontraram condições favoráveis. O próprio general Mourão admitiu isso em rede nacional. Além do mais, desde a proclamação da República em 1889, as cúpulas militares dedicam seu ocioso tempo a avaliar o momento oportuno para efetivar ou para adiar mais um pouco seus golpes e quarteladas. Lula, no entanto, já deu seu sinal de covardia e conciliação. Nomeou José Múcio, uma babá de generais, como para o Ministério da Defesa. Temos também questões democráticas urgentíssimas para serem resolvidas a respeito das condições de vida da população LGBTQIA+, tal como terem atendidas imediatamente suas necessidades básicas de moradia, emprego e saúde especializada no SUS. Se nós, marxistas, pretendemos disputar a disposição de luta por democracia que desponta agora, não devemos nos envergonhar de defender nossas pautas históricas a esse respeito. Devemos reivindicar também a imediata redução dos salários e vencimentos das cúpulas do Judiciário, de deputados e senadores, do comando das Forças Armadas, do presidente da República e de seus ministros. Devemos exigir eleições diretas para juízes, magistrados e outros cargos da burocracia do Estado. Se queremos aproveitar o momento – partir das condições que não escolhemos, mas que se impõem para nós –, a diferença que Lênin faz entre reivindicações liberais e reivindicações democráticas é fundamental. Enquanto o liberalismo prega o abstrato e cínico funcionamento das instituições, todas lá em Brasília, regidas pelo sacrossanto Direito e distante das massas, uma posição democrática defende uma intervenção direta das massas nas instâncias políticas e burocráticas. Evidentemente, qualquer marxista escolheria estar agora vivendo uma batalha decisiva e derradeira pelo comunismo. Mas se é a comoção pela "democracia" que está na pauta do dia, é hora de lembrar novamente Lênin: as pautas democráticas não estão separadas das pautas revolucionárias por uma "muralha da China". É preciso saber fazer as conexões entre elas, dar um encaminhamento verdadeiramente revolucionário. É preciso atrair as massas populares para a ação através da luta por melhores condições de vida. Afinal, é só essa força social que pode não apenas resistir à sanha golpista, mas também transformar as reivindicações democráticas em luta revolucionária pelo socialismo. É preciso saber formular de modo apropriado as palavras de ordem e a agitação política para este momento. Como já dissemos, o fim das PMs e o combate direto da opressão que o Estado exerce sobre a população trabalhadora brasileira – majoritariamente negra – tem tudo para tornar-se uma pauta explosiva. Afinal, como poderia uma massa gigantesca de pessoas não estar exausta de viver espremida, agredida e caçada em seus próprios bairros? Devemos saber dar encaminhamento a isso, mostrar a essa massa humana que vive em desgraça, como não só a burguesia, mas também a cúpula da burocracia estatal vive bem e torra um montanha de recursos. Assim como Lênin, em seu O Estado e a revolução, não devemos ter medo de ser acusado de simplórios e democratistas – tal qual faziam os kautskistas – por falar na destruição do Estado e de sua custosa burocracia, por propor que aqueles que ocupam cargos públicos recebam salários equivalentes ao de um trabalhador comum. Devemos mostrar como isso economiza energia e recursos sociais e como isso é um passo fundamental para pôr fim a exploração humana.
- Intelectualidade e luta de classes: uma crítica à postura tuísta - parte 2
por Vera Cotrim Nota introdutória - segunda parte - da Revista Barravento Nesta segunda parte do artigo da professora Vera Cotrim, vemos uma análise muito detida, embora relativamente extensa, da produção intelectual dos ideólogos do capitalismo. Em outros termos, a dita “classe intelectual”, atuante como testa de ferro da legitimação da divisão social do trabalho; da cisão entre produtores e produto (intelectualidade e “povo”). Os autores criticados por Cotrim, balizando-se pela peça brechtiana, mostra não apenas sua atualidade, mas também proporciona-nos uma reflexão da sátira da peça. Muito mais que uma caricatura, é sintoma de nossa tragédia moderna que configura a sociedade alienada pelo Capital. Muitos intelectuais que, nos dias atuais, se colocam como críticos, mas que usam dessas alcunhas para adornar as profundas fissuras sociais postas pelo modo de produção; deixando também intactas alternativas que rompam, pois do contrário, é esse tipo social que os mantêm seus empregos e status de “pensadores”. Em resumo, ainda que diagnósticos críticos possam ser válidos, o que se critica as posturas dominantes de hoje é que essa suposta “classe intelectual” (curiosamente cada vez mais diluída pela subsunção dos trabalho formal e na precarização), cujo ímpeto estar em ser contra o “neoliberalismo”, e não contra a subsunção formal do proletariado à forma valor e ao sobre-trabalho; se põem contra o “neoliberalismo”, e não contra a propriedade privada dos meios de produção; são contra o “neoliberalismo”, e não contra o Estado Burguês e nem da abolição do assalariamento ( bem como da família patriarcal e estratos sociais). Convidamos os leitores e as leitoras ao texto, cujo conteúdo foi exposto nesta segunda parte pela professora Vera Cotrim com uma análise de fôlego. Utilizando das referências que dão fluidez textual necessária, traz consigo um vasto conhecimento daquilo que se debate, e também salientando o papel da crítica teatral e artística em nosso tempo. 1. As soluções 2.1. Os discursos dos tuis Dos muitos que se dispõem a falar no congresso das lavadeiras, Brecht nos brinda com três respostas que os tuis oferecem na Grande Conferência para explicar ao povo o paradeiro do algodão que todos sabem onde está. O primeiro tui que discursa para convencer o povo de que o império, tanto o chinês como o de algodão, nada têm a ver com o desaparecimento dessa importante matéria prima, culpa as vicissitudes da natureza e assim termina seu discurso: Nós, intelectuais, em geral nos recusamos a formular argumentos simplistas, pois soam rasos, superficiais. Muito bem. Eu não vou me recusar. Onde foi parar o algodão? Eis aqui minha resposta irrebatível: foi uma safra ruim! (...) Em suma, não há algodão simplesmente porque o algodão não vingou (Ki Leh, reitor da Universidade Imperial. BRECHT, 1993, p. 141) Como parte do povo ali presente é camponês, e sabe que as safras foram abundantes; como o próprio Sen, camponês que veio estudar na cidade, teve seu algodão confiscado, o discurso foi um fiasco e Ki Leh teve sua cabeça cortada. Outro tui, Hi Wei, responde que o algodão desapareceu no transporte. Argumenta que, durante o regime desta casa imperial, a cultura se desenvolveu tanto que as pessoas passaram a utilizar muito mais algodão. Assim, são as crescentes exigências culturais de um povo em progresso que tornaram o algodão exíguo, já que a demanda ampliou. Com isso, o algodão não pôde chegar a Pequim. Sua proposta para enfrentar a crise do algodão é lançar mão de uma matéria prima alternativa para confeccionar as roupas: o papel. De fato, antes de seu discurso, ele presenteia Turandot com um vestido de papel enfeitado com poemas. E alardeia o grande privilégio de utilizar material tão nobre. Esse produto, nem é preciso dizer, tornou-se ilustre porque é o material de “nossos pensadores e poetas” (BRECHT, 1993, p. 147). Mas uma voz da plateia ironiza: “E que se proíba a chuva!”. O tui fica completamente desmoralizado e é levado. Turandot lamenta ter sido motivo de chacota. Munka Du, o terceiro tui que ouvimos dentre os muitos que falaram e foram malsucedidos, faz um ardiloso raciocínio em que transforma paulatinamente a pergunta e acaba por exigir a resignação do povo, como forma de ampliar a “liberdade interior”: Permitam-me que já não fale do algodão, mas sim das virtudes que um povo precisa ter para passar sem algodão. A questão não é “onde está o algodão?”, mas “Onde estão as virtudes?” Onde foi parar o sereno desprendimento, a legendária paciência com que o povo chinês tem sabido suportar seus incontáveis sofrimentos? A eterna fome, o trabalho desgastante, o rigor das leis? Tudo isso era a liberdade interior. (BRECHT, 1993, p. 153) Durante todo o congresso, além dos tuis serem punidos, muitos agitadores estão sendo detidos e executados. Panfletos proibidos continuam aparecendo. Por isso, Munka Du busca desmoralizar a Kai Ho, a quem se dirige impessoalmente: “o que você fez com a liberdade? A todos você escraviza. Você exige que todos clamem só por algodão, como se não houvesse nada melhor” (BRECHT, 1993, p. 153). Ao que uma voz da audiência retruca: “Isto é, a seda”. E assim Munka Du é desmoralizado e levado. Os argumentos tuis são velhos conhecidos. O primeiro deles apela ao falseamento da produção, sustentando a escassez de bens. Trata-se do clássico discurso liberal que afirma a necessidade de fazer o bolo crescer antes de ser dividido. A escassez é um pressuposto inescapável do neoliberalismo. Não à toa, a disciplina de economia é definida como a ciência da alocação de recursos escassos. Daí a inexistência, na teoria autodenominada de neoclássica, de explicações sobre a superprodução de capital; daí sua visão das crises econômicas como externalidades: esse fenômeno precisa desaparecer dos modelos econômicos. O segundo tui também apresenta um argumento bastante presente nas atuais esferas de poder. Trata-se da afirmação de que a carência sentida atualmente resulta do progresso cultural do povo. É porque estamos avançando que as pessoas passam a sentir novas necessidades. Aqui no Brasil, por exemplo, ouvimos como resposta do governo às manifestações de 2013 que “o povo quer mais, e está certo, mas é preciso esperar”. Daí ao “precisamos fazer sacrifícios para superar a crise” é um passo que, em nosso caso nacional, foi dado. Nenhum desses argumentos clássicos, contudo, será aproveitado pelos pensadores franceses que ora examinamos, (embora o silêncio sobre as crises capitalistas também grite na obra de Thomas Piketty), e menos ainda por David Harvey. Eles não buscam justificar este modo de vida, mas fazer uma oposição a ele, e assim falam a partir do ponto de vista da maioria, do coletivo, do comum, dos explorados. Já o caráter idealista e voluntarista presente no terceiro argumento aparecerá no pensamento deles, embora com uma sutileza que a peça teatral não tem. Além desse contexto em que um tui responde à necessidade de convencer o povo a resignar-se identificando virtude com obediência racional que mortifica o corpo, a peça traz a figuração do traço idealista comum ao conjunto das divergências tuis em outra cena. Trata-se de uma aula de filosofia, que o camponês Sen assiste ao fazer uma visita à escola. Fica claro aqui o fundamento do pensamento tui em geral: o idealismo é necessário para a sustentação da classe intelectual. Vale transcrever o diálogo entre aluno e professor que o velho ouve embasbacado: Professor – Si Fu, enumere as principais questões da Filosofia. Si Fu – As coisas existem fora de nós, por elas mesmas e mesmo sem nós, ou as coisas existem dentro de nós, por nós, e nunca sem nós. Professor – Qual a opinião certa? Si Fu – Ainda não se chegou a nenhuma conclusão. Professor – Em que direção se inclina a opinião da maioria dos nossos filósofos? Si Fu – As coisas existem fora de nós, por si e mesmo sem nós. Professor – Por que esta questão ficou sem resposta? Si Fu – O congresso que deveria decidir realizou-se, como acontece há duzentos anos, no mosteiro de Mi Sang, situado às margens do Rio Amarelo. A questão era: “o Rio Amarelo existe realmente, ou ele só existe na nossa cabeça?” Infelizmente, enquanto se realizava o congresso houve um grande degelo nas montanhas e o Rio Amarelo transbordou, carregando com ele o mosteiro de Mi Sang e todos os congressistas. E assim a noção de que as coisas existem fora de nós, por elas mesmas e sem nós, não chegou a ser demonstrada. (BRECHT, 1993, p. 130) O velho camponês observa: “Mas o rio Amarelo existe de fato”, ao que o guia responde que o difícil é provar. Quando a evidência empírica e o efeito prático das forças que atuam no mundo (o rio possibilita o trabalho de Sen na plantação de algodão) são excluídos do escopo da prova científica, fica tão difícil provar a existência de um rio quanto a existência de Deus. Mas, mais do que isso, opera-se uma separação entre ciência e prática que coaduna com a divisão entre atividade material e atividade intelectual em classe distintas de indivíduos. Por um lado, a superioridade do trabalho intelectual frente ao material seria ela mesma questionada se trabalho prático servisse de prova ao pensamento. Por outro lado, sua independência efetiva em relação à atividade material, o fato de que se desenvolve em uma classe especial, confere uma aparência não apenas de autonomia do pensamento, mas de prioridade: se o intelecto é superior ao corpo, é o pensamento que põe a matéria, e não o contrário. Assim, o próprio pensamento se torna o objeto mais digno, o objeto por excelência da atividade intelectual. A coisa da lógica se impõe sobre a lógica da coisa do mesmo modo que superioridade da classe intelectual impõe a concepção da prioridade ontológica da consciência sobre o ser consciente. Marx e Engels escrevem: Se, em toda ideologia [citam a moral, a religião, a metafisica - VC], os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmara escura, este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida (...). (...) as formações nebulosas na cabeça dos homens são sublimações necessárias de seu processo de vida material, processo empiricamente constatável e ligado a pressupostos materiais. (...) A filosofia autônoma perde, com a exposição da realidade, seu meio de existência. (MARX; ENGELS, 2007, pp. 94-95) A autonomia real da atividade do pensamento, dada pela divisão social do trabalho ou separação da sociedade em classes, é o que está na base da inversão idealista do pensamento. Essa inversão se sustenta ideologicamente pela cisão entre corpo e espírito, o caráter elevado deste frente ao aviltamento daquele. Assim, o privilégio de classe é o conteúdo último das ideias desenvolvidas por essa classe. Na peça, o retrato da ridícula vaidade dos tuis, seu afeto central, não é apenas um recurso que Brecht utiliza para condená-los moralmente, mas expressa a finalidade que os guia: vencer a concorrência pelas posições privilegiadas. Essa concepção que não enxerga um horizonte para além da divisão entre trabalho intelectual e trabalho material perpassa a concepção de nossos pensadores franceses. Eles têm de se opor à barbárie do capitalismo contemporâneo sem que uma esfera dessa configuração social seja abordada. Deve restar incompleta aquela exposição da realidade a que se refere Marx, e para isso os autores recusam o caráter de totalidade da vida social. Recusa-se, deste modo, suas leis próprias, e a inversão idealista deve então fazer seu papel para conferir unidade àquilo que antes fora feito em migalhas, sem deixar de preservar a especialidade da classe intelectual. Assim, o conteúdo crítico de nossos autores não se assemelha ao dos discursos tuis, mas sua postura, sim. 2.2. A robinsonada de Thomas Piketty Piketty declara-se um membro da classe intelectual. Na divisão social do trabalho, cumpre seu papel de produzir e divulgar o conhecimento, um saber que, por seu caráter naturalmente desinteressado e neutro, não tem partido: “Que fique claro: minha proposta aqui não é defender os trabalhadores em qualquer desavença com seus patrões, mas ajudar todos a ter uma visão clara da realidade” (PIKETTY, 2014, p. 49). A partir dessa visão clara e distinta da realidade, Piketty constrói sua proposta para superar a desigualdade que prejudica a todos, e construir o bem comum. O problema que busca enfrentar é a obscena concentração de riqueza a que chegamos e que constitui a injustiça social. Aponta a causa desta concentração em uma lei econômica, a única que reconhece: a acumulação de capital caminha num ritmo mais acelerado que o crescimento econômico, ou seja, a parte da riqueza que se transforma em capital é sempre maior que o aumento da produção de riqueza em dado intervalo de tempo[1]. Isto posto, torna-se necessário criar mecanismos de distribuição de riqueza que contrariam a natureza da economia, conferindo limites a seu impulso espontâneo. Esses mecanismos só podem ser, portanto, políticos. Propostas políticas de redistribuição de riqueza que não tocam no sistema produtivo, mas buscam distribuir de modo menos desigual os produtos socialmente criados sem afetar a distribuição dos próprios seres humanos em diferentes classes sociais e atividades, isto é, na divisão do trabalho, são formuladas desde a segunda metade do século XIX. Também desde lá foram criticadas por Marx e Engels. Ideias como a igualdade salarial para todas as funções, como queria Proudhon e Düring, ou a defesa lassaliana do direito ao produto integral do trabalho, ou ainda as cooperativas owenistas foram abordadas por Marx e Engels à luz da imensa diferença que existe entre o planejamento coletivo e consciente da produção cuja medida são as múltiplas necessidades humanas e a produção mercantil descontrolada, que impõe a mediação alienante do valor e sua desmedida em relações sociais determinadas pela concorrência. A finalidade revolucionária em Marx e Engels obedece à perspectiva de superação da divisão do trabalho, tanto porque esta priva os indivíduos da apropriação do mundo social criado e transforma a atividade produtiva em meio de vida, quanto porque a extrema especialização das atividades condena a todos à unilateralidade. Essa unilateralidade não é vista como problema por vários intelectuais críticos que buscam resguardar os privilégios próprios a esta elite da classe trabalhadora: estar liberada do trabalho material, que cabe a outrem. Engels faz precisamente a denúncia dessa defesa da divisão do trabalho, associada à piedosa exortação pela igualdade salarial, que há muito caracteriza a intelectualidade crítica: É claro que o modo tradicional de pensar das classes cultas, herdado pelo Sr. Dühring, tem que considerar, necessariamente, como uma monstruosidade, que chegue o dia em que não existam mais carregadores e arquitetos de profissão, e no qual o homem, que passou uma meia hora dando instruções, como arquiteto, tem que servir durante algum tempo como carregador, até que seus serviços de arquiteto voltem a ser necessários. Para se eternizar a categoria dos carregadores de profissão não era preciso o socialismo! (ENGELS, 1971, p. 251) Piketty retorna a esse tipo de proposta em um momento em que o capitalismo, tendo alcançado a quase completa hegemonia no globo terrestre, funciona, em meio à estagnação econômica, com base na violência estatal e na regressividade social. Suas proposições, deste modo, ganham não apenas uma visada ridícula, dado o contraste entre o caráter extremo e violento das contradições sociais e o suave percurso de efetivação das soluções, como precisam negar e ignorar leis objetivas há muito descobertas, de sorte que aquela realidade que ele pretende tornar clara para todos tem de sofrer amputações. Do mesmo modo, a lógica da coisa tem de se perverter, ou ser sumariamente abandonada, para acolher afirmações incongruentes. Uma vez que é da natureza da produção capitalista a concentração da riqueza, Piketty propõe sua distribuição por meio de impostos sobre lucro, herança e fluxos de capital que poderiam chegar a taxas de 90%[2]. Essa taxação seria efetivada por órgãos políticos supranacionais, em associação com os estados, e então redistribuída. Uma das formas dessa redistribuição poderia ser uma herança estatal para todos os indivíduos que alcançassem certa idade. Deste modo, a igualdade de oportunidades seria real e a concorrência, justa. O cerne de sua proposta é produzir, por meio da política e suas instituições, uma fragmentação do capital. Em entrevista, ele explica: O objetivo é fazer circular a propriedade, permitir que todo mundo tenha acesso a ela. O imposto sobre a propriedade permitiria financiar uma herança de 120.000 euros para todos aos 25 anos. Hoje, metade da população não tem patrimônio. (...) Quero uma sociedade em que todo mundo possa ter algumas centenas de milhares de euros e na qual alguns que criam empresas e têm sucesso tenham alguns milhões de euros, talvez algumas vezes dezenas de milhões de euros. Mas, francamente, ter várias centenas ou bilhões não me parece que contribua para o interesse geral.[3] Essa tributação faria com que a propriedade do capital se tornasse temporal: tão logo o capital se centralizasse para além de certos limites, seria parcialmente expropriado pela tributação. Existe, para Piketty, um interesse geral que deve ser atendido antes da satisfação dos interesses singulares, que nesta passagem aparecem exemplificados com a posse individual de centenas de milhões ou de bilhões de euros. Deixemos aqui anotado que a oposição entre o interesse geral e os interesses privados, tão característica do pensamento moderno, liberal, permanece intocada em seu ideário. A fragmentação do grande capital em pequenos capitais individuais não é o único meio sugerido pelo autor para enfrentar as injustiças econômicas. Também a participação política dos empregados na direção das empresas pode ser um meio para desviar parcialmente as finalidades das companhias. O autor escreve, em Capital e ideologia: Por uma parte a desconcentração do capital através da fiscalidade progressiva (imposto progressivo), a dotação de capital e a circulação de bens (...) pode facilitar que os empregados adquiram ações de sua empresa e resultam determinantes para conformar uma maioria (acrescentando os votos que o corresponderiam como acionistas à metade que os corresponde como empregados). Por outro lado, as normas que vinculam os aportes de capital e o direito de voto devem ser repensadas. Se alguém investe todos seus fundos em um projeto que o apaixona, não é absurdo que disponha de mais votos que um empregado recém-contratado que, talvez, inclusive se dispõe a poupar dinheiro para colocar em marcha seu próprio projeto (PIKETTY, 2019, p.1153 apud RAUBER, 2020). Desconcentração de capital e limitação do poder dos grandes acionistas são os meios “de superar o capitalismo através da propriedade social e a divisão de poder” (PIKETTY, 2019, p.1155 apud RAUBER, 2020). Primeiro, há que se situar os termos utilizados: superar o capitalismo e estabelecer o “socialismo participativo” é na verdade, recriar a propriedade privada individual como pequena propriedade e a livre concorrência. O economista francês idealiza uma sociedade mercantil que não se desenvolva em sociedade plenamente capitalista, ou seja, uma preservação do indivíduo privado, mas posta de acordo com seus próprios princípios morais de justiça e equidade, de modo a realizar-se a justa concorrência entre adversários que portam condições equânimes. Fica assim facultado ao indivíduo escolher entre empenhar-se em criar uma empresa e acumular “alguns milhões”, ou trabalhar como assalariado, tendo renda menor, mas usando seu tempo livre para projetos ou prazeres pessoais. Em suma, uma sociedade da livre escolha individual, que distribui sua riqueza conforme o mérito e o esforço, e em que a concentração da propriedade é limitada pelo interesse geral: A questão é qual capitalismo. A lição da história é que a propriedade privada é útil para o desenvolvimento econômico, mas unicamente se for equilibrada com outros direitos: os dos assalariados, dos consumidores, das diferentes partes. Eu digo sim à propriedade privada, desde que se mantenha no razoável.[4] Assim, o socialismo participativo se torna o bom capitalismo, em que é possível ao trabalhador comprar ações da empresa onde trabalha e se tornar capitalista. Esse horizonte de justiça e liberdade individual data do século XVII, é hegemônico na filosofia do XVIII, e corresponde aos princípios do liberalismo expostos por John Locke, Adam Smith, Jean-Jacques Rousseau. Condiz também com a concepção liberal mais ampla de ser humano e de indivíduo. Os traços comuns à concepção desses diferentes pensadores modernos podem ser sintetizados na concepção de que a sociedade é posterior ao indivíduo, de sorte que este carrega a natureza do ser humano antes de qualquer associação, assentando a sociedade na relação de contrato, forma absoluta da civilidade. Esta relação contratual caracteriza tanto a esfera econômica como a esfera política, e inclusive a esfera familiar, já que os casamentos, como a troca de bens e a república, são contratos. Define, ademais, a liberdade, identificada à escolha – de fechar ou não um contrato de compra e venda, de prestação de serviço, de colaboração mútua, de compartilhar um corpo político ou uma casa. O interesse privado é assim naturalizado, e a relação social posta como oposição, concorrência. A relação competitiva é também abordada por Piketty, senão como natural, nos termos da troca justa e do diálogo racional, de sorte que não há incompatibilidade entre concorrência e bem comum. Ao contrário, ela é favorável àqueles indivíduos que perspectivam “colocar em marcha seu próprio projeto” econômico, caso o interesse geral seja posto em primeiro plano e o interesse privado, a ele subordinado. Para nosso autor, a perspectiva futura da transformação social está no passado: “O objetivo é voltar a um nível de concentração da fortuna que era mais ou menos o dos anos sessenta, setenta ou oitenta nos Estados Unidos e na Europa”[5]. Neste período, “Entre os anos 1950 e 1970, os Estados Unidos passaram pela fase mais igualitária de sua história: o décimo superior da hierarquia de rendas detinha cerca de 30- 35% da renda nacional americana (...)” (PIKETTY, 2014, p. 369). É esse seu horizonte moral de justiça. A finalidade da produção também não sofreria nenhuma alteração importante. O crescimento da produtividade do trabalho se mantém a meta da produção e, de acordo com Piketty, seria favorecida pela pequena propriedade individual: “Quando se oferece às pessoas a possibilidade de trabalhar a terra para si mesmas, a produtividade melhora. O mesmo se aplica em geral”[6]. É curioso que um economista deixe de considerar a concorrência entre trabalhadores que, por meio de sistemas como o salário por peça, o toytotismo, e todas as formas de precarização que dissolvem os vínculos trabalhistas, fazem deles seus próprios capatazes, ampliando a produtividade mesmo que trabalhe para outrem. Além disso, a produtividade do trabalho aparece como dependente do empenho do produtor individual, e não da tecnologia envolvida na produção, que dita o ritmo da produção. Ao lado do aumento da produtividade, também faz parte dos fins a que se voltam a proposta de Piketty o caráter individual, e portanto descoordenado, dos projetos econômicos: “A propriedade privada é um bom sistema para coordenar as ações individuais e permitir que cada um realize seus projetos, com uma condição: que haja acesso à propriedade.” Assim, ele oculta a relação necessária entre propriedade privada e privação de propriedade. O horizonte social do economista, restringindo o ser humano ao indivíduo privado e as relações sociais como concorrenciais, não alcança para além da divisão social do trabalho e da consequente produção intelectual como especialidade de uma classe singular. Visa a uma sociedade que perpetua o “carregador de profissão” e o arquiteto horrorizado diante da atividade material e da ameaça às hierarquias. Os limites humanos de seu projeto político se manifestam nos problemas de sua análise econômica. Particularmente, de sua compreensão da relação entre mercado e capital. Para que uma sociedade exista como um mercado, é necessário que as pessoas sejam livres para comprar e vender: uma sociedade escravista, por exemplo, não pode transformar a massa de sua população em compradores e vendedores. Para que o conjunto de uma população seja juridicamente livre, é necessária a ruptura dos vínculos com a terra e a com a comunidade, ou seja, os processos de expropriação. Do outro lado da expropriação está, necessariamente, a apropriação privada da riqueza produzida, que a concentra. Tão logo uma sociedade apresente como relação social primordial a troca e a concorrência, trata-se de sociedade capitalista. A extrema concentração de riqueza não é apenas um resultado do capital, mas seu pressuposto: a produção de capital parte, historicamente, da acumulação das fortunas mercantis, que estabelecem a produção capitalista de mercadorias para atender ao mercado internacional. Foi necessário um longo processo de expropriação e concentração de riqueza para que a produção de mercadorias se generalizasse, já na forma da grande indústria capitalista. Assim, uma sociedade estritamente mercantil, em que as famílias produtoras trocam seus produtos no mercado, nunca existiu. Vale ressaltar ainda que a definição marxiana de capital como valor que se valoriza[7], próprio a uma determinada relação social de produção, é estranha a Piketty. O autor d’O Capital no século XXI assume o conceito de capital dos economistas clássicos, para quem essa categoria econômica é sinônimo de stock. Com a identificação entre capital e recurso material, a forma capitalista, que reproduz esses recursos com a finalidade da acumulação de riqueza abstrata, valor, é contrabandeada para a natureza das coisas. Piketty escreve: “Para simplificar, usaremos as palavras “capital”, “riqueza” e “patrimônio” de forma intercambiável, como se fossem sinônimos perfeitos” (PIKETTY, 2014, p. 56). Naturaliza-se assim uma forma específica e histórica das relações sociais. Também Adam Smith e David Ricardo utilizam os termos capital e stock como sinônimos, identificando qualquer meio de produção, da lança do “selvagem” ao sistema de máquinas, ao capital. Ricardo escreve: “Mesmo no estágio primitivo ao qual se refere Adam Smith, algum capital, embora possivelmente fabricado e acumulado pelo próprio caçador, seria necessário para capacitá-lo a matar sua presa. Sem uma arma, nem o castor nem o gamo poderia ser morto” (Ricardo, 1996, pp. 30-1). Se esse limite científico foi necessário à economia política moderna, que pensava as relações econômicas da perspectiva da burguesia em ascensão, e não conhecia a dialética e menos ainda o materialismo histórico, posição intelectual que apenas pode se desenvolver a partir da perspectiva da classe trabalhadora, não há como justificá-lo em um autor que pensa o século XXI. A compreensão das categorias marxianas fica difícil para um economista que, como afirma David Harvey, “sempre clamou, diante das acusações da mídia de direita de que é um marxista disfarçado, que não leu O capital de Marx”[8]. A acusação de marxista cultural, seja na França atual ou na China mítica de Brecht, não poupa os antimarxistas. Como o capital é de fato a relação que põe a produção social a serviço da acumulação privada, seu impulso necessário é a redução dos custos de produção. Por isso, economizar é sua divisa. Uma empresa capitalista pode lançar mão de diferentes meios para reduzir seus custos. A diminuição dos salários, o aumento da duração da jornada de trabalho, a ampliação da intensidade do trabalho por meio de acúmulo de funções, o sistema de salário por peça. Estas são formas de reduzir o custo com o trabalho e tornam-se possíveis quando se acirra a concorrência entre os trabalhadores e quando estes não estão organizados para enfrentar o capital como classe. Neste sentido, um expediente que foi utilizado pelos grandes capitais desde o fim da guerra fria é o transplante de plantas produtivas para países em que a força de trabalho é mais barata. Outro meio central para a redução de custos é o aumento da produtividade do trabalho, que permite a substituição de parte da força de trabalho por máquinas, isto é, a progresso da automação da produção. Ampliar a produtividade do trabalho implica a expansão da escala da produção que, por sua vez, gera um processo de monopolização. Esse movimento de concentração dos mercados se expressa no aprofundamento da divisão internacional do trabalho. Quando dois ou três países, quatro ou cinco empresas produzem determinada espécie de mercadoria para o consumo planetário, isso significa que se alcançou um nível de produtividade do trabalho que impede a emergência de concorrentes, isto é, uma escala de produção e um patamar de monopolização que se sustenta pelo tamanho do capital investido e torna impraticável a formação paralela de um capital com condições de concorrer. Capitais menores são atraídos muito mais para compor o monopólio na forma de compra de ações, por exemplo, do que para constituir concorrência. Por que não vemos aparecer pequenos produtores de aparelhos celulares em todos os países, mas, ao contrário encontramos em toda parte, da Palestina à China, aos EUA ao Vietnã, as mesmas marcas? Por razões evidentes: a pequena produção envolveria custo de produção da mercadoria unitária muito mais elevado. O que quer dizer: a produtividade do trabalho nesta empresa seria muito mais baixa. Essa relação necessária entre a extensão da socialização da produção (escala produtiva), por um lado, e o nível de desenvolvimento da produtividade do trabalho e da divisão do trabalho, por outro, é conhecida desde Adam Smith: “(...) a invenção de todas essas máquinas que tanto facilitam e abreviam o trabalho parece dever-se originalmente à divisão do trabalho” (Smith, 2003, p. 13). Que à divisão do trabalho e ao aumento da produtividade que dela decorre corresponde a ampliação da escala da produção, expressa pela extensão do mercado, Smith o demonstra com o seguinte exemplo: Seria impossível que mesmo a forja de pregos pudesse existir como ofício nas remotas regiões interiores das Terras Altas da Escócia. Um operário com esse ofício, à média de mil pregos por dia, e trezentos dias de trabalho por ano, produzirá trezentos mil pregos por ano. Mas nessa localidade seria impossível vender mil pregos, isto é, a produção de um dia de trabalho”. (Smith, 2003, p. 24) Essa relação vale não apenas para o setor produtivo, mas também para a esfera mercantil – aos capitais comerciais e financeiros. No caso do comércio, os custos de realização do valor criado por múltiplos capitais produtivos é reduzido tanto pela autonomização do capital comercial, quanto por sua concentração. Sobre esta autonomização, que concentra as atividades comerciais de um conjunto de indústrias em um capital comercial, Marx escreve: À medida que contribui para encurtar o tempo de circulação, pode ajudar a aumentar indiretamente a mais-valia produzida pelo capital industrial. À medida que ajuda a ampliar o mercado e medeia a divisão do trabalho entre os capitais, portanto capacita o capital a trabalhar em escala mais ampla, sua função promove a produtividade do capital industrial e sua acumulação. À medida que encurta o tempo de circulação, eleva a proporão de mais-valia para o capital adiantado, portanto a taxa de lucro. À medida em que reduz a parte do capital confinada na esfera da circulação, faz aumentar a parte do capital diretamente empregada na produção. (Marx, 1985-1986, C, III, vol. IV, pp. 211-12) Do mesmo modo que o capital comercial consiste na vantajosa autonomia da figura do capital-mercadoria do conjunto do capital produtivo, é também a autonomização da figura do capital-dinheiro e suas funções técnicas que cria o capital financeiro. Além da economia de custos na efetivação dos pagamentos e dos movimentos necessários do dinheiro, esta autonomização permite concentrar a reserva monetária do conjunto dos capitais (e mais a renda do trabalho). Essa concentração da reserva monetária social permite a ampliação da escala de investimentos possíveis, como, por exemplo, os bélicos, e garante a esta esfera um direito sobre o mais-valor criado pelo trabalho produtivo, que não comanda diretamente, por meio de sua aplicação a juros. É uma particularidade do neoliberalismo a função de juros passar a caracterizar os capitas investidos diretamente na produção e no comércio, quando se tornam acionários, e como afirma Marx, a mera existência do capital a juros confere a todos os capitais a capacidade de render juros. O desenvolvimento necessário do sistema de crédito e a centralização do capital financeiro confere a este um relativo domínio da produção da circulação globais. É conhecido o estudo de Lenin, escrito em 1916, sobre a centralização dos capitais dos bancos e a formação das oligarquias financeiras, que são a base material do imperialismo, forma plenamente capitalista da dominação internacional, que supera a colonização direta[9]. Lenin reuniu dados que mostram a extrema centralização do capital financeiro na Inglaterra, na França, na Alemanha e nos EUA no ano de 1910: “Os quatro juntos têm 479 bilhões de francos, isto é, cerca de 80% do capital financeiro mundial. Quase todo o resto do mundo exerce, de uma forma ou de outra, função de devedor e tributário desses países” (LENIN, 2008, p. 60). Mas nem precisaríamos recorrer a Marx, ou Lenin, para estabelecer essa relação entre aumento da produtividade do trabalho e concentração da propriedade. Além da centralização internacional do capital, que cria a incompletude perene do capital nos países subordinados, Piketty mesmo traz à tona o nível de concentração nos países centrais no início do século XX, que para ele é máximo: Por volta de 1900-1910, tanto na França como no Reino Unido ou na Suécia, assim como em todos os países cujos dados temos disponíveis, os 10% mais ricos detinham a quase totalidade da riqueza nacional: a parcela do décimo superior alcançava 90%. O 1% mais abastado possuía sozinho mais de 50% do total da riqueza. A parcela do centésimo superior ultrapassava 60% em alguns países particularmente desiguais, como o Reino Unido. Em contrapartida, os 40% do meio detinham apenas pouco mais de 5% da riqueza nacional (entre 5% e 10%, dependendo do país) — isto é, situação muito semelhante à dos 50% mais pobres de hoje, que detêm menos de 5%. Em outras palavras, não havia classe média, uma vez que os 40% do meio eram quase tão pobres quanto os 50% mais pobres. A distribuição do capital era caracterizada por uma imensa maioria de destituídos e uma minoria que possuía quase tudo”. (Piketty, 2014, p. 332) Quer dizer que, apenas meio século após a revolução industrial extrapolar as fronteiras da Inglaterra; quando, pois, o capitalismo se hegemoniza, ele é já capitalismo monopolista, ou imperialismo. Piketty atesta o fato de que, desde que existem dados, o capitalismo é já uma organização econômica que se caracteriza pela expropriação massiva. Além disso, nesse momento histórico, havia ainda dominação política direta de países europeus sobre suas colônias, de modo que as relações mercantis ainda tinham muito espaço a tomar. Esses dados referem-se a países europeus. Piketty não traz os dados da concentração de capital nos países de extração colonial ou que foram incluídos Assim, quando um país se torna uma sociedade mercantil, tendo generalizado para o conjunto da população a condição de indivíduos vendedores e compradores, ele é já plenamente capitalista. Do mesmo modo, o capitalismo pleno, quando se estende ao conjunto da Europa e suas colônias ou ex-colônias , é já imperialista. Assim, não apenas a sociedade mercantil é essencialmente capitalista, como o capitalismo é por natureza imperialismo. Conceber a fragmentação do capital e uma sociedade de pequenos proprietários/produtores, aliadas ao aumento da produtividade do trabalho – que continua sendo a finalidade – é uma incongruência econômica: à socialização da produção, que amplia sua escala, é imanente a monopolização. Uma sociedade de pequenos capitais em concorrência justa é um construto teórico incompatível com as leis econômicas do capitalismo. Piketty parece crer que o investimento capitalista tem como impulso a paixão por uma dada atividade concreta de produção, e não a paixão pelo lucro. É curioso pensar que a propriedade da marca Deca, pela família Setubal, esteja alicerçada na paixão por válvulas de privadas. Marx já comentava o completo desconhecimento da química por capitalistas que investiam no setor. Mas tomemos a questão da herança. Imaginemos então que os pequenos netos das famílias Setubal e Vilella tivessem de ceder em impostos 90% do patrimônio do banco Itaú quando o recebessem como herança de seus pais. É evidente que o banco deixaria de existir, ao menos como instituição financeira capaz de concorrer com as demais. Ora, proibir a herança é já dissolver o capital e a propriedade privada. Piketty também foi questionado, pelo jornalista Marc Bassets, no mesmo sentido: “O senhor propõe um imposto de 90% sobre o patrimônio dos mais ricos. Por que 90% e não expropriá-los?”[10] Respondeu que o objetivo é “fazer circular a propriedade”, e não, por conseguinte, romper com essa forma de propriedade. Trata-se de um apego a esta forma social de apropriação, às custas da coerência de seu pensamento econômico. Ao lado do fato de que a fragmentação produtiva que ele propõe implicaria perda de força produtiva, e não aumento da produtividade, e de que os capitais tal como existem seriam dissolvidos pela taxação da herança; ao lado, em suma, da finalidade de constituir uma sociedade de pequenos proprietários que era a utopia filósofos modernos, salta aos olhos o meio pelo qual o economista pretende pôr em prática essa proposta: trata-se de construir o consenso social. Do mesmo modo que nos conceitos defendidos pelo economista é ocultada a natureza do capital, desvendada há muito por Marx e pelo campo marxista, também é desconsiderada a oposição de classes. É curioso que alguém que tenha vivido o movimento dos gilets jeunes na França, que sofreram violência estatal por exigir simplesmente redução dos preços dos combustíveis, manutenção dos direitos previdenciários e participação democrática nas decisões econômicas, conceba a possibilidade de taxar em 90% os capitais por meio de um consenso racional da nação. É como se os interesses das classes pudessem ser acomodados[11]. Esse requentar de uma proposta que desconsidera que é a fúria capitalista quem se manifesta pelas ações do braço armado do Estado, mantém a noção moderna de que o Estado é a esfera racional da sociedade, capaz de fazer valer uma racionalidade contrária àquela que vige nas relações da sociedade civil. Assim, o autor não esclarece que a conciliação da classe que teve lugar nos chamados trinta anos gloriosos, em que a desigualdade entre capital e trabalho foi a menor da história capitalista, sustentava-se na classe trabalhadora organizada e ativa, cuja ameaça, no início da guerra fria, parecia bastante real: basta recordar que em 1949 o bloco soviético ganha a Alemanha Oriental. Quer dizer, a racionalidade que os Estados europeus aparentam ter no período áureo do bem-estar social, por priorizarem em certa medida o bem-comum em lugar dos passionais interesses privados, e que dessa forma parecem gerir do alto uma sociedade mercantil organizada e pacificada, na verdade é produto da luta de classes, em que a classe trabalhadora alcança e mantém ativamente um espaço mais amplo na correlação de forças políticas[12]. Tão logo essa força social cede ou é derrotada[13], toda a irracionalidade da predação capitalista ocupa o Estado e escancara sua verdadeira natureza. Mas, para o economista, “A desigualdade não é econômica ou tecnológica, afirma, é ideológica e política”[14]. Seria necessário atuar, não na esfera prática da luta de classes, mas na esfera ideológica, para que os valores ligados ao interesse geral possam ser reconhecidos e justamente apreciados. Deste modo, poderia ser estabelecido um consenso de ordem moral, regulado por órgãos supranacionais de controle do capital. De órgãos políticos da manutenção da propriedade privada e da luta contra o inimigo interno ou externo, os Estados nacionais e o FMI passariam a órgãos de controle do capital. Para Piketty, a política domina a economia e a ideologia domina a política. “O ponto essencial é que essas diferentes formas de controle democrático do capital dependem, em grande medida, do grau de informação econômica de que as pessoas dispõem” (PIKETTY, 2014, p. 690). Assim, tudo se resolve com a educação. O autor defende que com educação democrática sobre direitos, justiça e participação será possível a distribuição econômica e o bem-estar social. Ao fim e ao cabo, é esta a solução do economista para a desigualdade social: uma educação voltada ao interesse geral. Se fosse consequente, Piketty proporia um meio para alcançarmos tal sistema educacional. Mas não faz isso: talvez chegue a intuir que, para a conquista de uma educação pública, universal e de excelência, precisaríamos retornar ao terreno das lutas sociais... Piketty oferece assim sua explicação da realidade, voltada a todos e todas, sem nenhum partidarismo, prestando o serviço para o bem comum que sua especialidade na divisão do trabalho permite: o esclarecimento. Podemos vislumbrar seu alto chapéu tui nas incongruências de sua análise, no profundo voluntarismo de sua proposta política, calcada na autonomia da moral, que permite a todos escolherem a razão e o bem comum contra as paixões privadas desenfreadas. Com sua teoria, ele sustenta o próprio privilégio de classe intelectual, preservada, na divisão do trabalho, de todo fazer prático e da tomada mesma de partido nas lutas sociais. O esclarecimento não é apenas sua função como intelectual, como é o meio pelo qual superaremos a desigualdade social. Piketty parece tão heroico quanto os tuis brechtianos. Os próximos que sobem ao palco, uma dupla de filósofos, não se distinguirão muito de nosso economista. 2.3. O idealismo piedoso de Dardot e Laval O objeto da crítica de Pierre Dardot e Christian Laval é o chamado neoliberalismo. Eles veem uma diferença importante entre capitalismo e neoliberalismo, que podemos entrever no silêncio sobre o primeiro e no foco sobre o segundo. Em A nova razão do mundo, os autores acompanham o processo de emergência do neoliberalismo não a partir dos processos de expansão capitalista e suas crises, mas a partir das construções teóricas que cujo projeto de sociedade é o neoliberalismo, em oposição ao socialismo e à social democracia. Assim, o neoliberalismo é caracterizado como um “sistema de normas” que estende a “lógica do mercado”, a competitividade, a todas as esferas da vida: “O que está em jogo é a construção de uma nova subjetividade, o que chamamos de ‘subjetivação contábil e financeira’, que nada mais é do que a forma mais bem-acabada da subjetivação capitalista” (DARDOT;LAVAL, 2016, p. 31). Os autores definem o neoliberalismo como uma “lógica normativa global”: Antes de ser uma mera ideologia, ou um receituário de política econômica, o neoliberalismo apresenta-se como uma racionalidade que quer estruturar o comportamento tanto dos governantes quanto dos governados (...) “um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal de concorrência”. (PRADO, 2017) Trata-se de uma forma nova de governar, e portanto um fenômeno essencialmente da esfera do político, visto de modo amplo, que permite que a “lógica do mercado” se estenda para todas as esferas da vida, começando pelo Estado e terminando na subjetividade. Quer dizer, antes, a lógica de mercado estava restrita à esfera econômica, e assim a vida escapava ao mercado, havia algo como uma esfera parcial de liberdade. Há pois uma descontinuidade significativa originada na esfera político-jurídica (governabilidade, sistema de normas) e que é ameaça de uma destruição da subjetividade, porque estende a lógica de mercado a todas as esferas da vida. O neoliberalismo é, assim, uma nova razão. A subjetivação não aparece como oriunda da própria expansão das relações capitalistas, mas de uma normatividade e de um modo de governo (de si e dos outros). Seria pois possível a recusa individual dessa subjetivação porque ela não aparece como resultado de relações materiais, mas de uma norma, um governo, uma razão. Como pesquisadores que compartilham as teses foucaultianas sobre a biopolítica, não poderiam ver o estado, à moda liberal, como um instrumento de moderação do impulso capitalista. Ao contrário, consideram o Estado um “coprodutor voluntário das normas de competitividade”, atuando pela defesa incondicional do sistema financeiro e do endividamento de massa. Colocam-se contra a ingenuidade de se cobrar do Estado um “controle” do mercado. Ele é tomado como uma das peças da máquina neoliberal. Assim, o combate à forma vida neoliberal não pode lançar mão das instituições existentes, na medida em que elas mesmas assumiram a forma neoliberal. Então, as duas perguntas que fazemos aos autores são, primeiro, quem é o inimigo que nos impõem esse modo de vida que condena nossa subjetividade a tomar a forma da competitividade mercantil, e, segundo, como combatê-lo? Em A Nova Razão do Mundo, os autores apontam como meio de oposição ao neoliberalismo a contraconduta: recusa ao empresariamento de si. Essa proposta não seria meramente individual, uma “desobediência passiva”, porque a mudança da relação consigo mesmo envolve a relação aos demais: Se é verdade que a relação consigo da empresa de si determina imediata e diretamente certo tipo de relação com os outros (a concorrência generalizada), inversamente a recusa de funcionar como uma empresa de si, que é distanciamento de si mesmo e recusa do total autoengajamento na corrida ao bom desempenho, na prática só pode valer se forem estabelecidas, com relação aos outros, relações de cooperação, compartilhamento e comunhão. (DARDOT; LAVAL, 2016, pp. 400-401)[15] Ainda que a relação a si não possa ser separada da relação aos demais, é a ação individual o foco dessa oposição. Ora, a recusa ao empresariamento de si e à concorrência só é possível para quem tem uma fonte de renda distinta do assalariamento. Fico imaginando a reação de um jovem motorista de uber ao ouvir essa proposta... É como se Marx, ao tratar do trabalho alienado, terminasse exortando os trabalhadores assalariados a recusarem a alienação. Essa visão, para além da inversão idealista, reduz as relações sociais a relações interpessoais, desconsiderando que as primeiras se dão com a mediação do mundo objetivo, da forma mercantil/capitalista da produção global. Por exemplo, quando consumo um celular made in China, me relaciono com a menina de 16 anos que trabalha na produção, mesmo que não a conheça; do mesmo modo, se sou sueco e meu lixo eletrônico é exportado para o Congo, eu me relaciono com o menino de 10 anos que trabalha procurando pedaços de metal no material descartado. Os indivíduos são parte de uma divisão do trabalho que é mundial, organizada sob a forma da propriedade privada ou do capital. Assim, a concorrência não pertence ao campo das escolhas individuais, e a relação contratual só é liberdade para quem possui seus meios de vida, ou seja, para certa classe social. Os autores devem ter se dado conta do caráter moral, e por isso inefetivo, de sua proposta de contraconduta. Em Comum- ensaio sobre a revolução no século XXI, escrevem que ela não é suficiente, e retomam a necessidade de uma revolução. Eles discutem esse conceito e o definem como uma autoinstituição de uma nova racionalidade política. Lemos: (...) romper com o neoliberalismo exige que o arcabouço institucional existente seja desconstruído e substituído por outro. Como Auguste Comte gostava de dizer, imitando Danton, só se destrói bem o que se substitui. Portanto, a esquerda precisa se reinventar, assumindo que é plenamente revolucionária tal como os neoliberais souberam ser a seu modo. E a boa notícia é que, trazendo à tona a exigência do comum, os movimentos de resistência e as insurreições democráticas deram, há mais de 10 anos, o primeiro grande passo na formação de uma racionalidade alternativa: o comum é a nova razão política que deve substituir a razão neoliberal. (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 474) O algodão foi consumido durante no transporte! Criemos uma nova matéria-prima! Entendida em sentido próprio, revolução é, pois, “reinstituição explícita da sociedade” pela “atividade coletiva e autônoma” da própria sociedade, ou de grande parte dela. É a partir dessa ideia de revolução que hoje devemos trabalhar para a elaboração de um projeto de transformação radical da sociedade. Apenas a referência às “contracondutas” não é suficiente: com a razão neoliberal, confrontamos uma “estrutura social total” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 478). O sentido de revolução a se recuperar é “o de ‘novidade’, isto é, de fundação de uma nova ordem pela invenção de instituições políticas destinadas a subverter a estrutura da sociedade”. Citando uma entrevista de C. Castoriadis, explicam o conceito: “Revolução não significa nem guerra civil nem derramamento de sangue. Revolução é uma mudança em certas instituições centrais da sociedade pela atividade da própria sociedade: autotransformação da sociedade em curto espaço de tempo” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 476). Os autores não problematizam o agente desta revolução instituinte. Escrevem que a revolução Também não deve ser confundida com “alteração” de instituições como família, língua ou religião, que têm temporalidades próprias, muito mais longas. Castoriadis explica que “revolução é a entrada do essencial da comunidade numa fase de atividade política, isto é, instituinte”. Portanto, revolução é um momento de aceleração, intensificação e coletivização dessa atividade consciente que designamos como “práxis instituinte”. É, mais exatamente, o momento em que a práxis instituinte se torna instituição da sociedade por si mesma ou “autoinstituição”. (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 476) Quer dizer, trata-se da oposição entre “sociedade” e neoliberalismo, que acaba assim aparecendo um pouco como um ente, e não como uma relação social. O que é esta razão neoliberal, de onde ela vem e porque ela é contrária à “sociedade”? Sem referir às classes sociais e seus interesses antagônicos, fica difícil responder a estas questões. Mas, coerentemente, os autores opõem uma razão a outra, afirmando que esta revolução instituinte colocaria em prática uma nova razão política: o comum. Distinto de bem comum, o comum não é uma coisa pré-estabelecida, mas é o próprio princípio instituinte a partir do qual deve-se decidir o quê, quais coisas, espaços, atividades devem ser comuns. Nos termos dos autores, “O comum é, acima de tudo, uma questão de instituição e governo”. Enquanto o princípio mesmo não é instituído por ninguém, mas deve apenas ser reconhecido por aqueles que vivem juntos, tudo o mais a ser considerado parte do comum deve ser instituído. “Ao contrário da ‘gestão’, o ‘governo’ cuida dos conflitos e tenta superá-los por meio de uma decisão relativa às regras. Portanto, a práxis instituinte é uma prática de governo dos comuns pelos coletivos que lhes dão vida”. Assim, o comum é o princípio político destinado a reger e prevalecer sobre as atividades econômicas. Ele não se restringe à esfera pública, mas transpassa a sociedade civil, sem precisar romper com as relações mercantis. Dardot e Laval escrevem: Como princípio político, o comum tem vocação a prevalecer tanto na esfera social como na esfera política pública. Portanto, está fora de cogitação limitar previamente sua primazia a essa esfera, entregando a esfera da produção e das trocas à guerra de interesses privados ou ao monopólio do Estado. Mas, em razão de seu caráter de princípio político, o comum também não constitui um novo “modo de produção” ou um “terceiro” interposto entre o mercado e o Estado, criando um terceiro setor da economia, ao lado do privado e do público. Como não implica a supressão da propriedade privada, a primazia do comum não exige a fortiori a supressão do mercado. Em contrapartida, exige a subordinação de ambos aos comuns e, nesse sentido, a limitação do direito de propriedade e do mercado, não simplesmente subtraindo certas coisas à troca comercial com a finalidade de reservá-las ao uso comum, mas eliminando o direito de abuso (jus abutendi) pelo qual uma coisa fica inteiramente à mercê do bel-prazer egoísta do proprietário. (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 482) Quer dizer, o mercado continua aparecendo como um direito do indivíduo, que não pode dele abusar, isto é, deve moderar o seu impulso egoísta por acumular riqueza. O problema da subjetivação da essência do capitalismo, tão caro aos autores, acaba sendo resolvido com a clássica solução moderna de moderar as paixões, submetendo os interesses privados ao princípio político do comum. Não se vislumbra uma efetiva emancipação do egoísmo de proprietário. Ao se referirem ao atual sistema econômico, Dardot e Laval falam de lógica de mercado, e não lógica da acumulação capitalista, ou do capital. A lógica de mercado pode remeter novamente à ideia presente nas teorias econômicas modernas, que imaginam uma sociedade de pequenos proprietários privados produzindo em família e trocando os produtos de seus trabalhos no mercado. Mas o fato é que não existe sociedade mercantil que não seja capitalista. Ao contrário, a própria produção de mercadorias se origina dos capitais mercantis, como exposto acima. No fim das contas, submeter o mercado ao comum não se distingue muito de Rousseau, para quem a vontade geral, instituída por contrato, é soberana porque expressa o bem do corpo político. A novidade é apenas institucional: deve-se inventar novas instituições e formas políticas distintas do estado para que esse controle – a submissão ao comum – possa se dar. Isto não é, ao fim e ao cabo, o comum tendo prioridade sobre a acumulação de capital, sem romper com esse sistema? Novamente, para tornar possível esse controle social do capital, é necessária uma mobilização de caráter revolucionário, que certamente enfrentaria resistência armada, uma vez que o mero controle social preventivo já é armado e genocida. E, se fosse vitoriosa, por que não alterar o modo de produção, por que reinventar a propriedade privada como direito? Começamos ouvindo que o neoliberalismo é a subjetivação máxima do capitalismo, que se trata de uma figura definitiva da “estrutura social total” e que, portanto, é necessária uma revolução. Terminamos, contudo, compreendendo que a revolução em foco tem como agente “a sociedade”, que sua função é instituir um novo princípio político que deve ser realizado por meio de novas instituições, e que a força instituinte dessa revolução é uma nova razão. Ao fim e ao cabo, eles pensam como Piketty: a política domina a economia e razão domina a política. Assim, o caminho dessa revolução da razão só pode ser o caminho racional: o consenso. Além disso, afirma-se que o neoliberalismo conforma a estrutura social total. Mas a oposição a ele não precisa confrontar o mercado, a propriedade privada, a família e a religião. Seria, pois, possível levar a termo uma revolução da totalidade social sem alterar a forma de propriedade, a forma da família e a moralidade. Assim, embora o neoliberalismo tenha como uma de suas determinações centrais aprofundar o moralismo, fortalecendo o patriarcado e disseminando o fundamentalismo religioso, a oposição revolucionária “não precisa” alvejar essas esferas das relações sociais. É curioso: os próprios autores demonstram que, com a redução da esfera pública e a degradação das associações trabalhistas característica do neoliberalismo, o vínculo social perde suas bases objetivas e a ameaça de dissolução social é contida por meio da moralização. A generosidade da família e dos vizinhos, bem como o apoio da igreja, tornam-se centrais quando a seguridade social e os direitos trabalhistas são dissolvidos: de que vive um entregador uberizado que quebrou a perna? Essa é uma das razões pelas quais assistimos a uma reação patriarcal e um crescimento das igrejas pentecostais no mundo ocidental. O neoliberalismo é uma razão totalizante, mas a revolução que romperá com ele deixa aspectos dessa totalidade preservados: família, língua (gramática?), religião. Essas são, contudo, as esferas da vida pelas quais o empresariamento de si penetra, campos de relações que promovem a chamada subjetivação do capitalismo. Fica evidente aqui que o capitalismo, sem a sua subjetivação máxima, não é alvo de crítica. O horizonte revolucionário de nossos autores é limitado: deve-se submeter o impulso capitalista ao comum, um princípio político que caracteriza uma outra razão, sem necessidade de romper com as relações mercantis e patriarcais. Mas, mesmo para alcançar esse objetivo tacanho seria necessária uma ampla mobilização popular, que há muito já é alvo de violência de estado, que detém, em conjunto com as milícias a ele associadas, o monopólio das armas. Mas os autores consideram que a “sociedade” pode escolher se autoinstituir novamente por meio de uma práxis pacífica. Como questionava o grande filósofo materialista Mané Garrincha, eles já combinaram isso com os adversários? A recusa em reconhecer a luta de classes e o capital como “a potência econômica da sociedade burguesa que tudo domina” (MARX, 2011, p. 60) restringe seus desenhos de transformação social a uma requentada proposta moderna de comum versus privado, calcada no domínio da razão. A razão correta. Para isso, tomam de empréstimo o conceito braudeliano de estruturas de longa e curta durações e, com isso, recusam justamente a totalidade social: cada esfera da vida tem uma determinação própria, e podemos alterar umas sem tocar em outras. Trata-se de substituir a razão dominante e evitar abusos. Essa recusa em considerar a oposição entre capital e trabalho como conflito central de nosso modo de vida, implica ausência de dialética – o reconhecimento de uma contradição interna ao modo de vida atual – bem como o apagamento da noção de ideologia – forma de pensamento materialmente determinada pelos interesses de classe. E tudo se passa então em uma batalha épica do mundo das ideias entre a razão neoliberal e a razão do comum. Assim como Piketty, Dardot e Laval alçam a atividade particularmente intelectual à solução dos problemas: é uma nova razão instituinte que dominará a má razão neoliberal, sem que seja necessário tocar na divisão do trabalho e no caráter privado das profissões. Também eles resolvem o problema humano não apenas salvaguardando a classe intelectual de qualquer responsabilidade prática, como defendendo o poder da razão como instituinte de princípios políticos e instância de controle das relações sociais. Mas, como o princípio ideal do comum ganharia existência real? Até aqui, nossos autores não puderam demonstrar que dois mais dois é igual a quatro. Também no congresso chinês de Brecht, os tuis não alcançaram sucesso. Apareceu um teólogo argumentando contra a demanda por tanto algodão, uma vez que o sol faz bem à saúde: as roupas não são assim tão necessárias. Novamente, o foco é a “liberdade interior” de recusar as próprias necessidades. O povo que assiste já está calejado contra essa forma de “liberdade”. Assim, conforme o congresso se estende, cabeças e mais cabeças de tuis são cortadas e penduradas, em fileiras, ao ar livre. Grande tristeza toma conta de Turandot, que passa algumas horas chorando frente à ruína daqueles grandes homens, e lamenta: “As cabeças se multiplicam na muralha. Pelo visto, não é um bom negócio defender a política” (BRECHT, 1993, p. 156). Também por esse caminho passam os tuis que vem de regiões distantes do reino disputar a mão de Turandot. O grande geógrafo Pauder Mil se apressa para chegar a tempo ao Congresso, e passa pelas cabeças em um carrinho puxado por dois jovens tuis. Eles se assustam, mas Pauder Mil os tranquiliza: “Só uns criminosos! Adiante, meus jovens amigos” (BRECHT, 1993, p. 156). Quanto mais o Congresso malogra, mais a polícia age. O Império está ameaçado pela eclosão popular, e Gogher Gogh, nosso miliciano, tui frustrado, já se pôs a serviço do Império. Ao passo que os tuis são conduzidos à morte, manifestantes mais entusiasmados, supostos apoiadores de Kai Ho, vão também sendo levados às dezenas. Alguns tuis pobres escondem textos clandestinos de Kai Ho e começam a maldizer sua profissão e sua classe. No percurso de realizar uma de suas prisões, Gogher Gogh reencontra Turandot. Ela, que tem uma queda por formulações bem torneadas, se inclina ao “bonitão” e busca conhecer sua inteligência: “E o que está achando do congresso?” A resposta: Nada. Aqui a senhora está vendo o resultado. Eu tentei em vão evitar tudo isso, mas não me deixaram entrar. Só porque não sou tão instruído como eram esses senhores aí. Agora só resta o mal cheiro. Se o governo responder mesmo cada pergunta que lhe for feita, ele cai. Por quê? Porque cheira mal. Quanto tempo a senhora aguentaria seu cachorro lhe perguntando toda manhã onde está seu osso? Simplesmente ele ia ser um bicho muito antipático. (BRECHT, 1993, pp.157) Aqui, ao invés de uma resposta que convença o povo, à moda tui, Gogher Gogh começa a construir a solução para o Império e a manifestar o caráter original de seu pensamento. Turandot continua: “Não deixa de ser verdade. E o que acha das mulheres?”, provoca. Sua reposta: “A mulher chinesa é fiel, trabalhadeira e obediente. Mas deve ser tratada como o povo, ou seja, com mão de ferro. Senão ela relaxa. (...) Comigo, quis bancar valente, leva”. Turandot se encanta com a virilidade das respostas e flerta, perguntando o que ele pensa dela própria. Ele a considera enigmática, acha que já a viu antes e ela, que não o esquecera, recupera que eles se conheceram em um “círculo literário” (a Casa de Chás dos tuis). Isso dá ensejo para ele expor sua posição a respeito da literatura e da cultura, que completa a sua visão política: Um povo sem literatura é um povo sem cultura. Só que ela deve ser sadia. Eu venho de família humilde, porém decente. Na escola eu era bom em ginástica e em religião. Mas desde cedo já revelava certas qualidades de líder. Com sete correligionários, montei um negócio e com disciplina férrea consegui fazer dele o que é hoje. Eu exijo de meus seguidores uma crença fanática em mim. Só assim posso atingir meus objetivos. (BRECHT, 1993, pp.157-58) E manda prender alguns “elementos”. É pelos braços de Turandot, amante dos intelectuais, que o homem mais inteligente do reino entrará no palácio e poderá oferecer uma efetiva saída para o problema do algodão e do império. Enquanto Dardot e Laval defendem uma revolução pacífica, instituinte de um novo princípio racional para a vida social, a classe dominante conspira, pela via do Estado, a sua “revolução” destituinte, aquela que tem de ser feita para que tudo permaneça o mesmo. 2.4. O fetichismo de David Harvey Brecht não deixa de figurar a grande perda, para a China e para a humanidade, que a execução de tantos intelectuais significa. Ainda na cena do varal de cabeças tuis – muito bem-humorada, porque elas continuam debatendo, agora com todo o tempo do mundo – o escrevente da escola tui para em frente a uma cabeça desconhecida e comenta: “Este é meu mestre. O maior gênio em gramática chinesa. Só falou besteira no congresso. Mas agora não tem mais ninguém que saiba explicar a poesia de Po Chuyi. Ah, por que eles não se limitaram a suas disciplinas...” (BRECHT, 1993, p. 156). É com essa mesma pena que critico aqui uma fala de David Harvey. Também ele falou besteira em um episódio de “Anti-Capitalist Chronicles: Global Unrest”[16], conjunto de palestras em vídeo que busca analisar a sociedade pelas lentes de Marx, e que se destina, não a justificar o império do capital, mas para fazer oposição a ele. Os autores que critico neste texto têm, todos, contribuições importantes para o conhecimento e, não à toa, é a eles que recorro para caracterizar positivamente o problema social que ora enfrentamos. David Harvey, geógrafo marxista, cuja obra volta-se a demonstrar por diversos lados o caráter necessariamente destrutivo da produção capitalista, também sucumbiu tristemente à defesa da ordem e ao estreitamento dos horizontes de transformação da vida ao se manifestar no episódio final das crônicas anticapitalistas, que veio a público em dezembro de 2019. Harvey posiciona-se contra uma revolução anti-capitalista, argumentando que um colapso do capital significaria hoje um colapso humano. Ele compara o momento atual com o período em que Marx viveu: (...) na época de Marx, se houvesse um colapso repentino do capitalismo, a maioria das pessoas no mundo seria capaz de se alimentar e se manter. Porque a maioria das pessoas era autossuficiente em sua área local, com o tipo de coisas de que precisavam para viver - em outras palavras, as pessoas podiam colocar o café da manhã na mesa, independentemente do que estava acontecendo na economia global. Atualmente, esse não é mais o caso. A maioria das pessoas nos Estados Unidos, mas cada vez mais, é claro, na Europa e no Japão, e agora cada vez mais também na China, na Índia e na Indonésia e em todos os lugares, depende inteiramente da importação de alimentos, de modo que recebem alimentos provenientes da circulação do capital. Bem, na época de Marx, como eu disse, isso não seria verdade, mas agora temos uma situação em que provavelmente cerca de 70 ou talvez 80 por cento da população mundial depende da circulação de capital para garantir o seu abastecimento alimentar, para adquirir os tipos de combustíveis que lhes permitirão mobilidade, para ter acesso a tudo aquilo que é necessário para a reprodução de sua vida diária. (HARVEY apud MARTIN, 2020) O autor caracteriza nessa passagem o aprofundamento da divisão internacional do trabalho, que amplia a interdependência entre os países. Ele descreve ainda a quase completa hegemonia do capital sobre o conjunto da produção humana: nenhum valor de uso – ou quase nenhum, já que ainda existe a pequena produção para a subsistência em algumas regiões – é produzido sem que seja ao mesmo tempo mercadoria de um determinado empreendimento capitalista, meio de reprodução do capital, isto é, capital-mercadoria. Quando o conjunto dos produtos sociais são veículos de valor, o intercâmbio humano ocorre na forma mercantil e a distribuição de produtos se dá sob a forma da circulação do capital. Uma ruptura com a forma capitalista da produção e do intercâmbio humanos é, contudo, vista por Harvey como um colapso da produção e da circulação de bens. Quer dizer, romper a forma da relação social de produção só poderia acontecer mediante a destruição dos elementos concretos que compõem o capital, ou, no mínimo, a paralização de sua atividade concreta. Ele afirma: Então, acho que essa é uma situação que eu posso realmente resumir da seguinte forma: o capital agora é grande demais para falir. Não podemos imaginar uma situação em que interromperíamos o fluxo de capital, porque se interrompêssemos o fluxo de capital, 80 por cento da população mundial morreria imediatamente de fome, ficaria imóvel, não seria capaz de se reproduzir de maneiras eficazes. (HARVEY apud MARTIN, 2020) De fato, há uma diferença no nível de concentração do capital se compararmos o mundo de hoje com o período em que Marx viveu. (Há também uma diferença proporcional na quantidade absoluta de riqueza entre essas duas épocas.) Em Marx, contudo, a maior centralização do capital ou monopolização corresponde ao aumento da socialização da produção. Para ele, é justamente essa ampliação do caráter social da produção, observável, por exemplo, em uma divisão internacional do trabalho tão especializada quanto a presente, que permite a transição para o socialismo. Marx faz essa relação entre a escala da produção, a concentração de capital e aquela transição ao caracterizar o capital acionário: Formação de sociedades por ações. Com isso: 1) Enorme expansão da escala de produção e das empresas, que era impossível para capitais isolados. Tais empresas, que eram governamentais, tornam-se ao mesmo tempo sociais. 2) O capital, que em si repousa sobre um modo social de produção e pressupõe uma concentração social de meios de produção e forças de trabalho, recebe aqui diretamente a forma de capital social (capital de indivíduos diretamente associados) em antítese ao capital privado, e suas empresas aparecem como empresas sociais em antítese às empresas privadas. É a abolição [superação] (Aufhebung) do capital como propriedade privada, dentro dos limites do próprio modo de produção capitalista. 3) Transformação do capitalista realmente funcionante em mero dirigente, administrador de capital alheio, e dos proprietários de capital em meros proprietários, simples capitalistas monetários. (MARX, 1985-86, C, III, 5, p. 332) Primeiro, Marx observa que o aumento da escala da produção, no contexto da revolução industrial, deveu-se em parte à formação de sociedades por ações a partir dos empreendimentos estatais (em ferrovias, por exemplo) que requerem grandes montantes de capitais. E inversamente, o capital acionário, ao concentrar o capital da sociedade, permite uma ampliação produtiva sem precedentes, de tudo aquilo que não pode ser levado a cabo por pequenos capitalistas isolados. Segundo, que isso cria uma associação de capitais que, dialeticamente, nega o caráter privado – individual, familiar – do capital e o torna social, em uma sociedade de ações. Mas no âmbito do capitalismo, porque essa associação se dá no interior de uma classe. Terceiro, que no capital acionário a função de administração e direção se separa da propriedade do capital. Isso torna o título de propriedade meramente parasitário: o proprietário do capital não tem mais função alguma na produção e na circulação de bens, nem mesmo a direção do negócio. O fato de a propriedade estar completamente descolada das funções da reprodução social significa que a classe trabalhadora é responsável pelo conjunto dessas funções, o que torna mais favorável sua apropriação coletiva. Marx escreve: Nas sociedades por ações, a função é separada da propriedade de capital, portanto também o trabalho está separado por completo da propriedade dos meios de produção e do mais-trabalho. Esse resultado do máximo desenvolvimento da produção capitalista é um ponto de passagem necessário para a retransformação do capital em propriedade dos produtores, porém não mais como propriedade privada de produtores individuais, mas como propriedade dos produtores associados, como propriedade diretamente social. É, por outro lado, ponto de passagem para a transformação de todas as funções do processo de reprodução até agora ainda vinculadas à propriedade do capital em meras funções dos produtores associados, em funções sociais. (MARX, 1985-86, C, III, 5, p. 332) Quanto mais concentrado é o capital, quanto mais se amplia a divisão social e internacional do trabalho, mais complexo e imbricado é o nexo social. Quer dizer que o capital já criou um conjunto de conexões produtivas – como, por exemplo, estruturas materiais de transporte e comunicação – que favorecem, ao invés de desfavorecer, a ruptura com a forma capitalista da produção social: basta desautorizar seu título de propriedade. Para isso, é necessário o processo destrutivo da revolução, isto é, a expropriação do capital e sua transformação imediata em propriedade pública. O que tem uma série de implicações, violentas inclusive. Mas a destruição material das forças produtivas não é uma delas. Ao contrário, é a partir delas que se construirá um modo de produzir em sociedade superior à alienação capitalista. Assim, Marx vê na ampliação das conexões sociais, que se expressa na interdependência global, na extrema concentração do capital, e na separação completa entre o proprietário e o gestor, fatores que favorecem a ruptura com a forma capitalista. Harvey parece fazer uma inversão ao considerar o capital como algo “grande demais para falir”: confunde a finalidade capitalista – que se sustenta em uma relação social de produção, ou em uma forma jurídica de propriedade, mantida pela força armada do estado – com a produção e circulação concreta de valores de uso. Ele afirma mesmo que, se interrompermos os fluxos de capital, interrompemos a circulação de produtos. Jorge Martin, que criticou essa posição de Harvey, escreve que: Este é um exemplo flagrante da incapacidade dos acadêmicos de compreender o poder criativo da classe trabalhadora. Uma análise superficial das revoluções nos últimos 100 anos mostra o oposto do que Harvey prevê. Qualquer grande desenvolvimento revolucionário mostra como a classe trabalhadora se move no sentido de assumir o controle das fábricas, da produção de alimentos etc. por conta própria (...). (MARTIN, 2020) O autor dá diversos exemplos históricos de experiências revolucionárias que foram bem-sucedidas em garantir o abastecimento[17] e, aqui, até poderíamos concordar com Piketty: quem produz para si, se empenha mais. As experiências de ocupação de fábricas falidas e até das escolas paulistas entre 2015 e 2016 explicitam a pouca fé de Harvey na classe trabalhadora. Ao contrário de ser o sujeito necessário da produção humana, é o capital que, sem mencionar o desastre ambiental e as catástrofes humanas que vem causando, interrompe e destrói a produção material em períodos de crise para reduzir os efeitos da superprodução sobre os preços. Poderíamos mencionar aqui a queima de café pelo governo de Getúlio Vargas, em uma fogueira armada na festa junina de 1931 e que durou meses e meses; diferentes paralisações de plantas produtivas em vários momentos históricos; as casas vazias frente às pessoas acampadas em 2008, no centro do capital. Mas voltemos ao algodão do mítico império chinês, com o qual Brecht figura essa contradição. Encontramos o pai de Turandot desesperado para sustentar os lucros provenientes de seu império do algodão e seu poder no império chinês, diante do fracasso do Congresso dos tuis. O Imperador já conhecia o único meio de preservar os preços do algodão: queimar metade da safra. Para isso havia, no entanto, um conjunto de dificuldades. O algodão estava nos armazéns do Império, e não seria possível transportá-lo sem ser visto. Era também impossível queimá-lo ali mesmo, porque a fumaça não passaria despercebida. Parecem iminentes ao Imperador a invasão dos armazéns reais pelo povo, bem como sua queda. Mas Turandot está prestes a entrar no palácio, de braços dados com a solução para a crise imperial, tanto a econômica, quanto a política: “Papai, deixa eu te apresentar um dos homens mais inteligentes que eu já encontrei...”. O Imperador, contudo, pretende fugir, por medo do povo, e justifica-se afirmando que “O povo deve poder escolher seu próprio regime” (BRECHT, 1993, p. 161-62). E então a inteligência de Gogher Gogh começa por formular uma solução para o problema político: “Que história é essa de ‘o povo deve poder escolher seu próprio regime’? E por acaso o regime pode escolher o seu povo? Não pode. Por acaso o senhor teria escolhido este povo se tivesse tido o poder de escolher?” “Claro que não. O povo pensa exclusivamente no seu bem estar e vive escandalosamente das nossas rendas”, responde o Imperador. “O povo é um perigo público. Conspira contra o Estado”, sintetiza o miliciano. “Brilhante”, considera o Imperador, que pede então a opinião de Gogher Gogh sobre o que o estado deve fazer. “Muito simples. (...) Só para encurtar, pois não temos tempo, vocês não devem responder à pergunta sobre o algodão, devem proibi-la”. É assim que aquele que não passou na prova da escola tui e ganha a vida chefiando um bando de assaltantes milicianos supera em inteligência o conjunto dos intelectuais, começando a solucionar o problema do algodão: “Tem alguma verdade nas suas palavras, jovem. (...) É a primeira coisa razoável que estou ouvindo e você não usa chapéu de tui” (BRECHT, 1993, p. 162), diz o Imperador. O império, contudo, não tem mais força para proibir as perguntas, uma vez que guarda imperial abandona o palácio, por medo do povo, ou para se juntar a ele. Com isso, Gogh pôde exigir o posto do Ministro da Guerra, e tomar para si e seu bando as armas do arsenal do Império. Investido do poder das armas, Gogher Gogh apressa-se a criminalizar os tuis, propondo a substituição do debate democrático pelos princípios morais: Como todos sabem, são perigosos traficantes de opiniões. Ou melhor, traficantes de opiniões perigosas. (...) Além do mais, acho nojenta toda essa masturbação mental, essa mania de pensar sobre tudo. Basta haver moral e respeito por quem sabe fazer as coisas como elas devem ser feitas. (BRECHT, 1993, p. 166) Turandot, que se deliciava com frases bem feitas, agora se desfaz em languidez pelo autoritarismo viril do assaltante alçado ao poder do império, aplaudindo a proibição das perguntas como a saída mais inteligente para o reino e declarando sua admiração: “Gogô!” Ela não percebe qualquer contradição entre a inteligência, que deve convencer, e a força, que se impõe: “Papai, eu lhe conheço muito bem: quero deixar bem claro aqui que essas ideias são patrimônio do Gogher Gogh. Portanto, o senhor Gogh entra no concurso da Associação dos Tuis com todos os direitos” (BRECHT, 1993, p. 163). O Sr. Gogh parece ter trazido a solução para o problema do poder imperial, ameaçado pelos questionamentos populares. Mas ainda falta resolver o problema econômico. Para que o preço do algodão não caia, ameaçando a lucratividade do império do algodão, ainda não se elaborou nenhuma saída distinta da queima do produto que, reduzindo a oferta, recomporia os preços. Ao mesmo tempo, após ter solucionado a questão da ameaça política do povo, o antigo ministério da guerra começa a questionar o Imperador a respeito do poder concedido ao miliciano, e sugerir que ele seja agora dispensado. Mais uma vez, Gogh lançará mão da agudeza de espírito para, a um tempo, garantir o lucro do imperador e seu próprio lugar no estado. Ele faz então um discurso para os membros do seu bando: (...) Uma corja safada de militares tenta agora convencer o Imperador de que os serviços de vocês já não são mais necessários. Por isso eu me vejo obrigado, naturalmente com a aprovação do Imperador, a dar, como já tinha sido feito nos primeiros anos do nosso movimento, um exemplo bem visível para que até o maior boçal reconheça que sem uma proteção enérgica nenhuma propriedade está segura. Com esse objetivo, ainda esta noite vocês irão atear fogo numa parte dos armazéns. Incendiar a metade dos armazéns, para ser mais exato. Cumpram com seu dever! (BRECHT, 1993, p. 167) A proposta genial de Gogher Gogh é incendiar os armazéns e colocar a culpa no povo revoltoso. Com isso, reduz a oferta de algodão, resolvendo o problema econômico do Imperador, e atesta a necessidade de seus serviços para Estado, sem os quais nenhuma propriedade privada está segura. Ele compara essa ideia com aquela que foi levada a cabo no início da constituição do bando assaltante-miliciano: também lá, eles mesmos assaltavam os comerciantes para convencer da necessidade de pagarem a segurança das lojas, que eles então garantiriam. Agora, direciona sua estratégia para o próprio estado chinês. O povo nota a queima do algodão, e Gogher Gogh acusa, conforme já fora planejado: “O incêndio deve ter sido provocado pelos camiseiros e os sem-roupa, mancomunados com os tuis. Deve ser um sinal para o revolucionário Kai Ho. Agora vou ter que apelar par medidas mais drásticas. Antes de mais nada serão exterminados os intelectuais incendiários” (BRECHT, 1993, pp. 172-73). A própria “Associação dos Tuis é acusada de ter ofendido o Imperador, porque na Grande Conferência teria revelado um segredo de Estado” (BRECHT, 1993, p. 175). Os tuis no mercado começam a esconder seus chapéus, e a polícia – o bando de Gogh – passa a destruir os livros. A Casa de Chás é fechada e mulheres de povo, com alguns tuis, tentam esconder e preservar o patrimônio cultural da China: obras de arte, partituras musicais, livros e textos... Mo Si, o Rei das Desculpas, pede para uma lavadeira: “Será que a senhora não podia guardar este globo terrestre aqui embaixo? Que a Terra seja redonda é uma coisa que pode ter importância algum dia” (BRECHT, 1993, p. 183). Profético. A classe intelectual é perseguida e os tuis identificados, em conjunto, com aquele agitador, do qual fizeram tudo para se distinguir. Os revolucionários organizados nas montanhas e os vaidosos tuis tornam-se todos igualmente inimigos internos da China. Nesse meio tempo, o império do algodão começa a recuperar sua lucratividade, porque já se ouvem os vendedores: “A metade de uma colheita anual destruída pelo fogo! Os preços estão subindo! Comprem logo antes que eles fiquem proibitivos!” (BRECHT, 1993, p. 181) Com esse desfecho, Brecht sustenta o oposto do quer David Harvey: a forma capital, ao contrário de ser necessária para a produção e circulação dos valores de uso, impede que elas se deem, caso não proporcionem lucratividade. É o que Marx há muito insiste, quando afirma que o capital “põe como condição do trabalho necessário, o trabalho excedente” (2011, p. 589). Quer dizer, aquela atividade produtiva que não é capaz de valorizar o valor, não se dá; ou, se acontece de se dar, é mais vantajoso para o proprietário que seu produto seja destruído, do que distribuído. 2. Turandot, a razão e a divisão social do trabalho O cerne da peça de Brecht é a figuração do caráter que o estado assume quando os conflitos de classe são explicitados, e que Marx chamaria de estado bonapartista: na defesa dos interesses de classe, o poder das armas sufoca a rebeldia popular e, com ela, o conjunto das liberdades civis e do debate democrático, ou seja, a classe intelectual que até ontem ajudava a conciliar as contradições no sentido da manutenção da ordem e de seus próprios privilégios. Essa forma de estado acaba por afogar também a vontade particular de membros da própria classe dominante, em nome do principal interesse da classe: subjugar o povo. Brecht também dissolve a diferença entre razão e direito, por um lado, e força, de outro. A lei diz que o estado pode usar a força para manter a ordem social, isto é, a segurança da propriedade privada. O direito é então o direito da força, concedida a certa esfera social, e a força é o modo como a lei, elaborada por esta mesma esfera, se impõe. Assim, a peça desmistifica a crença de que a esfera da racionalidade determina o estado, e que este regula a vida econômica civil, de modo a possibilitar que uma solução social fosse elaborada em uma conferência de intelectuais. Ao contrário, sua verdadeira natureza, aquela que emerge do aprofundamento das contradições, é a violência. O estado que nossos tuis defendiam em seu congresso é essencialmente Gogher Gogh. Nesse ínterim, Turandot não vê mais graça no seu “bonitão” e não quer mais se casar com ele que, ademais, tem outras prioridades para as quais a princesa é apenas um meio: Papai, acabei de conhecer um homem muito simpático e quero me casar com ele. Não estou falando do tui de ontem à noite, aquele da Casa de Chá. Esse também era inteligente e fiquei muito chateada com o que você fez a ele, Gogher. Você faz questão de ser grosseiro. Mas não é dele que estou falando, e sim de um oficial que me explicou como o palácio pode ser defendido, pois considero a situação muito grave e não há mais tempo a perder. Posso me casar com ele? (BRECHT, 1993, p. 188) O Imperador chega a perguntar timidamente ao senhor Gogh se ele não quer desistir do casamento. Os membros do governo todos começam a se incomodar com a dimensão do poder do miliciano. Turandot insiste: “Mas você tem que aceitar, Gogher. Dói um pouquinho no começo, mas a vida continua, e os seus ferimentos de guerra estarão logo curados. Só peço um único favor – não seja tão duro na queda. Posso, papai?” (BRECHT, 1993, p. 188) Ora, aquele que se casa com a princesa, herda o governo do reino ao receber a capa do primeiro Imperador Mandchu, fundador da China. No momento do casamento, a capa desaparece. É reconhecido que houve uma traição. Turandot tenta culpar o guardião do templo onde a capa é admirada: “Ele deve ter tido frio, papai”. O Imperador minimiza a relevância dessa traição: “Mas era uma capa ordinária, toda remendada” (BRECHT, 1993, p. 190). Gogher Gogh não hesita e mostra que o Imperador não tem saída: “Mesmo o ordinário é raro hoje em dia. Se o senhor não tivesse escondido o algodão. Ao casamento, senhores!” (BRECHT, 1993, p. 190) Ouvem-se tambores e o grito estridente de Turandot. Ela se dá conta que nem a vontade dela ou de seu pai, e nem mesmo a razão têm poder contra aquele que provou ser o homem mais inteligente da China. Ele deu à força o que lhe pertence por direito, e assim logrou preservar o império de algodão e o poder imperial. O povo, batido, reorganiza-se nas montanhas. É para lá que Sen, o velho camponês que vai a Pequim com seu netinho para estudar o tuísmo, resolve se dirigir. O pequeno Eh Feh tenta compreender o que se passa, e pergunta ao avô: “Quer dizer que os tuis vão continuar a existir mesmo quando Kai Ho distribuir as terras?” Sen acha graça: “Não por tanto tempo assim. Vamos todos ter grandes campos e então todos vamos poder fazer grandes estudos” (BRECHT, 1993, p. 185). Bibliografia: BRECHT, Bertold. Turandot e o congresso das lavadeiras. In Teatro completo, vol. 10. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1993. DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo – ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016. __________ Comum – ensaio sobre a revolução no século XXI. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2017. Versão digital. ENGELS, F. Anti-Dühring, ou a subversão da ciência pelo Sr. Eugênio Dühring (Parte II – Economia Política, Capítulo VI: Trabalho simples e trabalho complexo). Tradução de Isabel Hub e Teresa Adão. Lisboa: Edições Afrodite, 1971. HARVEY, David. Neoliberalismo: história e implicações. Tradução de Adail Sobral e maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 2008. _________ “Reflexões sobre ‘O capital’, de Thomas Piketty”. 24/05/2014. 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Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. Coordenação e revisão de Paul Singer. Coleção Os economistas Vols. IV e V. São Paulo: Nova Cultural, 1986. MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã - Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007. PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. Versão digital. _____________ Entrevista a Marc Bassets, 24/11/2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/22/economia/1574426613_189002.html _____________ Entrevista a Marc Bassets, 23/09/2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/21/cultura/1569078725_248388.html PRADO, Eleutério. Comum: uma alternativa política ao neoliberalismo. 06/11/2017. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2017/11/06/comum-uma-alternativa-politica-ao-neoliberalismo/ RAUBER, Isabel. Resenha de Capital e ideologia. 07/02/2020. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596131-o-cometa-piketty-sobre-o-livro-capital-e-ideologia RICARDO, David. Princípios de economia política e tributação. Tradução de Paulo Henrique Ribeiro Sandroni. Coleção Os Economistas. São Paulo: Nova Cultural, 1996. SMITH, Adam. A riqueza das nações. Vol I. Tradução de Alexandre Amaral Rodrigues e Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2003. [1] Piketty formula três leis fundamentais do capitalismo, mas que redundam nisso: a ampliação do capital é mais veloz que o crescimento econômico. São elas: a primeira, α = r x β, em que α é a participação do capital na renda nacional, r é o retorno do capital e ß é a relação estoque de capital/renda e configura uma tautologia; a segunda, β = s/g, em que a razão estoque de capital/renda (ß) é uma relação entre taxa de poupança (s) e taxa de crescimento (g); a terceira, r > g, relação entre o retorno do capital (r) e a taxa de crescimento (g), em que o primeiro é superior à segunda. [2] Ver entrevista sobre Capital e Ideologia, disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/21/cultura/1569078725_248388.html Ao ser perguntado “Por que os bilionários devem pagar 90%? Por que esse número e não outro?”, ele responde: “90% para que tem um bilhão de euros significa que ficaria com 100 milhões de euros. Com 100 milhões você ainda pode ter um certo número de projetos na vida.” [3] Entrevista disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/22/economia/1574426613_189002.html [4] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/22/economia/1574426613_189002.html [5] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/22/economia/1574426613_189002.html [6] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/22/economia/1574426613_189002.html [7] “O valor torna-se, portanto, valor em processo, dinheiro em processo e, como tal, capital. Ele provém da circulação, entra novamente nela, sustenta-se e se multiplica nela, retorna aumentado dela e recomeça o mesmo ciclo sempre de novo. D – D’, dinheiro que gera dinheiro – money which begets money – diz a descrição do capital na boca de seus primeiros tradutores, os mercantilistas” (MARX, C, I, 1, 1985, p. 131). [8] https://blogdaboitempo.com.br/2014/05/24/harvey-reflexoes-sobre-o-capital-de-thomas-piketty/ [9] Embora hoje, na conjuntura de estagnação estrutural, as colônias diretas e a espoliação violenta voltem a aparecer como centrais para a reprodução dos capitais centrais e de seu domínio, como atestam o caso da Palestina e a destruição da Síria. [10] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/22/economia/1574426613_189002.html [11] “(...) impressiona ler uma proposta supostamente superadora do capitalismo que desconheça as previsíveis reações de classe dos capitalistas e proponha, ou espere, que esses renunciam a seus interesses e a seu poder ancorado nas sociedades proprietárias-desigualitárias por eles construídas, interessados em dar participação aos trabalhadores para repartir – mediante votos – seus bens e lucros em prol de um bem-estar social, alheio ao mundo desenhado por eles.”(RAUBER, Isabel. Resenha de Capital e ideologia, Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596131-o-cometa-piketty-sobre-o-livro-capital-e-ideologia) [12] Resulta ainda da exploração da periferia do capitalismo, da ação “de sugar mais-valia de outros lugares” (HARVEY, 2008, p. 84). [13] O neoliberalismo significa um ataque à classe trabalhadora, voltado a quebrar sua organização. Só a título de exemplo, Harvey escreve a respeito do setor da mineração de carvão na Inglaterra: “Thatcher provocou uma greve dos mineiros em 1984 ao anunciar uma onda de reorganizações na estrutura do trabalho e o fechamento de minas (o carvão era importado era mais barato). A greve durou quase um ano, e apesar de muita simpatia e apoio públicos, os mineiros perderam. A espinha dorsal de um elemento nuclear do movimento trabalhista britânico fora quebrada” (HARVEY, 2008, p. 47). [14] PIKETTY, apud RAUBER, I. Resenha de Capital e ideologia. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596131-o-cometa-piketty-sobre-o-livro-capital-e-ideologia [15] Não posso deixar de me lembrar aqui de um poema satírico de Heinrich Heine, que parece ter sido escrito para eles: "Índole pacífica. Desejos: cabana modesta, telhado de palha, porém uma boa cama, comida gostosa, leite e manteiga bem frescos, flores em frente à janela, belas árvores defronte à porta, e se o bom Deus quiser me fazer totalmente feliz, que me conceda a alegria de ver, nessas árvores, cerca de seis ou sete de meus inimigos enforcados. - De coração comovido hei de perdoar, antes de suas mortes, todas as infâmias que me infligiram em vida - sim, temos que perdoar nossos inimigos, mas não antes de serem enforcados. - Perdão, amor e compaixão." [16] A palestra de David Harvey está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=BGmEUR3gDew&feature=emb_rel_pause Cito as passagens já transcritas de sua fala por Jorge Martin, em “David Harvey against revolution: the bankruptcy of academic “Marxism”, publicado em 25 de junho de 2020, no site “Defense of Marxism”, disponível em https://www.marxist.com/david-harvey-against-revolution-the-bankruptcy-of-academic-marxism.htm?fbclid=IwAR1RHYVeiLT_DN5Vq9Lvpi6TiU19ry_L0nW9r4igVsTuXjgq4SykcPQ6ZU8 [17] “Durante a revolução chilena de 1971-73, diante de uma paralisação reacionária dos caminhoneiros, os bairros operários estabeleceram as Juntas de Abastecimento Popular para garantir a distribuição de alimentos. Durante a Revolução Espanhola, as organizações operárias assumiram a gestão das fábricas, dividiram as propriedades rurais e organizaram a distribuição de alimentos, quando os capitalistas fugiram para o campo fascista. Na greve geral francesa de maio de 1968, quando 10 milhões de trabalhadores entraram em greve e ocuparam as fábricas, os produtores camponeses organizaram o abastecimento das cidades sob o controle dos comitês de trabalhadores. Na Venezuela, o lockout patronal de 2002-03 foi superado pela ação dos próprios trabalhadores, que assumiram as instalações da petroleira e a dirigiram sob seu próprio controle, além de desencadear um amplo movimento de tomadas de fábricas e controle operário” (MARTIN, 2020).
- Uma revisita à “democracia como valor universal”
por Wesley Sousa Uma das discussões referentes à teoria social contemporânea mais proeminente é o problema da democracia. Novas literaturas têm apontado, cada vez mais, que a democracia passou a ser um problema relativamente recente na teoria política [1]. Com ao advento da teoria socialista e a crítica impenitente ao capitalismo (advinda de Marx, Engels e do marxismo), os impulsos das novas visões de mundo foram surgindo a fins de incorporarem as noções democráticas no interior do Estado-nação, tais como as demandas civis vinculadas ao sufrágio universal e os direitos políticos ligados à democracia representativa (liberdade de ir e vir, etc.) – sob a tutela do liberalismo [2]. Aqui, porém, não é meu objetivo esclarecer como se deu essa preocupação com a democracia no plano político da sociedade civil-burguesa. Apenas pretendo apontar que, ao contrário do que se poderia pensar, a democracia é um substantivo que não sobressalta ao longo da história humana de modo arbitrário. E dizer que ela supostamente seria universal, isso não acrescenta nenhum predicado [3]. Nesse pressuposto é que faço essa revisita ao ensaio supracitado. Pensando nisso, o propósito deste meu pequeno texto é modesto. Trata-se, todavia, de analisar a linha argumentativa que faz acreditar que a democracia poderia ser, então, um valor universal [4]. Argumento este que se encontra no conhecido ensaio, publicado em março de 1979 – ou seja, durante a ditadura militar brasileira –, do sociólogo e crítico literário Carlos Nelson Coutinho. O ensaio apareceu no vol. 9 da Revista Encontros com a Civilização Brasileira, cujo título é “A democracia como valor universal”. De fato, foi significativo com a nova intelectualidade de esquerda do período, e nos anos anteriores às demandas das Diretas Já. O ensaio de CNC, por sua vez, tem duas linhas-mestras argumentativas em seu escopo. A primeira dessas questões seria a de “indicar como o vínculo socialismo-democracia é parte integrante do patrimônio categorial do marxismo”; já a segunda, referente à problemática de mostrar “a renovação democrática do conjunto da vida nacional”, segundo a qual, não podendo “ser encarada apenas como objetivo tático imediato, mas aparecendo como o conteúdo estratégico da etapa atual da revolução brasileira” [5]. Nesse sentido, o texto se divide em dois itens, a saber: 1) Algumas questões de princípio sobre o vínculo entre socialismo e democracia política e 2) O caso brasileiro: a renovação democrática como alternativa à “via prussiana”. Em outras palavras, a intenção do autor era esboçar uma justificativa teórica nos cânones do marxismo sobre o problema, logo após vislumbrar uma alternativa política no Brasil, ou seja, uma visão estratégica para o caminho da revolução brasileira. Com isso, as questões de princípio se ligam às questões nacionais hodiernas. Aqui não é meu objetivo tratar especificamente do debate no interior do marxismo sobre o vínculo do socialismo com a democracia (o debate de Lenin, a partir de Marx, sobre o caráter da socialdemocracia nascente colocado no ensaio, por exemplo, pois isso por si só já daria outro escrito de caráter teórico-filosófico). Apenas destacaria que, ao partir das palavras de CNC, a linha argumentativa do texto segue o seguinte fio condutor: [...] o conjunto das liberdades democráticas em sua forma moderna [...] tem sua gênese histórica nas revoluções burguesas, ou mais precisamente, nos amplos movimentos populares que terminaram (mais ou menos involuntariamente) por abrir o espaço político necessário à consolidação e reprodução da economia capitalista. [6] Entretanto, ele adverte que a “democracia socialista” não poderia ser uma continuidade institucional dessa concepção. Para isso, ele argumenta partindo de princípios da filosofia marxista, segundo os quais “quando falamos de hegemonia, colocamos também um ponto de discriminação entre o liberalismo e a democracia, ou, noutras palavras, entre a concepção burguesa e a concepção marxista da democracia. [7] Ademais, com relação à democracia é onde pretendo fazer algumas pontuações no que se deriva dessa crítica do Estado. A base de CNC se apoia nos cânones do marxismo, inclusive em Rosa Luxemburgo. Um pouco diferente de Coutinho, em Luxemburgo a defesa da democracia não é uma defesa nem formal, nem de princípios “universais”, pois ela acerça uma abolição da democracia liberal, ou seja, superação a ditadura do capital (democracia burguesa) e erigir uma democracia social, ou seja, uma transformação revolucionária, e não reformas no âmbito do capital, no corpus político do Estado. Para cristalizar, é assim que Luxemburgo, por exemplo, ao escrever Reforma ou revolução?, na virada do séc. XIX ao XX, fez tratar da política alfandegária e do militarismo: o desenvolvimento da burguesia, no sentido que exerceram, até certo ponto, “papeis revolucionários”, indispensáveis na história do capitalismo – acumulação e expansão do capital pela violência e expropriação direta e vertiginosa; o Estado, como uma locomotiva da reação, adquire funções cada vez mais controladoras, gerenciais e, por último, descarrilando-se ao eminente aparato repressivo e violento em sua universalização histórica específica. De modo direto, Luxemburgo assevera: “O desenvolvimento da democracia no qual Bernstein [o ideólogo da socialdemocracia] também vê como meio da instauração gradual do socialismo, não contradiz, mas, pelo contrário, corresponde inteiramente à mudança do Estado descrita acima”. [8] Observa-se ainda como esta crítica se coloca: segundo a autora polonesa, a democracia, isto é, o controle social, estaria correlacionada com a expansão militarista e do colonialismo, ou melhor, o imperialismo. Assim, “as formas democráticas da vida política são um fenômeno que expressa de maneira mais forte a evolução do Estado para a sociedade”. A democracia, por seu turno, não é mais que um arranjo concessionário questionado a cada passo da luta de classes sob o capitalismo. Tão logo vê-se que ela não é um valor universal que ultrapasse limites próprios de seu conteúdo. Luxemburgo é bastante clara ao dizer que a democracia apresenta como “interesses de toda a sociedade na organização estatal” na sociedade de mercado. Em outros termos, muito menos que uma universalidade, a democracia é um produto histórico de conflitos e diferenças sociais, já que aparece como um meio tipicamente capitalista de amadurecer e expressar as contradições capitalistas.[9] Chega a ser paradoxal tal questão como se apresenta no ensaio do autor, porque o pressuposto de CNC, embora tenha partido das teses lukácsianas, mas que ele próprio, novamente, as distorceu nas ideias centrais.[10] Vejamos: o valor, para se realizar, necessitaria de uma substancialidade social, sem a qual o próprio estabelecer do que sejam tais valores perderia o seu fundamento objetivo. Em outras palavras, o valor social não tem um conteúdo que ele se efetive como uma situação “universal” de partida. Se a democracia pode ser algum valor, ela seria somente um valor da forma social-capital (igualdade formal da venda e compra da força de trabalho). Então, a democracia, em si, seria “universalmente democrática” na livre exploração do trabalho? No argumento de CNC a ideia é a busca de se fazer valer com uma explicação mais ou menos nominal da “democracia socialista” nos seguintes termos: “A democracia socialista é, assim, uma democracia pluralista das massas; mas uma democracia organizada, na qual a hegemonia deve caber ao conjunto dos trabalhadores representados através da pluralidade dos seus organismos” [11]. Observe que essa centralidade do político e a suposta universalidade dos valores se configura no ensaio de CNC de modo explícito. Ao que me interessa, porém, precisaria ao autor entender a democracia como um elemento, não somente ponto chave, mas como um processo contínuo que vai e vem na forma-gerencial da sociedade de mercado: a livre circulação de mercadorias. Tanto é assim que, no início, não foi surpresa alguma que vários autores liberais foram escravocratas; do mesmo que, nesse período, ainda estavam minoritários aqueles democratas [12]. Assim, a democratização se formou num jogo constante dentro das Instituições estatais, pressionadas por novas necessidades sociais que a sociedade burguesa vivenciou desde então na política da democracia-liberal. Contudo, a questão dos reconhecimentos políticos e jurídicos que foram se consolidando ao longo da sociedade burguesa, pode ser entendida como “reivindicação dos princípios de justificação racional” dentro da sociedade, por aqueles grupos subalternos, ainda que dentro do âmbito da teoria liberal. [13] No diapasão que nos interessa, seria justamente a supressão da “democracia formal” de hoje, cujo processo de mudança da substancialidade social (revolucionária), que suprima a relação-capital que se coloca em jogo. Em outras palavras, não é apenas a amplitude das instituições de base (um Estado ampliado), mas o colidir-se imediatamente contra elas para colocar em processo a transformação rumo ao socialismo. Se existe ligação entre marxismo e democracia, certo que ela não é um atributo universal da teoria, do qual jorra no reconhecimento da sociedade de classes como apanágio dos problemas. E nisso, vale dizer, a envergadura teórica de Coutinho deturpa, em parte, uma teoria que julgou advogar em favor dela. [14] Novamente CNC: O socialismo não consiste apenas na socialização dos meios de produção, uma socialização tornada possível pela prévia socialização do trabalho realizada sob o impulso da própria acumulação capitalista; [...] uma socialização também aqui tornada possível pela crescente participação das massas na vida política, através dos sujeitos políticos coletivos que as vicissitudes da reprodução capitalista impõem às várias classes e camadas sociais prejudicadas pela dinâmica privatista dessa reprodução. [15] Vejamos. A luta pela democracia, de fato, é um valor, mas não um valor que autolegisla a si mesma: é calcada nas formas de gestão da vida social dentro da luta de classes, nos conflitos de grupos e de minorias, também. É cabível pensar que no momento da transição da ditadura bonapartista brasileira à “democracia”, tanto a esquerda quanto a direita fizeram seus acordos a assim chamada “transição pelo alto”. Um acordo, cujo qual não foi, sem dúvidas, uma deliberação “rumo ao socialismo”, mas ao contrário: o recrudescimento das velhas estruturas cambaleantes do Estado brasileiro. No texto de Coutinho também fala de uma suposta renovação democrática: [...] essa renovação aparece, portanto, não apenas como a alternativa histórica à “via prussiana”, como o modo de realizar em condições novas as tarefas que a ausência de uma revolução democrático-burguesa deixou abertas em nosso país, mas também o processo da criação dos pressupostos necessários a um avanço do Brasil rumo ao socialismo. [16] Contudo, o que pressupõe a “democracia socialista” seria justamente a soberania popular, ou seja, ao contrário do que a doutrina da democracia tem em seu gérmen: instituições fortes. Essa noção de instituições fortes vem desde o liberalismo clássico e com suas ressonâncias. Isso se mostra que mesmo naqueles republicanos clássicos dos primeiros Estados consolidados, eles não eram, propriamente, grandes democratas no sentido comum do termo hoje. [17] Pensando o caso brasileiro, é verdade que CNC ao redigir este ensaio ainda se vivia a ditadura militar. Reconhece e nomeia os processos da “via prussiana”, ou melhor, a “via colonial” brasileira dos rearranjos da vida política e econômica do país. Na ditadura, isso também foi presente. O primeiro passo dessa transformação seria: “depois de consolidar um regime de liberdades fundamentais, para o que se torna necessária uma unidade com todas as forças interessadas nessa conquista e na permanência das ‘regras do jogo’ a serem implantadas por uma Assembleia Constituinte dotada de legitimidade”.[18] O segundo passo seria aquilo que já comentamos acima: a participação de base popular, uma democracia de massas, de caráter anti-imperialista, dando substrato ao que chamou de “uma sociedade socialista fundada na democracia política”.[19] É certo que a luta social, em nosso contexto, pautada pela superação do capitalismo tem sido muito difusa. Não se trata apenas de Brasil, mas principalmente, global. Há uma crise do capitalismo, assim como há uma crise de ideias. As derrotas históricas acontecem, e apenas tendo a real dimensão delas é que conseguimos avançar para além do estado de coisas existentes. Quando as expectativas e as forças viventes se retroagem no Geist [Espírito] da história, sobram sintomas retrógrados alimentados por aqueles que estão aquém da grandeza das realizações humanas e são jogados em uma vida destroçada de real sentido autêntico. Falar hoje em socialismo quando o horizonte de possibilidades está fechado é ainda uma tarefa inglória. Porém, grandes feitos históricos só puderam se reafirmar depois de grandes tensões – e muitas delas negativas – até se consolidarem. Depois dessa minha revisita ao ensaio de Carlos Nelson Coutinho – um nome conhecido no pensamento da esquerda brasileira –, faço-me encerrar meu texto afirmando que mais de 40 anos se passaram da publicação, e os argumentos que CNC defendeu, hoje podem não serem mais aplicáveis ao nosso momento – já que vivemos, enfim, numa democracia –, mas, de fato, seus princípios ainda seguem ligados à uma esquerda (no plano institucional) que incansavelmente busca uma democratização como valor universal irrevogável e irrestrito. Haveria, ainda, algum valor nisso? Ou ainda: será mesmo que a democracia algum dia servirá como um caminho real de chegada ao socialismo, ou precisamos destruir tudo que está em ruínas hoje para a criação do novo (um novo mundo, de fato, democrático)? NOTAS 1. A “contra-história” desse processo pode se ver em: LOSURDO, Domenico. Contra-história do liberalismo. Tradução Giovanni Samerano. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2006. 2. Ver: LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Tradução Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: UFRJ; São Paulo: UNESP, 2004. 3. Para esclarecer: o texto, no seu decorrer, terá como pressuposta a ideia que “democracia e ditadura” são duas formas distintas de dominação de classe, mas que, nem por isso, uma “ditadura” militar seja “igual” à uma democracia “representativa”. 4. COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. Vol. 9, p. 33-47. Usamos a versão original de 1979 (online). Disponível em: < http://www.danielherz.com.br/system/files/acervo/ADELMO/Artigos/A%20Democracia%20como%20Valor%20Universal.pdf >. Acessado em: 09 de fevereiro de 2022. 5. COUTINHO, Carlos Nelson. op. cit., p. 35. Itálicos do autor. 6. Idem, op. cit., p. 36. 7. COUTINHO, op. cit., p. 39. Itálico do autor. 8. LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou Revolução?, 2018, p. 34. 9. LUXEMBURGO, op. cit., 34-5. 10. Vale ressaltar que CNC foi um dos responsáveis pela inserção do pensamento do filósofo György Lukács no Brasil. 11. COUTINHO, op. cit., p. 40. 12. LOSURDO, op. cit., 2006. 13. Para uma discussão contemporânea do problema, a partir das ressonâncias da teoria de John Rawls em “A teoria da Justiça” (1971), ver: FORST, Rainer. Contextos de Justiça. Tradução Denilson Werle. São Paulo: Boitempo, 2010. 14. Essa conclusão é baseada na leitura do artigo de João Quartim de Moraes. “Contra a canonização da democracia”. São Paulo: Crítica Marxista; Boitempo, v. 1, ano 12, 2001, p. 9-40. Denso artigo que, entre outras coisas, rebate frontalmente as teses de Coutinho e suas bases do chamado “eurocomunismo”. 15. COUTINHO, op. cit., p. 38. 16. Idem, op. cit., p. 42. 17. TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. Tradução Eduardo Brandão. Prefácio, bibliografia e cronologia François Furet. São Paulo: Martins Fontes, 2015. “Na América, o princípio da soberania do povo não é oculto ou estéril, como em certas nações; ele é reconhecido pelos costumes, proclamado pelas leis; estende-se com liberdade e chega sem obstáculos às últimas consequências”, p. 65. Disponível em: < https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2804534/mod_resource/content/0/tocqueville_a-democracia-na-america-vol-1.pdf >. Acessado em: 20 de abril de 2022. 18. COUTINHO, op. cit., p. 45. 19. Idem, p. 46.
- Sincretismo entre Economia Vulgar e a Crítica Utópica ao Capitalismo:
Contribuição Marxista Para a Crítica da Teoria de J. S. Mill por Warlen Nunes dos Santos INTRODUÇÃO Neste artigo, busco demonstrar que a doutrina de John Stuart Mill se assenta na tentativa sincrética de conciliar os dogmas da economia vulgar com as propostas do socialismo utópico. Esse sincretismo, de certa maneira, expressa as contradições insuperáveis que estão envoltas em seu sistema pois, esse, foi se constituindo de forma eclética, recolhendo categorias e princípios de várias doutrinas teóricas de sua época como: a economia política clássica, a economia vulgar e o socialismo utópico. Em um primeiro momento, apresento a compreensão de que a crítica da teoria social de Mill se detém sobre as consequências do regime de propriedade privada e essas são tomadas como problemas que se originam nas formas de distribuição. A solução apontada por Mill se dá com a universalização do acesso à educação das massas e pela redução da população. Assim, para o autor, tanto o socialismo como o regime de propriedade privada possibilitam a construção de uma sociedade justa, desde que ambos se inclinem para princípios mais justos de distribuição. Na segunda parte do artigo, recupero a crítica operada por Marx às posições sincréticas de Mill. Ademais, para Marx, a obra de Mill se insere dentro de um processo mais amplo de decadência ideológica em que está envolta a sociedade burguesa – esse processo é ocasionado pela explicitação das lutas de classe entre a burguesia e o proletariado. Tal processo produz uma modificação no que tange à teoria social – os intelectuais terão que tomar partido diante dos conflitos sociais. Nesse sentido, duas posições do ponto de vista burguês se tornaram determinantes, a primeira toma a defesa e justificação da ordem. Marx as designou como de cunho apologético. Já a segunda, acompanha a obra de Mill na tentativa de conciliar a economia do capital com as demandas dos trabalhadores. Por último, apresento a concepção de socialismo de Marx e como essa se constitui pela crítica radical da sociedade burguesa, pois a alternativa socialista se coloca pelas próprias contradições engendradas pelo sistema capitalista. 1. O AMÁLGAMA DE VÁRIAS DOUTRINAS A obra de John Stuart Mill é reconhecida por acadêmicos e estudiosos das ciências humanas em geral e da filosofia ou da economia em particular como um clássico da tradição liberal. Além disso, Mill também fez fama sendo reconhecido como membro da corrente filosófica do utilitarismo da qual junto com Jeremy Bentham é um dos mais destacados e conhecidos autores. Outro aspecto que deixará marcas na obra de Mill é sua atuação junto ao grupo que ficou conhecido como “filósofos radicais”, grupo conhecido por sua proposta de auxiliar na introdução de reformas legais na rígida legislação inglesa. Assim, o próprio Mill definia o perfil ideológico do grupo: “[…] uma combinação do ponto de vista de Bentham com o da economia política moderna e com o metafísica hartleiana” (MILL, 1981, p. 107-8). Ademais, o próprio Mill também se reivindicava um socialista. Como afirma o filósofo: “em suma, eu era um democrata, mas, não menos importante, também um socialista” (MILL, 1981, p.238). Sem exagero, podemos dizer que a obra de Mill se constitui de um mosaico forjado pelo amálgama do liberalismo, do utilitarismo, da economia política e da nascente tradição socialista de sua época (socialismo utópico). É esse sincretismo que torna o espólio teórico do autor um objeto de reivindicação de vários grupos sociais. Como foge ao escopo deste capítulo uma análise de conjunto da obra de Mill, irei me deter aos aspectos da economia política e da crítica social do autor, com relação à sociedade capitalista. É por influência de seu pai James Mill que nosso autor em questão entra em contato com a economia política, passando a se considerar um dos continuadores do caminho aberto pelo famoso economista inglês David Ricardo. Ao lado de Adam Smith, autor do clássico A Riqueza das Nações Ricardo, com seu não menos famoso Princípios de Economia Política e Tributação, aparece como um dos maiores nomes da chamada economia política clássica. Ambos são os mais destacados pensadores da teoria do valor-trabalho. Nesta teoria, se demonstra que o valor das mercadorias é determinado pelo tempo de trabalho gasto na sua fabricação. No caso específico de Smith, se acrescenta a capacidade que o trabalho tem de comandar outros trabalhos. Todavia, a economia política pós Smith e Ricardo se envereda por um caminho de negação da teoria do valor-trabalho, advogando em favor ou da teoria do valor utilidade, ou mesmo, a teoria da utilidade marginal em que o valor é determinado pela relação entre a satisfação subjetiva gerada pelo bem e a escassez deste mesmo ou da teoria dos custos de produção (valor determinado pela soma dos fatores de produção). Mill, como defendo neste artigo, ficará no meio do caminho entre a economia política clássica e a chamada economia vulgar. Mill ganha fama internacional com seu livro Princípios de Economia Política (1848). É nesta obra que temos a caracterização de Mill sobre a sociedade capitalista e, por conseguinte, sua avaliação a respeito do socialismo. Na primeira versão da referida obra, Mill se mostrou bastante crítico ao socialismo, caracterizando esse regime como uma “tirania da sociedade sobre o indivíduo”. Essa posição de Mill será reavaliada nas edições subsequentes do livro. Vejamos como o próprio autor nos relata sobre essa mudança de posição. Na primeira edição, as dificuldades do socialismo foram enunciadas com tanta firmeza, que o tom era, em geral, de oposição a ele. Nos dois anos que se seguiram, muito tempo foi dedicado ao estudo dos melhores escritores socialistas do continente, articulado com uma meditação e discussão sobre toda a gama de tópicos envolvidos na controvérsia que gravitava no interior desse debate. O resultado foi que a maior parte do que havia sido escrito sobre o assunto na primeira edição foi cancelado e substituído por argumentos e reflexões que representam uma opinião mais avançada (Mill, 1981, p.241). Observamos que essa formulação parte do diagnóstico que o regime atual de propriedade privada traz consigo graves problemas sociais – entre eles, a injustiça na distribuição dos frutos do trabalho, a péssima educação das massas, o direito de herança sobre a propriedade como forma de perpetuar a desigualdade de riquezas e o desmedido aumento populacional que ocasiona um agravamento das injustiças em função da escassez de alimentos. Nesse sentido, a avaliação em relação à possibilidade de uma sociedade pautada na justiça social e na liberdade dos indivíduos passa pela análise das “vantagens comparativas” entre o regime da propriedade privada (não como ele se encontra em seu estado atual, mas como este deveria ser), com o regime da propriedade coletiva (socialista ou comunista). Mill rejeitou as teorias que advogam pela impossibilidade da economia socialista embora ele acreditasse que tanto a propriedade privada quanto o socialismo deveriam, para se tornarem regimes justos, realizar duas das condições que são o pressuposto sobre o qual repousa a possibilidade de extirpar as mazelas sociais. Como argumenta o filósofo: Precisamos também supor realizadas duas condições, sem as quais tanto o comunismo como quaisquer outras leis ou instituições só poderiam tornar a condição da massa da humanidade pior e miserável. Uma delas é a educação universal e a outra é uma devida limitação da população da comunidade (MILL, 1996, p. 268). Nesse sentido, “se cumpridas essas duas condições (sejam elas: a universalização da educação e a limitação da população), não poderia haver pobreza, mesmo no regime das atuais instituições sociais” (Mill, 1996, p.268, acréscimos do autor). Assim, para Mill, o processo de educação das massas, que fariam com que essas, ao se apropriarem da educação, compreenderam que a importância do princípio da distribuição justa – combinado com a limitação da lei Malthusiana da população – poderia criar as condições para superar o estado de miséria da sociedade. O estranho é que um dos argumentos de Malthus contra as políticas sociais em favor dos pobres é justamente que se o estado destinar políticas sociais a esse segmento, isso favoreceria o seu crescimento populacional. O que Malthus propõe para a diminuição do aumento populacional é a abstinência consciente por parte dos pobres em relação a ter filhos e, essa só seria possível, se fosse cultivado nas massas o temor da pobreza. Por isso, qualquer reformador social acaba contribuindo para o aumento da população ao colocar para as massas a esperança de superação de sua miséria via reforma social. Mill tem posições tão contraditórias que é capaz de defender a necessidade de reformas sociais tendo como pressuposto uma teoria que defende justamente a impossibilidade de reformas sociais. Assim como os primeiros socialistas, Mill pensa o socialismo como uma questão de natureza moral, como uma correção de princípios pois, se corrigido, o princípio injusto da forma em que é distribuída a proporção entre a remuneração e o trabalho, a sociedade não permitirá que os ociosos se apropriem da abstinência alheia. Dessa maneira, Mill recolhe da economia vulgar várias categorias, por exemplo, as categorias de abstinência (Sênior) e teoria da população do reacionário Malthus. Da escola ricardiana ele toma a crítica ao regime de propriedade privada pela distribuição injusta. No que diz respeito ao socialismo utópico, a corrente que mais lhe agrada é o Fourierismo, como verificado na obra do autor: Esse sistema não contempla a abolição da propriedade privada e nem mesmo a da herança; pelo contrário, leva em conta, declaradamente, como um elemento na distribuição da produção, tanto o capital como o trabalho. [...]. Na distribuição, um determinado mínimo é primeiro dado para a subsistência de cada membro da comunidade, capaz de trabalhar ou não. O resto da produção é repartido em porções a serem determinadas de antemão, entre os três elementos: trabalho, capital e talento (MILL, 1996, p.272). Portanto, em Mill, tenta-se conciliar os pressupostos que justificam a economia capitalista com as propostas de reforma social que tenham como meta melhorar as condições de vida dos trabalhadores. De acordo com Hobhouse, “Mill é a pessoa mais fácil do mundo para condenar em termos de inconsistência, incompletude e falta de sistema bem arrematado [rounded system] (HOBHOUSE, 1945, p. 46). Não obstante, o próprio Hobhouse considera que o pensamento de Mill sobreviveria a muitos sistemas mais bem elaborados do que o dele. Passaremos agora para a crítica operada pela economia política marxista e como essa tradição realiza uma crítica diametralmente antagônica ao pensamento de Mill. 2. A CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA MARXISTA A JOHN STUART MILL Nesta seção, apresento o pensamento de John Stuart Mill, tal como este se delineia em alguns momentos da Crítica da Economia Política marxista. Para Marx, o filósofo em questão não pode ser considerado um economista vulgar, como nos adverte: “ […] se cabe censurar homens como J. S. Mill pela contradição entre seus velhos dogmas econômicos e suas tendências modernas, seria absolutamente injusto confundi-los com a tropa dos apologistas da economia vulgar” (MARX, 2013, p. 686). Paradoxalmente, considero que a posição teórica de Mill se constituiu da mescla sincrética entre elementos da economia vulgar e da crítica utópica ao modo de produção capitalista, pois como também afirmou Marx: “a história da economia política moderna termina, com Ricardo e Sismondi. A literatura político-econômica posterior se perde, seja em compêndios ecléticos, sincréticos, como a obra de J. St. Mill” […] (MARX, 2011, p. 672). Para Marx, toda formação ideal tem determinações materiais e sociais, isto é, o pensamento é condicionado pelo modo de produção e distribuição da riqueza em um período histórico determinado. Assim, apresentaremos a crítica de Marx a Mill no interior do processo histórico em que a burguesia como classe economicamente dominante se torna também politicamente dominante, processo este marcado pela decadência ideológica da burguesia. Tal fase, como argumenta Lukács, "tem início quando a burguesia já domina o poder político e a luta de classe entre ela e o proletariado se coloca no centro do cenário histórico” (LUKÁCS, 1992, p. 51). A partir de então, “a luta de classes assumiu, na teoria e na prática, formas cada vez mais explícitas e ameaçadoras” (MARX, 2013, p.85). Neste período em que a luta de classes se explicita, a burguesia abandona qualquer perspectiva universalista, como fizera anteriormente, defendendo, desde então, seus mesquinhos interesses particulares. É nesta quadra histórica que temos o fim do ciclo “progressista” iniciado pelas revoluções burguesas. Marx constata que este processo produz mudanças ideológicas significativas, principalmente com o aparecimento de ideólogos que se dedicam a justificar a ordem social existente. Estes são, para Marx, verdadeiros apologetas do atual estado de coisas, pois “o lugar da investigação desinteressada foi ocupado pelos espadachins a soldo e a má consciência e as más intenções da apologética substituíram a investigação científica imparcial” (MARX, 2013, p. 86). Vejamos como Marx apreendeu esse processo: Nessas circunstâncias, seus porta-vozes se dividiram em duas colunas. Uns, sagazes, ávidos de lucro e práticos, congregaram-se sob a bandeira de Bastiat, o representante mais superficial e, por isso mesmo, mais bem-sucedido da apologética economia vulgar; os outros, orgulhosos da dignidade professoral de sua ciência, seguiram J. S. Mill na tentativa de conciliar o inconciliável. (MARX, 2013, p. 87). Esses são os dois grupos em que se dividiram os ideólogos da burguesia: uns eram pragmáticos e ambiciosos que colocavam suas “teorias” a serviço da legitimação e naturalização do estado de coisas, enquanto outros se juntaram a Mill no trabalho de “reconciliar o inconciliável” (ibidem). Nesse sentido, Mill aparece como aquele pensador honesto, sensível às questões sociais de sua época, embora o resultado que se obtém com seu esforço teórico, seguindo a crítica de Marx, não passa da tentativa de conciliar a economia política do capital com as reivindicações dos trabalhadores. J. S. Mill inicia suas elaborações sobre economia política em um período em que a economia política clássica estava em franco processo de dissolução, como nos adverte Isaac Rubin (2014), um dos proeminentes intérpretes da teoria marxista do valor: “Depois de Ricardo, o pensamento econômico burguês voltou-se cada vez mais para a defesa da propriedade burguesa (e fundiária) contra os ataques dos socialistas” (RUBIN,2014, p. 425). Estamos diante do advento da tradição teórica que se tornaria dominante em economia política, aquela que Marx designou como economia vulgar, ou seja, a economia pós- Smith e Ricardo. Vejamos a distinção que Marx faz entre economia política clássica e economia vulgar. Para deixar esclarecido de uma vez por todas, entendo por economia política clássica toda teoria econômica desde W. Petty, que investiga a estrutura interna das relações burguesas de produção em contraposição à economia vulgar, que se move apenas no interior do contexto aparente e rumina constantemente o material há muito fornecido pela economia científica a fim de fornecer uma justificativa plausível dos fenômenos mais brutais e servir às necessidades domésticas da burguesia mas que, de resto, limita-se a sistematizar as representações banais e egoístas dos agentes de produção burgueses como o melhor dos mundos, dando-lhes uma forma pedante e proclamando-as como verdades eternas (MARX, 2013, p.155). Enquanto na economia clássica havia uma pretensão científica de seus pensadores – pois estes estavam movidos pela necessidade de oferecer à burguesia ascendente aportes teóricos na sua luta contra a aristocracia fundiária – os apologetas da economia vulgar abandonaram qualquer pretensão científica se limitando a sistematizar as representações egoístas e banais dos agentes da produção, transformando essas representações em “verdades eternas”. Dois pontos são aqui característicos do método da apologética econômica. Em primeiro lugar, a identificação da circulação de mercadorias com a troca imediata de produtos, mediante a simples abstração de suas diferenças. Em segundo lugar, a tentativa de negar as contradições do processo capitalista de produção, dissolvendo as relações de seus agentes de produção nas relações simples que surgem da circulação de mercadorias (MARX, 2013, p. 187). É neste contexto de dissolução da escola clássica que o pensamento burguês passa a negar as contradições do sistema capitalista e seus efeitos nefastos para os trabalhadores. Mill tem uma postura distinta: se mostra extremamente receptivo às ideias socialistas que circulavam em sua época (socialismo utópico) e se torna um crítico dos efeitos do sistema capitalista. Por exemplo: Mill reconhece os efeitos deletérios para os trabalhadores do desenvolvimento técnico da produção capitalista, como assevera Marx, para John Stuart Mill: “É questionável que todas as invenções mecânicas já feitas tenham servido para aliviar a faina diária de algum ser humano” (MARX, 2013, p.445). Na esteira de Marx, Isaac Rubin argumenta que: Ao mesmo tempo, no entanto, Mill teme a radicalidade da luta de classes e aconselha os trabalhadores a se “comportar como seres racionais”. Assim, vemos que mesmo em sua filosofia social, área em que mais se destacou das ideias de seu pai e de outros liberais do século XIX, Mill se deteve a meio caminho entre o liberalismo e o socialismo. Como os primeiros socialistas, ele pôs o problema do socialismo de uma forma utópica (RUBIN, 2014, p.428). Assim, Mill se apresenta como um dos herdeiros da escola clássica, mas sua lógica eclética o leva a adotar ao mesmo tempo postulados da economia vulgar. Por exemplo: “O sr. John S. Mill, […] reproduz, por um lado, a teoria do lucro de Ricardo e, por outro, filia-se à “remuneration of abstinence” [remuneração da abstinência] de Sênior” (MARX, 2013, p.672). Marx considerava J. S. Mill como um ricardiano menor, já que este se limitava a repetir os vulgarizadores de Ricardo. Embora tenha em parte sua formação referenciada nos clássicos, Mill não produz avanços significativos, acabando por reproduzir grande parte dos equívocos de seus mestres e dos dogmas da apologética econômica. Como analisa Isaac Rubin (2014): De Malthus, ele apropriou a teoria da população: de Say, a doutrina das crises. Como Torrens, ele transformou a teoria do valor-trabalho numa teoria dos custos de produção. Seguindo Baley, ele limitou sua análise ao conceito de valor “relativo”. De James Mill e McCulloch ele aceitou a doutrina do fundo salarial e de Sênior, a teoria da abstinência[…], de Sismondi defendeu fervorosamente a economia camponesa de pequena escala e, seguindo a pegada dos socialistas utópicos, fez a crítica do sistema capitalista. (RUBIN, 2014, p. 431-432). Dessa maneira, o sr. J. S. Mill “ […] registra, com dogmatismo de discípulo, a confusão mental de seus mestres (MARX, 2013, p. 665). Essa apropriação eclética, tanto da teoria clássica como da economia vulgar, deixou marcas e contradições insuperáveis na obra do filósofo britânico. Ao tomar os dogmas e os esquematismos da economia clássica como verdades eternas, Mill acaba reproduzindo justamente as partes mais problemáticas dos clássicos. Tomemos como exemplo de concretude sua interpretação da relação entre leis da produção e distribuição. Estamos diante da seguinte caracterização: “a produção deve ser representada […] como leis naturais eternas, independentes da história, oportunidade em que as relações burguesas são furtivamente contrabandeadas como irrevogáveis leis naturais da sociedade[…]” (MARX, 2011, p. 42). A inépcia de todos os economistas burgueses, e também de J. St. Mill, p. ex., que considera eternas as relações de produção burguesas, mas históricas suas formas de distribuição, mostra que eles não compreendem nem estas nem aquelas (MARX, 2011, p. 635). Desse modo, a contradição interna do sistema de Mill fica evidente. Estamos diante de leis naturais (produção) e de leis históricas (distribuição). Dessa forma, as mudanças sociais só podem ocorrer na distribuição da riqueza (circulação) pois, no seu esquema econômico, a produção é vista como algo natural e eterno. Portanto, Mill acaba como tantos outros socialistas da época identificando que os problemas da sociedade capitalista se dão na esfera da circulação, escorregando assim para a propositura política da “distribuição justa”. Ou seja, ele quer uma sociedade capitalista sem os efeitos nefastos da “distribuição injusta”. Vejamos o que Marx tem a nos dizer sobre o assunto da distribuição em sua obra Crítica ao Programa de Gotha (2012 [1875]): A distribuição dos meios de consumo é, em cada época, apenas a consequência da distribuição das próprias condições de produção; contudo, esta última é uma característica do próprio modo de produção. O modo de produção capitalista, por exemplo, baseia-se no fato de que as condições materiais de produção estão dadas aos não trabalhadores sob a forma de propriedade do capital e de propriedade fundiária, enquanto a massa é proprietária somente da condição pessoal de produção, da força de trabalho, estando assim distribuídos os elementos da produção. Daí decorre por si mesma a atual distribuição dos meios de consumo. Se as condições materiais de produção fossem propriedade coletiva dos próprios trabalhadores, então o resultado seria uma distribuição dos meios de consumo diferente da atual (MARX, 2012 [1875]), p. 34). E segue Marx: O socialismo vulgar (e a partir dele, por sua vez, uma parte da democracia) herdou da economia burguesa o procedimento de considerar e tratar a distribuição como algo independente do modo de produção e, por conseguinte, de expor o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição. (MARX, 2012, p. 34) Mill não se atenta para o fato que a produção é o momento predominante, ou seja, que na produção já se encontra os momentos da distribuição, pois essa já pressupõe a distribuição dos meios de produção entre os proprietários privados e os vendedores da força de trabalho, entre o salário e o lucro (o lucro: forma fenomênica do mais-valor). Nesse sentido, ele acaba por atacar as formas mais aparentes do modo de produção capitalista não indo em sua essência que é justamente a produção do mais-valor. Ademais, é típico do pensamento utópico-reformista se prender nas manifestações fetichistas da sociedade burguesa, buscando corrigir os problemas mais aparentes com teorias éticas, ou seja, com teorias da “justiça social”, da distribuição justa, etc. Contudo, essas teorias não conseguem combater o pressuposto sobre a qual está erguida a sociedade capitalista, quer dizer, não partem do pressuposto que é na produção do valor e do mais-valor que essa ordem social se reproduz de forma incessante – fruto da apropriação “vampiresca”, por parte do capitalista, do trabalho excedente . Essas teorias acabam mantendo a ordem social intacta. Nesse passo, também Proudhon, como expoente do socialismo utópico francês, combatia o dinheiro e deixava intacta a produção de mercadorias da qual o dinheiro é só a forma necessária de expressão do valor interno dessas mesmas mercadorias – ou em um outro registro – propunha introduzir alterações no sistema de crédito (circulação), com seu mítico banco do povo, para combater os juros, sem compreender que os juros são uma parte do mais-valor produzido na esfera da produção. Ao tentar conciliar uma teoria econômica burguesa com uma filosofia social progressista de caráter utópico, Mill vai se enredando por um sistema teórico eclético e inconsistente. Estando no meio do caminho, entre o socialismo e o liberalismo, o filósofo propõe corrigir os excessos do capitalismo, mantendo aspectos contraditórios de seu desenvolvimento. Isaac Rubin, com quem concordo, em História do pensamento econômico (2014) interpreta que: Assim, vemos que, mesmo em sua filosofia social, área em que mais se destacou de seu pai e de outros liberais do século XIX, Mill se deteve a meio caminho entre o liberalismo e o socialismo. Como os primeiros socialistas, ele pôs o problema do socialismo de uma forma utópica. O objetivo é, para o pensador, julgar os “méritos relativos” do capitalismo e do socialismo e conceber o sistema social ideal que deveria ser estabelecido em virtude da perfeição de suas características inerentes (RUBIN, 2014, p. 428-429). Em J. S. Mill, o socialismo deixa de ser a forma finalmente encontrada de organização da produção e distribuição da riqueza, isto é, uma fase inevitável por qual tem que passar a evolução das sociedades humanas a fim de evitar a dissolução e destruição da sociedade por crises econômicas recorrentes, para se tornar algo “desejável ou viável”. Já para Marx o socialismo é a única alternativa ao modo de produção capitalista, pois este último tem como tendência geral de seu processo de desenvolvimento a concentração e a centralização da riqueza e, por conseguinte, o aumento relativo da pobreza das massas trabalhadoras na exata medida em que concentra e centraliza a riqueza e a propriedade em poucas mãos. O processo capitalista de produção tem como determinantes dois aspectos que estão entrelaçados: o social, que pressupõe o estabelecimento de relações entre os homens para produzir sua existência, bem como o técnico material, relação dos homens com a natureza. O primeiro corresponde às relações sociais de produção e o segundo correspondem às forças produtivas. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social (MARX, 2008, p. 47). Com o desenvolvimento das forças produtivas ocasionado pela concorrência entre os próprios capitalistas, a lei do valor, que é a lei reguladora da produção capitalista, passa a ser negada pela própria lógica contraditória desta sociedade. Do ponto de vista das relações de produção burguesa o desenvolvimento das forças produtivas opera uma diminuição do quantum de trabalho que passa a ser incorporado individualmente nas mercadorias, a relação desproporcional entre capital constante e variável afeta a taxa média de lucro (C+V/M). Isso se faz pela elevação da produtividade do trabalho ocasionada pelo constante aperfeiçoamento da maquinaria que eleva a composição orgânica do capital. Por composição orgânica Marx entende a relação entre o capital constante (meios de produção, matérias-primas, instalações etc.) e o capital variável (força de trabalho). Desta maneira, o aumento da produtividade produz proporcionalmente maior investimento em capital constante do que em capital variável. Como consequência deste processo, temos uma tendência à queda na taxa média de lucro mesmo que se aumente a taxa de mais-valor em função da mais-valia relativa. Portanto, a queda da taxa média de lucro é uma resultante necessária da lei da acumulação capitalista que pressupõem a concorrência entre os capitais que leva a incessante busca por maior produtividade, por conseguinte, a crise do capital. É justamente nas crises que as possibilidades revolucionárias se abrem para os trabalhadores. Isso não significa que exista em Marx uma identificação mecânica entre crise do capital e consciência revolucionária, como defendeu certo marxismo determinista. As crises do capital são a forma de manifestação da contradição estrutural entre o desenvolvimento permanente das forças produtivas e a sua não correspondência com as relações de produção burguesa. Portanto, a crise do capital é algo inerente desta sociedade. Assim, é justamente a análise sobre as crises que permite a Marx inferir que não existe possibilidade de melhoras duradouras nas condições de vida da classe trabalhadora na sociedade capitalista. A essa altura, alguém poderia perguntar: qual é a concepção de socialismo de Marx? Para responder tal pergunta, devemos começar pela consideração de que Marx não elaborou um tratado sistemático de como seria a sociedade socialista e nisto ele se diferencia de toda variante utópica do socialismo. Não obstante, estava nas suas intenções um livro no qual ele se ocuparia da dissolução do modo de produção e da sociedade baseada na forma do valor de troca. O livro não veio a lume. Todavia, é possível encontrar na obra de Marx, mesmo que em fragmentos, formulações e indicadores significativos que abordam a forma social comunista. O modo de produção comunista para Marx pressupõe o momento em que ele saiu da sociedade burguesa. [..] Marx pensava em sociedade socialista […] tal como ela surge da sociedade capitalista;” É certo que esta sociedade expropriou os capitalistas, […] , aqui “ o produtor individual recebe, depois das deduções, exatamente” o que dá à sociedade, “ o que deu a ela é sua quantidade de trabalho individual […] a sociedade lhe dá a certificação de que entregou tanto de trabalho, […] e esse certificado ele extraiu das reservas sociais de meios de consumo […] Em uma sociedade assim, não pode haver lugar para uma lei como a do valor, porque nela estamos em presença de uma forma de produção totalmente diferente da produção de mercadorias; a regulação da produção e da distribuição não fica entregue ao jogo cego do mercado. Fica submetida ao controle consciente da sociedade (ROSDOLSKY, 2001, p.360). O socialismo seria a primeira fase da sociedade comunista, ainda marcada pelo direito burguês, embora aqui, já podemos ter uma nova conformação da produção e distribuição da riqueza, pois o trabalho não assume a forma fantasmagórica de uma objetividade de valor que tem que se expressar em coisas. Desse modo, a distribuição da riqueza se dá da seguinte forma: cada um segundo sua capacidade, a cada um, segundo seu trabalho. Não é mais o jogo cego do mercado, isto é, é a lei do valor que vai regular a produção e a distribuição. Essa sociedade deverá criar as condições para uma fase superior. Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades! (MARX,2012, p.33). Em Marx o movimento comunista adquire novos contornos e se torna um movimento teórico-político centrado na classe trabalhadora, pois a situação adversa por que passa a classe trabalhadora só pode ser alterada pela obra dos próprios trabalhadores, devidamente organizados como classe, com interesses próprios, que mediante uma revolução social ponham abaixo as relações burguesas, abolindo a propriedade privada dos meios de produção, modificando, a partir de então, as formas de produção e distribuição da riqueza. Com o socialismo, a humanidade superará sua pré-história. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo deste artigo, demonstrei que a crítica social presente na obra de J. S. Mill se faz pela mescla sincrética da economia vulgar com o socialismo utópico. Foi argumentado que Mill é favorável às demandas dos trabalhadores, embora as tente conciliar com a economia política do capital e, ao fazê-lo, seu sistema teórico se envereda pela busca de conciliar o inconciliável. No texto, sinalizo que Mill recupera as teses utópicas que pretende introduzir modificações (reformas sociais) nas formas de distribuição da riqueza, não se atentando para o fato de que a produção já pressupõe uma distribuição do trabalho e dos instrumentos de trabalho, ou seja, de um lado temos trabalhadores livres que só têm sua força de trabalho para vender e, de outro, os proprietários privados dos meios de produção. É dessa divisão no ato da produção que se engendra as formas de distribuição da riqueza produzida. Na superação, pois, do sincretismo entre economia vulgar e socialismo utópico como marcantes das formulações ídeo-teóricas de Mill sustentamos, a partir de Marx, que a crítica ao modo de produção capitalista passa necessariamente pela tomada de posição em favor do socialismo como contraponto inconciliável com a sociedade do capital e como única forma de superação das mazelas sociais advindas do modo de produção capitalista. BIBLIOGRAFIA LUKÁCS, Gÿorg. A decadência ideológica e as condições gerais da pesquisa cientifica. In: NETTO, José Paulo (Org.) Lukács. São Paulo: Ática, 1992. HOBHOUSE, Leonard T. Liberalism. USA: Oxford University Press, 1945. MARX, Karl. Grundrisse. Tradução: Mário Duayer; Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011. MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. Seleção, tradução e notas Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, Coleção Marx-Engels, 2012. MARX, Karl. O Capital: crítica da Economia Política. Livro 1: O processo de produção do capital. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. MARX, K. Prefácio. In: ______. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p.45-50. MILL, John Stuart. Autobiography and Literary Essays. University of Toronto Press, 1981. MILL, Stuart John. Princípios de Economia Política. Com Algumas de suas Aplicações à Filosofia Social. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda. Edição 1996. ROSDOLSKY, R. Gênese e estrutura de o capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 2001. RUBIN, Isaak. História do Pensamento Econômico. Tradução do Inglês: Rubens Enderle. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. 2014.
- A Grande Recessão e a teoria da crise de Marx
por Andrew Kliman O presente artigo de Kliman – professor emérito na Pace University – foi publicado originalmente no American Journal of Economics and Sociology, v. 2, n. 74, mar. 2015. A tradução que agora divulgamos é de Patrick Galba de Paula e foi publicada na Revista Outubro, n. 24, nov. 2015. Por que a grande recessão ocorreu? O que – se existir algo – poderia evitar a eclosão de outra grande crise capitalista no futuro? Minha resposta à primeira questão é simples e mesmo prosaica. Ela destaca as várias fragilidades de longo prazo que permitiram que a crise financeira de 2007-2008 desencadeasse uma recessão profunda na economia “real” e uma lentidão prolongada uma vez que a grande recessão teve seu encerramento oficialmente declarado. A taxa de lucros das corporações estadunidenses tendeu para baixo em quase todo o período posterior à Segunda Guerra Mundial. A queda persistente na lucratividade levou a uma queda persistente na taxa de acumulação do capital (taxa de crescimento do investimento produtivo). Isto não é surpreendente; a geração de lucro é o que torna possível o investimento produtivo do lucro, e o incentivo para investir se reduz se a lucratividade cai e as empresas não antecipam um futuro mais otimista. O declínio da taxa de acumulação levou, por sua vez, a um declínio na taxa de crescimento do produto e dos rendimentos, e o abrandamento do crescimento foi uma das principais causas do aumento dos encargos da dívida pública e privada (ou seja, a dívida como porcentagem do rendimento). Outra causa fundamental da Grande Recessão foram as várias tentativas do governo dos Estados Unidos e do Federal Reserve (Fed) para gerenciar ou reverter a queda da lucratividade, dos investimentos e do crescimento por meio de políticas fiscais e monetárias de estímulo que foram bem sucedidas no curto prazo, mas que agravaram o endividamento, favorecendo sua ampliação. Os resultados foram uma série de crises de endividamento e o estouro de bolhas. Isto ajuda a explicar porque a crise financeira irrompeu e, embora diversos outros importantes fatores estivessem operando, acredito que este complexo de problemas não resolvidos de longo prazo explica o motivo da crise financeira ter desencadeado uma retração tão profunda na parte não financeira da economia, bem como a sua dificuldade de reação uma vez que a crise financeira foi resolvida. Muitos pontos nesta explicação não são controversos, então não me alongarei sobre eles. Em vez disso, o foco será mantido nos pontos de que a taxa de lucros caiu e nunca se recuperou de forma sustentada e que isso explica a queda na taxa de acumulação de capital. Além disso, na próxima seção, será discutido de forma breve um momento chave no qual a política governamental administrou os problemas estruturais no curto prazo ao preço de exacerbá-los no longo prazo – a resposta do FED ao colapso da bolha das empresas “.com” nos anos 1990, que contribui e prolongou a bolha imobiliária no período seguinte. A garantia implícita de longa data feita pelo governo de que, se necessário, garantiria dívidas efetuadas por Fannie Mae e Freddie Mac, as gigantes credoras e garantidoras do crédito hipotecário, é outro óbvio exemplo do seu papel no crescimento do endividamento. Outras ações do governo também contribuíram para a grande recessão, mas a menção ao papel do governo aqui é apenas para deixar claro: a queda da taxa de lucros foi uma importante causa da grande recessão, mas não foi a única. A próxima seção do artigo vai elaborar a visão de que, se quisermos compreender por que a recessão e suas consequências prolongadas ocorreram, a manutenção do foco na crise financeira e em suas causas é insuficiente. Na terceira seção a teoria da queda da taxa de lucros de Marx será inspecionada, bem como suas ligações com sua teoria das crises, com o objetivo de auxiliar uma explicação sobre o porque da queda da taxa de lucros e seu papel no desenvolvimento da crise e da recessão. Não há aqui a pretensão de afirmar que toda ou qualquer crise em larga escala do capitalismo antes da década de 1970 pode ser devidamente compreendida nos termos desta teoria: os dados disponíveis são muito esparsos e inadequados para testar tal hipótese. Entretanto, a taxa de lucros das corporações dos Estados Unidos caiu durante o meio-século anterior à grande recessão. Esta conclusão será documentada e defendida na quarta seção do artigo, onde também será argumentado que, neste caso, a teoria de Marx sobre o motivo da tendência à queda das taxas de lucros adere aos fatos notavelmente bem. A quinta seção mostrará que toda a queda na taxa de acumulação das corporações dos Estados Unidos em ativos fixos entre 1948 e 2007 pode ser atribuída às quedas na taxa de lucros destas corporações. Esta conclusão contraria a crença bastante comum de que a queda na taxa de acumulação durante a “era neoliberal” deveu-se à “financeirização” – especificamente ao direcionamento de lucros dos investimentos na produção para utilização financeira – de modo que na quinta seção será demonstrada em que sentido tal crença é equivocada. Na sexta seção será tratado algo que se provou a principal fonte de resistência à toda consideração séria das evidências de que a taxa de lucros caiu: uma gama de supostos fatos que implicariam em que uma massiva redistribuição de renda de salários para lucros teria ocorrido durante o período neoliberal e que a taxa de lucro não poderia ter realmente caído. Cavando sob a crise financeira A causa imediata da recessão foi, é claro, o estouro da bolha imobiliária nos Estados Unidos, que levou à crise financeira de 2007-2008. Ao que tudo indica, diversos fatores contribuíram para a formação e a persistência da bolha, e tanto as práticas do setor privado quanto as políticas monetárias e regulatórias do governo foram responsáveis por ela. Ainda assim, é muito duvidoso que toda a história se resuma a isto. O resgate promovido no âmbito do programa de alívio de ativos em risco, TARP, [1] os “testes de estresse” de instituições financeiras e outras ações foram bem sucedidos em debelar a crise financeira nos Estados Unidos já em meados de 2009, enquanto o crescimento econômico permaneceu lento por vários anos mais. A economia ainda não voltou ao seu estado “normal” e não está claro se a recuperação atual se sustentará. A economia da Eurozona está em situação ainda pior; os dados da primeira metade de 2014 indicam que a recuperação definhou. A falta de crescimento do produto interno bruto (PIB) na Europa indiscutivelmente se deve em parte às políticas de austeridade, mas estas políticas não podem explicar a dificuldade da economia dos Estados Unidos em se recuperar de forma robusta. A política fiscal e monetária dos Estados Unidos tem sido fortemente expansionista. A dívida pública aumentou em 94% entre o início da Grande Recessão, dezembro de 2007, e outubro de 2014. O adicional de US$8,7 trilhões em empréstimos, usado para o aumento dos gastos governamentais e a redução de impostos, equivale a US$28 mil por pessoa. O Federal Reserve manteve a taxa de juros próxima a zero por quase seis anos em sequência e comprou US$3,7 trilhões em títulos desde 2008 com o objetivo de reduzir as taxas de longo prazo. Dado que o mal-estar econômico tenha persistido por tanto tempo após a crise financeira ter sido resolvida, não parece plausível – para mim e para um número crescente de proeminentes economistas do mainstream – que se possa realmente explicar a Grande Recessão e suas consequências apontando para o empréstimo predatório, alavancagem excessiva, padrões de crédito frouxos, a política de dinheiro extremamente fácil do FED durante os anos da bolha, e outros fatores que produziram a crise financeira. O ex-Secretário do Tesouro Lawrence Summers (2013) defendeu este ponto comparando a crise financeira a um corte de energia que faz com que um país perca 80% de sua eletricidade. A produção iria cair, mas assim que a energia fosse restaurada, a produção se recuperaria rapidamente. De fato, uma vez que o país precisaria repor os estoques esgotados durante o corte de energia, a produção aumentaria num ritmo mais rápido do que o normal. “Então, você realmente espera que uma vez que as coisas se normalizem, você teria mais crescimento do PIB de que antes e não que quatro anos mais tarde você ainda estaria tendo substancialmente menos crescimento do que antes. Então, há algo estranho... se o pânico [financeiro] era todo o nosso problema, a permanência do crescimento lento”. Summers e outros economistas, tais como Paul Krugman e Martin Wolf do Financial Times sugerem, ao contrário, que poderemos estar em um período de “estagnação secular”. De um lado, a tese da estagnação secular (de longo prazo) é uma previsão, ou ao menos um alerta, sobre o futuro. De outro, é um esforço para explicar o passado. Especificamente, para explicar por que a Grande Recessão ocorreu, por que a recuperação demorou tanto e foi tão frágil apesar da supressão bem sucedida do pânico financeiro e da política econômica especialmente estimuladora. Summers e os demais sugerem que a estagnação pode ter se tornado um estado “padrão” da economia estadunidense em um momento anterior à crise financeira. Por exemplo, Wolf (2013) argumenta que a crise financeira “decorreu de excessos financeiros, os quais por sua vez mascaravam ou, como observei, foram uma resposta à fraqueza estrutural préexistente”. Krugman (2013) sugere que a estagnação deu seus primeiros sinais no meio dos anos 1980. Isto indica que a crise financeira foi apenas um fator que acionou e ajudou a propagar a recessão, enquanto as causas subjacentes encontram-se nas “fraquezas estruturais” dos setores não-financeiros da economia. Concordo com Wolf que os excessos financeiros que criaram a bolha imobiliária, e que posteriormente levaram à crise, foram eles próprios “uma resposta à situação de fraqueza estrutural pré-existente”. A performance da economia estadunidense e a política do Federal Reserve que se seguiu ao colapso da bolha das empresas “.com” nos anos 1990 são, ao meu ver, as mais claras evidências neste sentido. A taxa de lucro (após a cobrança de impostos) das corporações estadunidenses declinou por mais de dois quintos entre 1997 e 2001 (de 11,4% para 6,7%, de acordo com a minha estimativa) [2]. O mercado de ações começou a quebrar no final de 2000; No início de 2003 o índice S&P 500 já havia caído mais de 50%. Uma recessão teve início em março de 2001. Foi relativamente curto e suave em diversos aspectos. Terminou oficialmente em novembro, muito embora os ataques de 11 de setembro tenham ocorrido apenas dois meses antes. Em novembro de 2002, Bernanke (2002) alertou que os Estados Unidos poderiam experimentar uma deflação e uma década perdida de estagnação, ao estilo japonês. O Federal Reserve respondeu com uma política monetária excepcionalmente expansionista. Após ajustados pela inflação, a taxa de juros foi negativa do início de 2002 até meados de 2005. Esta política, e o afrouxamento das regras de crédito, serviram para prolongar e inflar ainda mais a bolha no mercado imobiliário norte-americano (e, certamente, bolhas tanto no estoque quanto no comércio de imóveis). A princípio, o Federal Reserve poderia ter se movimentado no sentido de desinflar a bolha vários anos antes do estouro da crise financeira mas, como Bernanke (2010) notou posteriormente em seu testemunho diante da Comissão de Investigação sobre a Crise Financeira, esta não era uma “opção politicamente praticável”. O Fed “precisaria aumentar as taxas de lucro rispidamente, em um momento em que a deflação e o desemprego eram percebidos como as principais ameaças à recuperação”. Se as previsões para o futuro do argumento que observa uma estagnação secular se provarão corretas é incerto. Mas acredito que sua análise sobre o passado está correta. Mas por que a tendência no sentido de uma estagnação surgiu e se desenvolveu? Os proponentes desta tese dentro do mainstream normalmente argumentam que a demanda agregada se enfraqueceu numa proporção tal que o pleno emprego se tornou impossível, a menos que as taxas de juros de curto prazo fossem ridiculamente baixas (e.g. de -2% a -3%). Mas isto é mais uma política pronta de intervenção do que um genuíno argumento teórico. Vários argumentos teóricos são compatíveis com ela, inclusive o que apresentarei abaixo: uma queda nas taxas de lucros causou um declínio nos lucros disponíveis para investimento e possivelmente na lucratividade futura esperada, o que levou a uma queda na demanda por investimentos e constrangeu o emprego, os rendimentos, a demanda por consumo, e daí em diante. A teoria das crises de Marx Adam Smith, David Ricardo e outros economistas clássicos defenderam a visão de que a taxa de lucros – lucros como um percentual do capital investido na produção – tende a cair no longo prazo. Eles tiravam esta conclusão do fato empírico de que as taxas de juros haviam caído. Karl Marx aceitou sua conclusão, mas não as teorias que eles desenvolveram para explicar a tendência da lucratividade a cair. Ele via sua própria “lei da queda tendencial da taxa de lucros” (MARX, 1991a, p.319) como a primeira “lei” (princípio teórico explicativo) a dar conta da tendência de forma bem sucedida, e repetiu por diversas vezes que esta era a “mais importante lei” da economia política, a solução do quebra-cabeças central em torno ao qual “o conjunto da economia política desde Adam Smith se revolveu” (MARX 1973, p.748; 1991b. p.104; 1991a, p.319). Como discutirei abaixo, a lei era de importância central em sua teoria das crises capitalistas, uma vez que “a queda das taxas de lucros [...] precisam constantemente ser superadas através das crises capitalistas” (MARX, 1991a, p.367). A lei e a teoria das crises nela baseada tem muitos detratores, mesmo entre aqueles que se auto-identificam como marxistas. A oposição mais proeminente vem da escola do “capitalismo monopolista” associada com a revista Monthly Review, que nega que Marx tenha desenvolvido uma teoria completamente coerente sobre as crises capitalistas. A alternativa oferecida por esta escola à teoria baseada nas quedas de lucratividade é uma teoria subconsumista. Ela defende que existiria uma tendência, exacerbada pelos preços de oligopólio, de que a fração do produto que fica com os trabalhadores decresça sob o capitalismo. Isto restringe a demanda por consumo, e uma vez que o investimento produtivo não poderia, segundo esta teoria, crescer mais rápido do que a demanda por consumo no longo prazo, a demanda total tenderia a ficar mais curta do que a oferta de produtiva [3]. Embora vários external stimuli possam contrabalançar o problema do subconsumo por um tempo, retrações econômicas recorrentes seriam necessárias para restaurar o equilíbrio entre oferta e demanda [4]. Marx apresentou sua lei de tendência à queda da taxa de lucros na parte terceira do Livro 3 de O Capital. A lei é que “a tendência progressiva de que a taxa de lucros caia é, deste modo, apenas a expressão, peculiar ao modo capitalista de produção, do progressivo desenvolvimento da produtividade social do trabalho” (MARX, 1991a, p.319. Grifo no original). Em outras palavras, a produtividade crescente tende a deprimir a taxa de lucro. Esta conclusão deriva de forma bastante simples e direta dos seguintes três pontos, desenvolvidos anteriormente no livro: 1) Para permanecer competitivos, os capitalistas precisam reduzir os custos de produção, e eles fazem isto em grande parte através do aumento da produtividade do trabalho (a quantidade de produto por unidade de trabalho realizado). Os aumentos de produtividade são alcançados principalmente através da adoção de novas tecnologias que substituem trabalhos por máquinas. Assim, o que Marx chama da composição técnica do capital, a razão entre máquinas e outros meios de produção e o número de trabalhadores empregados, tende a subir através do tempo. 2) A quantidade de valor novo – e, tudo mais sendo igual, de mais-valor (lucros) – gerada por cada dólar de investimento em capital tende a cair como resultado. Isto decorre da teoria de Marx de que o trabalho é a única fonte de novo valor. Quando os trabalhadores são substituídos por máquinas, uma parcela maior de cada dólar investido na produção é gasto em meios de produção que não geram novo valor, e uma parcela menor é gasta para contratar trabalhadores cujo trabalho o gera. De modo que a razão entre estas duas razões monetárias, que Marx chamou de composição-valor do capital, tende a aumentar junto com o aumento da composição técnica (esta é uma tendência e não um resultado garantido, uma vez que outros fatores podem influenciar na composição-valor). 3) Na economia de conjunto, o que é certo para o valor e o mais-valor também é certo para os preços e os lucros. Negócios individuais e setores industriais podem obter preços que excedem a quantidade de valor que eles produziram, assim obtendo uma quantidade maior de mais-valor do que a que eles produziram, mas pela teoria de Marx estes ganhos ocorrem as expensas, e são totalmente compensados, por preços e lucros mais baixos obtidos por outros capitalistas. No agregado, o preço do produto se iguala ao valor do produto e os lucros igualam a mais-valia efetivamente gerada na produção. Deste modo, a lei de Marx, que diz respeito à economia de conjunto, não é afetada pelas discrepâncias entre mais-valor e lucro. A ideia fundamental por trás das leis de Marx pode ser expressa em termos de preços e lucros, sem referência explícita à sua teoria do valor, da seguinte forma. Quando a produtividade cresce, menos trabalho é necessário para produzir um produto, então este é produzido de forma mais barata. Como resultado, seu preço tende a cair. E quando seus preços tendem a cair, isto também ocorre com os lucros e com a taxa de lucros (em termos estritos, o nível de preços não precisa cair; é suficiente que a taxa de inflação caia). Esta tendência de queda nos preços tem sido reconhecida mesmo por não-marxistas, como Alan Greenspan (2000): “O crescimento mais rápido da produtividade mantém uma tampa sobre os custos unitários e os preços. As firmas hesitam em aumentar os preços com medo de que seus concorrentes, com custos mais baixos derivados de novos investimentos, consigam capturar fatias de seu mercado. De fato, a disponibilidade crescente de equipamentos e software substituidores de trabalho, em tempos de preços declinantes e melhoras no sistema de entregas, está possivelmente na raiz da perda do poder de precificação dos negócios nos últimos anos”. A “perda do poder de precificação dos negócios” em função “da disponibilidade crescente de equipamentos e software substituidores de trabalho” é o crucial da lei de Marx. Um aspecto central dela é o declínio na razão dos preços correntes em relação aos passados [5]. Marx (1991a, p.339) reconheceu que várias “influências contrárias devem operar, confirmando ou cancelando [durchkreuzen und aufheben] o efeito da lei geral e dando a ela o simples caráter de uma tendência”. Por exemplo, a produtividade crescente também tende a baratear os meios de produção e bens que os trabalhadores consomem e ambos os aspectos tendem a impulsionar a lucratividade. Marx claramente acreditava que a tendência à queda da taxa de lucro prevalece sobre as contra-tendências; afinal, isto era o que sugeria a evidência empírica disponível. De qualquer forma, sua lei tem uma função explanatória; Ela não garante que uma queda nas taxas de lucro é inevitável (KLIMAN et al, 2013). Nem mesmo afirma que a taxa de lucro exibirá uma tendência de queda ao longo de todo o “tempo de vida” do capitalismo. Enquanto esta era a posição de Smith, Ricardo, e outros economistas políticos clássicos – que consequentemente previam que o capitalismo eventualmente chegaria a um estado estacionário – Marx argumentava que a tendência à queda da taxa de lucros levava a ciclos de crescimento e queda. Não parece haver qualquer evidência textual de Marx em apoio à interpretação de que ele defendesse que esta tendência causaria um colapso do capitalismo de modo automático, ou quase-automático. Na visão de Marx, a queda na taxa de lucros seria a causa apenas indireta das crises e desacelerações. Ele percebeu que ela reduzia a disposição dos capitalistas para investir na produção (MARX, 1991a, p.349), mas sua teoria da crise não é uma na qual a queda na taxa de lucro causa uma queda na taxa de acumulação, que então causa uma queda na taxa de acumulação, de forma mecânica. Ao contrário, ele argumentava que a tendência à queda da taxa de lucro levaria a uma desaceleração da economia encorajando a especulação, “superprodução” (oferta em excesso), e crise financeira, e a crise financeira é a causa imediata da desaceleração. A ligação entre a queda da lucratividade e o crescimento da especulação é que os capitalistas não se resignam em obter a agora reduzida taxa de lucro média, eles buscam manter suas taxas de lucro anteriores, e eles podem precisar mantê-la para serem capazes de arcar com suas dívidas. Eles então se engajam em “novos investimentos de capital e novas aventuras, buscando assegurar algum tipo de lucros extraordinários”. Mas a alavancagem excessiva associada à elevada atividade especulativa bem como a reduzida lucratividade levam a uma situação na qual um volume substancial de dívida não pode ser pago, e neste ponto a crise financeira irrompe. Esta crise é, por sua vez, a causa imediata da desaceleração econômica: “A cadeia de obrigações e pagamentos em datas específicas é quebrada em centenas de lugares, e isto e ainda mais intensificado por uma correspondente quebra do sistema de crédito, que se desenvolveu em conjunto com o capital. Tudo isto leva a crises violentas e agudas crises, súbitas desvalorizações forçadas e assim a um verdadeiro declínio na reprodução” (MARX, 1991a, p.363). Contra a visão estagnacionista de Smith sobre os efeitos de longo prazo da lucratividade em queda, Marx argumentou que “crises permanentes não existem”, pois a crise financeira e a desaceleração que resulta indiretamente da queda nas taxas de lucro levam a uma “destruição de capitais através das crises” (MARX 1989, p.128n, 127. Grifo no original). Isto é, uma parcela do valor-capital investido na produção é destruída através de falências, perdão de dívidas impagáveis, preços de meios de produção em queda, plantas e equipamentos ociosos, e etc. Novos proprietários podem agora adquirir os negócios mais barato e sem ter que assumir todas as dívidas dos proprietários anteriores, o que implica que sua taxa de lucro – lucros como um percentual da quantidade reduzida de capital que eles investiram – é maior do que a pré-existente. Assim, a destruição de valor-capital coloca as condições para uma eventual restauração da taxa de lucros e para uma nova fase de expansão capitalista [6]. A teoria das crises de Marx poderia ser caracterizada como uma teoria endógena de crises recorrentes. A desaceleração é endógena porque ela se deve à própria dinâmica do capitalismo, e não a choques externos (apenas). O crescimento subseqüente é endógeno pois a própria crise gera as condições que levam à recuperação; estímulos externos ad hoc não são necessários. A queda na lucratividade das corporações estadunidenses A taxa de lucros das corporações estadunidenses caiu substancialmente desde meados dos anos 1950 até o início dos anos 1980 e também continuou caindo durante o período neoliberal que se seguiu. Quatro medidas da taxa de lucros são mostradas na Figura 1. Cada uma expressa o lucro das corporações como uma porcentagem do capital acumulado (estoque líquido de capital) em ativos fixos. Tanto lucros quanto investimentos acumulados são medidos deduzida a depreciação e valorados pelos custos históricos. A medida mais inclusiva dos lucros é a que eu chamo de “rendimentos de propriedade” (property income), o valor adicionado bruto menos a depreciação e as remunerações dos empregados. O excedente operacional líquido exclui, adicionalmente, impostos indiretos sobre os negócios líquidos (impostos sobre vendas, etc). Lucros pré-impostos são o excedente operacional líquido menos juros, transferências e pagamentos diversos, e os lucros pós-impostos também excluem a parcela do lucro pré-impostos direcionada ao pagamento do imposto de renda das corporações. Todas as quatro medidas das taxas de lucro declinaram substancialmente, e todas as quatro continuaram sua tendência de queda na sequência da situação posta pela recessão de 1981-1982. A tendência de queda dos anos 1980 é particularmente pronunciada se compararmos vales com vales. Esta é uma boa prática em geral, uma comparação maçã-maçã, e neste caso é particularmente útil para evitar interpretar o forte – mas obviamente temporário! – aumento das taxas de lucros ocorrido nos anos que precederam a Grande Recessão como um genuíno retorno do setor corporativo a uma situação “economicamente saudável”. A bolha imobiliária deste período sem dúvida impulsionou a lucratividade artificialmente ao estimular a demanda de maneira insustentável. Assim, proprietários de imóveis financiaram seus gastos através de empréstimos garantidos pelo valor aumentados de suas casas, as regras frouxas de crédito e a política de dinheiro excepcionalmente fácil do Fed abasteceram os gastos financiados por dívidas e, fazendo as pessoas mais ricas - no papel – os preços crescentes de ativos reduziram o incentivo à poupança e ampliaram os incentivos ao consumo. As taxas de lucro acima são de corporações que atuam no mercado doméstico apenas. Elas excluem os investimentos externos das corporações multinacionais estadunidenses e os lucros repatriados. Entretanto, os dados contidos em diferentes conjuntos de contas governamentais permitem computar as taxas de lucro do Investimento Estrangeiro Direto (IED) das corporações multinacionais estadunidenses de 1983 em diante. O lucro é medido como rendimento do IED, abatido impostos de renda e uma das duas séries exclui também impostos retidos na fonte sobre os dividendos e juros. O denominador da taxa de lucro é o IED em si (investimento das matrizes com capitais próprios, empréstimos líquidos e lucro reinvestido em subsidiárias de propriedade parcial ou total da matriz). Como mostra a figura 2, esta taxa de lucros também caiu fortemente, especialmente se comparados picos com picos e vales com vales. Embora os denominadores das taxas de lucro doméstica e internacional sejam um pouco diferentes, o fato de que ambas tenham caído é indicador de que a taxa doméstica não está dando uma imagem distorcida das tendências de lucratividade das corporações estadunidenses (Cf. KLIMAN, 2012b). O fato de que a taxa de lucros tenha continuado sua tendência de queda depois da crise dos anos 1970 e do início dos anos 1980 é particularmente importante. Se a lucratividade tivesse se recuperado substancialmente, seria difícil argumentar que sua queda anterior estaria entre as causas da Grande Recessão. Além disso, a incapacidade de recuperação leva coloca em questão a tese – muito difundida entre a esquerda, até mesmo no início da Grande Recessão e durante o prolongado período marcado por suas seqüelas) – de que a vitória do neoliberalismo e a “financeirização” da economia foram bem sucedidos em colocar o capitalismo de volta em um novo e estável caminho de expansão após as crises dos anos 1970 e início dos anos 1980. O esmagamento dos sindicatos e outras políticas e fenômenos teriam supostamente levado a uma estagnação dos salários e a uma redução da parcela do produto a eles correspondente, e esta redistribuição dos salários para os lucros teria, por sua vez, levado a um aumento de longo prazo nas taxas de lucro. A queda nas taxas de lucro pós-1982 retratada acima seria muito suspeita se tal redistribuição tivesse ocorrido. Entretanto, como será discutido em maior detalhe adiante, a remuneração dos empregados na verdade não estagnou (em média) ou caiu em termos de seu quinhão do produto. A luz destes fatos, a queda na taxa de lucros não aparece mais como anômala. Mas existem outras razões para a existência de uma visão amplamente difundida de que a taxa de lucros tenha subido. Tal crença é em grande parte baseada, direta ou indiretamente, nos trabalhos de Gérard Duménil e Dominique Lévy (2005, p.9, 11. Grifo original retirado), que informam que a taxa de lucros do “setor corporativo (...) recuperaram-se aos níveis do final dos anos 1950 (...) considerando a evolução da taxa de lucro desde a segunda guerra mundial, a recuperação da taxa de lucros parece quase completa dentro de todo o setor corporativo”. Esta conclusão é resultado da utilização de dados escolhidos a dedo. Eles compararam os dados do vale de 1982 com o pico de 1997 (apesar da disponibilidade de dados para além de 2000). Em um trabalho subsequente, Duménil e Lévy (2011, p.60. Grifo adicionado) eles revisaram drasticamente suas conclusões afirmando que “uma ligeira tendência ascendente da taxa de lucros à la Marx se estabeleceu dentro dos baixos níveis estabelecidos pela crise estrutural dos anos 1970” (O termo à la Marx significa que a taxa de lucros é medida de maneira ampla, como no caso do excedente operacional líquido). Isto equivale a um reconhecimento de que o neoliberalismo não foi muito bem sucedido em restaurar a lucratividade do capital. Embora suas conclusões revisadas estejam mais próximas das taxas de lucro apresentadas acima, uma diferença permanece. É uma diferença conceitual, não empírica; não há fatos em questão. Estão sendo medidas duas coisas diferentes, e não a mesma coisa de duas formas diferentes. Quando nos referimos à “taxa de lucros”, estamos falando de um percentual da quantia de dinheiro que foi efetivamente investida na produção (abatida a depreciação). Isto é bem próximo, senão idêntico, ao significado padrão do termo. Entretanto, Duménil e Lévy (entre outros) entendem a “taxa de lucros” como um percentual do custo de reposição (ou custo corrente) dos ativos fixos, a quantidade de dinheiro que seria atualmente necessária para os repor. Quando a taxa de inflação aumenta (cai), a quantidade de dinheiro necessária para repor todos os ativos fixos em uso aumenta (cai) em relação à quantidade de dinheiro que foi efetivamente investida no passado, e a taxa de lucros de custos de reposição portanto cai (aumenta) em relação à taxa de lucros baseada no investimento efetivo acumulado. Assim, a aceleração da inflação durante os anos 1970 deprimiu a taxa de lucros de custos de reposição e a desaceleração da inflação nos anos 1980 a impulsionou e isto, – e não o suposto sucesso econômico do neoliberalismo – é a causa das diferentes trajetórias dos dois tipos de taxa de lucros. Duménil e Lévy (entre outros) têm defendido sua utilização da taxa de lucros de custos de reposição argumentando que ela seria a taxa de lucros esperada. Não é o caso, entretanto, uma vez que os custos de reposição comparam lucros baseados em preços correntes com os custos correntes dos ativos fixos, enquanto a taxa de lucros esperada compara os lucros baseados nos preços futuros esperados aos custos correntes dos ativos fixos. Em todo caso, se quisermos saber se uma queda nas taxas de lucros está ou não entre as causas subjacentes da Grande Recessão, estamos interessados na performance econômica efetiva. Assim, o interesse está na taxa de retorno efetiva obtida por cada negócio do dinheiro por eles investido na produção, e não na trajetória de suas expectativas sobre a taxa de retorno imaginária que eles teriam obtido se tivessem investido uma quantidade diferente de dinheiro [9]. O mero fato de que a taxa de lucro das corporações estadunidenses tenha caído e não tenha se recuperado de forma sustentada não confirma a lei tendencial de queda da taxa de lucros de Marx. Muitas explicações diferentes, e mesmo contraditórias, são possíveis. Entretanto, apresentei as evidências de uma queda da lucratividade não como prova da validade da lei, mas com o objetivo de analisar a Grande Recessão. Neste contexto particular, as razões para a queda da lucratividade podem ser até mesmo de importância secundária. Não é realmente possível testar a lei de Marx empiricamente, em parte porque ela se refere à economia como um todo. Em nossos dias, isto significa que ela se refere à economia global, mas estimar a taxa de lucros global não é realmente possível; os dados disponíveis não são adequados para esta tarefa. Mas é possível, entretanto, questionar se a explicação de Marx para as causas da queda das taxas de lucros se ajusta aos fatos neste caso particular. A queda das taxas de lucros das corporações estadunidenses durante o período do pós-guerra até a Grande Recessão se deveu às mesmas causas que, para a lei de Marx, as taxas de lucros tendem a cair? A resposta encontrada para esta pergunta é positiva. Primeiro, decompusemos os movimentos das taxas de lucro em três componentes, causados por: (1) mudanças na distribuição entre lucros e remuneração de empregados; (2) mudanças nas taxas, as quais o nível de preços nominais se eleva em relação aos valores das mercadorias (medidos em termos de quantidade de trabalho necessário para produzir uma unidade de produto); e (3) outros fatores. Ocorre que, enquanto os dois primeiros fatores ajudam a explicar as variações de curto prazo na taxa de lucros, eles têm apenas um efeito desprezível durante o período do pós-guerra como um todo. Mas quando estes dois fatos são deixados de lado (permanecem constantes), a taxa de lucros se torna um índice puro da razão entre emprego e investimento acumulado (em termos de tempo de trabalho); seus movimentos depende apenas dos movimentos nesta razão. A lei de Marx afirma precisamente que a taxa de lucros tende a cair pois esta razão tende a cair – i.e., o progresso técnico tende a levar a um aumento do emprego seja mais lento do que o aumento do investimento – e isto foi o que ocorreu. Minhas estimativas indicam que a queda nesta razão responde por 94% da queda na taxa de lucros dos rendimentos de propriedade (property income rate of profit) entre 1947 e 2007 (Kliman, 2012a, p.133-138). A queda na taxa de acumulação [10] A taxa de acumulação de capital é a razão entre o investimento líquido em produção e o capital adiantado ou investido. Como a taxa de lucro é uma razão entre o lucro e o capital adiantado (investido), a taxa de acumulação é igual, por definição, à participação dos investimentos (investment share) nos lucros (razão entre investimento líquido e lucros) multiplicada pela taxa de lucros: Decorre que a identidade acima entre a mudança percentual na taxa de acumulação é aproximadamente igual às mudanças percentuais na participação dos investimentos nos lucros e na taxa de lucros. Se a participação dos investimentos nos lucros for praticamente constante ao longo do tempo, sua mudança percentual será pequena e a taxa de acumulação desta forma aumentará ou diminuirá, grosso modo, pelos mesmos percentuais de aumento ou queda da taxa de lucros. Isto é o que de fato ocorreu nos Estados Unidos durante o período pós-segunda guerra mundial. A Figura 3 mostra o percentual pelo qual as variáveis diferem dos seus valores em 1948 (o primeiro ano após a recessão relacionada à reconversão do pós-guerra). A taxa de lucros pós-impostos foi usada aqui, uma vez que as decisões sobre investir ou não os lucros são decisões sobre o uso dos lucros pós-impostos. A taxa de acumulação seguiu a taxa de lucro de perto durante as duas primeiras décadas do pós-guerra e também durante as duas últimas décadas. Quando o período entre 1968 e 1986 é omitido, as variações na taxa de lucros respondem por 48% da variação na taxa de acumulação no ano seguinte e por 52 % da variação na taxa de acumulação dois anos depois. Após 1967, ocorreu um aumento maciço da participação dos investimentos no lucro, o que causou um aumento substancial da taxa de acumulação em relação à taxa de lucro; Ainda porque a participação dos investimentos nos lucros subiu a níveis insustentáveis (como discutirei adiante), ela começou a se nivelar depois de 1981, e isto fez com que os movimentos da taxa de acumulação se realinhassem com os movimentos da taxa de lucro. Assim, no final das contas – i.e. quando consideramos o período pós-guerra como um todo – a participação dos investimentos no lucro teve muito pouco a ver com o declínio da taxa de acumulação. Entre 1948 e 2007, a taxa de acumulação caiu 41 %, enquanto a participação dos investimentos cresceu levemente, 3%. Toda a queda da taxa de investimento pode ser atribuída à queda de 43 % da taxa de lucro pós-impostos, que foi apenas levemente contrarrestada pelo pequeno aumento da participação dos investimentos. A desaceleração do investimento produtivo levou por sua vez a uma desaceleração do crescimento econômico. E a desaceleração do crescimento – somada às políticas artificialmente estimulantes que foram seguidas em um esforço para administrar e talvez reverter os problemas de lucratividade, investimento e crescimento – contribuíram para a construção de longo prazo do endividamento, recorrentes bolhas de ativos, e por fim para a Grande Recessão e suas consequências prolongadas. Durante o período neoliberal, a taxa de acumulação caiu mais rapidamente do que a taxa de lucros. Entre 1979, quando a taxa de acumulação alcançou seu pico, e 2001, ela caiu 61%, enquanto a taxa de lucro pós-impostos caiu 41% e a participação dos investimentos no lucro pós-impostos caiu 34%. Assim, cerca de 55% ( = 41 / [41 + 34] ) do declínio na taxa de acumulação durante este período pode ser atribuído ao declínio na taxa de lucro, podendo o restante ser atribuído ao declínio na participação dos investimentos no lucro. (A taxa de acumulação então subiu 18 % entre 2001 e 2007, enquanto um aumento de 47% na taxa de lucros foi apenas parcialmente contrarrestado por uma queda de 20 % na participação dos investimentos no lucro). A queda do investimento (participação dos investimentos no lucro) durante este período pode parecer dar suporte à visão de que a “financeirização” da economia sob o neoliberalismo contribuiu para a desaceleração das taxas de acumulação e crescimento econômico que ajudaram a criar as condições para a Grande Recessão. É frequente a afirmação de que um aspecto chave da financeirização tem sido o desvio de lucros de investimentos produtivos para usos financeiros – aquisição de ativos financeiros, recompra de ações, e aumento de pagamentos de dividendos e juros (HUSSON, 2008; STOCKHAMMER, 2009, p.11; WOLFSON; KOLTZ, 2010, p.88; KRIPPNER, 2011, p.54). Como a participação dos investimentos no lucro (investment share of profits) é, em geral, uma boa medida de como os lucros são alocados entre usos produtivos e financeiros, a taxa declinante de investimento parece inicialmente uma evidência convincente de que tais desvios realmente teriam ocorrido. Entretanto, não parece adequado ou significativo comparar a participação dos investimentos no lucro durante o período neoliberal com seu pico em 1979, ou mesmo sua média durante os anos 1970. As séries de dados que iniciam nos anos 1970 ou mais tarde não permitem tirar conclusões válidas sobre como a financeirização e o neoliberalismo afetaram o investimento produtivo; o período neoliberal precisaria ser comparado com o todo da época préneoliberal. Como a Figura 4 deixa claro, os anos 1970 não foram de forma alguma representativos de toda aquela época. A figura sugere que os movimentos na participação dos investimentos no lucro podem ser divididos em quatro períodos distintos: 1949-1971, 1972-1985, 1986-2001 e 2002-2006. Para discutir as épocas pré e pós-neoliberais também poderíamos dividir o segundo período em dois subperíodos, o primeiro terminando em 1980 e o segundo iniciando em 1981, o ano em que Ronald Reagan tornou-se presidente. A Tabela 1 resume os dados em termos destes períodos. Até 2001, a parcela líquida investida dos lucros (líquidos) durante o período neoliberal excedeu a participação dos investimentos durante o período pré-neoliberal. Além disso, enquanto a participação dos investimentos se reduziu acentuadamente após o início dos anos 1980, este declínio não pode ser atribuído à financeirização ou ao neoliberalismo. Uma razão para isto é que o investimento estava insustentavelmente elevado no início dos anos 1980. Devido a um declínio acentuado na lucratividade, a participação dos investimentos (não-retardados – non lagged) no lucro entre 1979 e 1982 foi em média 105 %; as corporações estavam investindo mais lucros do que os lucros que tinham. Outra razão é que o neoliberalismo e a financeirização não levaram a participação dos investimentos a níveis abaixo dos normais. Ao cair, esta retornou a níveis similares aos que eram típicos antes de 1972; durante o período entre 1986 e 2001, a participação dos investimentos excedeu os valores médios observados no período entre 1949 e 1971. Uma queda acentuada do investimento e um grande pico de lucratividade ocorreram, ainda que de forma temporária, a partir de 2001. Como resultado, a participação dos investimentos média para o período neoliberal como um todo, 1981-2007, é levemente inferior à média do período que vai de 1949 a 1980. Entretanto, tais fatos não podem ser atribuídos ao neoliberalismo; esta explicação não permite compreender por que a participação do investimento durante os primeiros 21 anos de neoliberalismo (70% entre 1981 e 2001) foi maior do que a existente no período pré-neoliberalismo (64% entre 1949 e 1980), e então caiu de repente para 34%. O declínio pós-2001 na participação do investimento parece ter sido uma resposta temporária aos acontecimentos daquele período – talvez eventos como a explosão da bolha do mercado de ações das empresas “.com” no final de 2000, o acentuado recuo da lucratividade entre 1997 e 2001 e os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Após 2004, a participação do investimento teve uma recuperação acentuada. Por exemplo, enquanto a taxa de lucros pós-impostos era apenas 6% maior em 2007, em comparação com 2004, o investimento líquido era 107% maior. De fato, o investimento líquido aumento em US$240 bilhões, enquanto os lucros pós-impostos aumentaram em apenas $ 47 bilhões, o que significa que as corporações estavam investindo mais US$5 (extras) para cada US$1 em lucro. Assim, em 2007, a participação dos investimentos (não-retardados) era levemente superior a de 1997. Estes fatos não parecem consistentes com a narrativa segundo a qual o neoliberalismo teria levado as corporações a desviar seus lucros dos investimentos produtivos para usos financeiros. De qualquer forma, uma vez ajustada para diferenças na taxa de depreciação, a participação do investimento nos lucros média torna-se consideravelmente superior durante o período neoliberal, mesmo com os anos pós-2001 incluídos, do que o período precedente. A taxa de depreciação aumentou acentuadamente depois de 1960 devido à revolução das tecnologias de informação. Investimentos em equipamentos e softwares processadores de informações, que depreciam muito mais rápido do que quaisquer outros ativos fixos, alcançaram uma proporção cada vez maior dos investimentos produtivos das corporações, e isto levou a um aumento geral da taxa de depreciação. O neoliberalismo e a financeirização não são, obviamente, responsáveis por este aumento. Desta forma, para avaliar adequadamente levaram a um desvio dos lucros dos investimentos produtivos para usos financeiros, teríamos que abstrair os aumentos na taxa de depreciação, ajustando os dados para considerar seus efeitos. A única forma de fazer isto é incluir a depreciação tanto no investimento líquido quanto nos lucros de modo a obter então uma participação “bruta” do investimento em lucros pós-impostos “brutos”. Seus valores para os vários subperíodos estão expostos na última linha da Tabela 1. A participação do investimento “bruta” foi maior no período neoliberal – incluindo aí os anos após 2001 – do que durante o período precedente. E mesmo no período entre 2001 e 2007, o valor médio da participação “bruta” do investimento foi quase tão grande quanto o valor médio entre 1949 e 1971. Assim, o pequeno déficit na participação líquida do investimento nos lucros líquidos durante a totalidade do período entre 1981-2007 (incluindo aí o subperíodo entre 2001 e 2007), relativamente à média existente entre 1949 e 1971, pode ser atribuída a um aumento da taxa de depreciação, e não ao neoliberalismo ou à financeirização. A suposta redistribuição de salários para lucros As evidências de que a taxa de lucros das corporações estadunidenses caíram e nunca se recuperaram de forma sustentada tem sido frequentemente descartada porque uma queda destas taxas de lucros parece incompatível com certos fatos, ou supostos fatos, bem conhecidos sobre a elevação dos lucros as expensas dos salários, salários estagnados, crescente desigualdade de renda, etc. Nesta seção, será explicado como a queda da taxa de lucros é reconciliáveis os “verdadeiros” fatos, e porque os fatos com os quais ela não se concilia não são verdadeiros. O eixo central da tentativa da escola da Monthly Review de aplicar sua teoria subconsumista à Grande Recessão é a afirmativa de que houve uma redistribuição substancial de salários para lucros nos Estados Unidos. Este suposto fato é tido como “elemento chave para a explicação” dos motivos pelos quais o crescimento econômico do quarto de século anterior à recessão era “insustentável”. Embora o “consumo tenha continuado a subir”, apesar da redistribuição de salários para lucros e do problema latente de subconsumo decorrente, o aumento do consumo “só foi possível devido à [...] constante elevação forçada do endividamento dos consumidores” e do aumento de horas de trabalho por família (FOSTER; MAGDOFF, 2008). Mas o aumento do endividamento dos consumidores ajudou a inflar uma bolha de dívida insustentável e a crise financeira e a Grande Recessão emergiram quando a bolha estourou. Mas ocorreu realmente esta redistribuição de salários para lucros? Magdoff e Foster (2013) recentemente tentaram dar substância a esta afirmativa, mas todas as evidências que apontaram são inválidas ou irrelevantes; Nenhuma delas realmente mostra que os lucros cresceram em relação aos salários dos trabalhadores. Alguns dos defeitos de sua análise empírica exemplificam incompreensões relativamente comuns que serão tratadas mais adiante nesta seção (Magdoff e Foster incorretamente observam no seguinte fenômeno: A participação dos salários [excluindo benefícios] caiu; Dividendos e rendimentos de juros cresceram em relação às remunerações de empregados; e as remunerações caíram em termos de sua participação no PIB). Aqui, serão discutidos os diversos defeitos em sua análise que lhe são específicos, ou que são menos comuns (Cf. KLIMAN, 2013a, 2013b). Primeiro, Magdoff e Foster superestimam a queda na remuneração dos empregados como percentual do PIB ao construir sua própria medida da remuneração ao invés de usar a provida pelo governo. Pegam as remunerações dos empregados do governo e somam com o que eles chamam de empregados do “setor privado”. Isto está adequado, em princípio. Mas o que eles consideram como dados do “setor privado” são na verdade dados do setor empresarial (business sector). O resultado é uma miscelânea inconsistente. Estão excluídas as remunerações dos empregados no setor privado obtidas fora do setor empresarial, em organizações não-lucrativas e domicílios, além de contabilizar duplamente as remunerações recebidas por empregados de empresas públicas, como o serviço postal, que são ao mesmo tempo parte do setor empresarial e do setor governamental (government sector). O efeito líquido deste erro é substancial. Enquanto a participação dos salários no PIB caiu 3 pontos percentuais entre 1982 e 2007, a queda da participação “alternativa” de Magdoff e Foster foi de 4.5 pontos percentuais, mais de 50% maior. (Mas o motivo pelo qual mesmo a medida correta da participação dos salários no PIB não é capaz de medir de forma precisa a distribuição de rendimentos entre salários e lucros, será discutido abaixo). Segundo, em um esforço para demonstrar que a parcela do produto recebida pela “classe trabalhadora” – i.e., empregados não-gerenciais – caiu de forma ainda mais acentuada, Magdoff e Foster produziram um gráfico que supostamente deveria mostrar que a parcela dos salários totais recebidos pelos trabalhadores “da produção e não-supervisores” (production and non-supervisory workers – P&NS) caiu de 76% para 55% entre 1965 e 2007. Entretanto, os dados do governo indicam que a participação dos trabalhadores P&NS nos salários em 2007 era de 67%, e não 55%. Magdoff e Foster produziram seu gráfico expressando os salários dos trabalhadores P&NS como um percentual da totalidade dos salários tomada de outro conjunto de dados. Devido ao fato de que o segundo conjunto de dados adota uma definição muito mais ampla de salários, sua totalidade de salários é muito maior. Magdoff e Foster não ajustaram os salários dos trabalhadores P&NS à luz desta discrepância. Como efeito, eles apenas assumiram que toda a discrepância entre as duas totalidades de salários (da fonte de dados utilizada) consistia em salários adicionais de empregados não-P&NS. Eles não tentam justificar esta suposição, e ela está completamente equivocada, como demonstrei em outra oportunidade (KLIMAN, 2013b, 2014b). Terceiro, notando que os dados de remuneração dos empregados (employee-compensation data) incluem a “remuneração que vai para os CEO’s e outros funcionários de alta gerência que seriam melhor incluídos nos rendimentos do capital do que do trabalho”, Magdoff e Foster tentam estimar a porção da remuneração que contaria de forma legítima como rendimento do trabalho. Novamente, eles usaram os salários dos trabalhadores P&NS. Entretanto, os dados dos P&NS são completamente inapropriados neste contexto. O número de trabalhadores P&NS é bem menor do que o número de empregados não-gerenciais – em 2007, apenas um pouco mais da metade dos trabalhadores não-P&NS eram gerentes ou supervisores – e as remunerações dos trabalhadores P&NS subestimam claramente os salários dos empregados não-gerenciais numa extensão ainda maior. Ademais, ainda que Magdoff e Foster tivessem estimado corretamente os salários dos empregados não-gerenciais, seu procedimento seria ilegítimo, uma vez que exclui dos rendimentos do trabalho os salários da grande maioria dos gerentes e supervisores que não são parte do “gerenciamento de alto nível”. Como resultado, eles subestimam radicalmente a porção da remuneração dos empregados que é genuinamente rendimento do trabalho (abaixo apresentarei minha própria tentativa para estimá-lo). Por fim, eles utilizam o índice de preços CPI-W para ajustar os salários à inflação. Este índice é inconsistente; quando os métodos usados para computar novos valores apurados por este índice mudam, os valores antigos são deixados sem revisão. Deste modo, atualmente os pesquisadores têm em geral utilizado o CPI Research Series Using Current Methods (CPI-U-RS), que elimina estas inconsistências, ou outro índice consistente. É notável que os aumentos estimados nos salários e remunerações reais são substancialmente menores quando utilizado o índice adotado por Magdoff e Foster. Entre 1987 e 2007, por exemplo, os rendimentos semanais médios reais – excluídos os benefícios – recebidos pelos trabalhadores P&NS aumentaram 3,2% quando observados com o ajuste de inflação do CPI-W, mas o aumento foi de 6,5% se o ajuste for pelo CPI-U-RS, e de 12,1% se for utilizado o índice de preços personal consumption expendidures. Incompreensões mais difundidas A atenção agora será voltada para as mais compartilhadas incompreensões sobre salários e distribuição que levam as pessoas a descartar de forma inapropriada o fato de que a taxa de lucros das corporações estadunidenses caiu e não foi capaz de recuperar-se sob o neoliberalismo. Um “fato” muito publicizado é o de que a produtividade cresceu mais rápido do que a remuneração dos empregados. Por exemplo, Mishel e Shierholz (2011) reportam que a produtividade aumentou quase três vezes mais rápido do que a remuneração média por hora durante 1989 e 2010, e entende-se equivocadamente que esta evidência implica que uma redistribuição substancial de salários para lucros ocorreu: “Se a produtividade do trabalhador cresce enquanto a remuneração fica estagnada ou cai, os lucros crescem” (Henwood, 2014). A primeira frase estaria correta se “produtividade” e “remuneração” fossem definidas da maneira usual, mas a chamada fenda produtividade-remuneração um artifício produzido por um ajuste inconsistente da inflação. Um índice de preços é usado para deflacionar o produto, e logo a produtividade, enquanto um índice diferente é usado para deflacionar a remuneração dos empregados (KLIMAN, 2014a). Enquanto o último índice aumento muito mais rápido do que o primeiro (porque os preços para o consumidor aumentam mais rápido do que os preços do produto) este procedimento resulta num crescimento desproporcional da produtividade em relação à remuneração. Se o mesmo índice for usado para deflacionar o produto e a remuneração dos empregados, ou se a comparação se der simplesmente entre os valores nominais do produto e da remuneração, como feito na Figura 5, o resultado é que não há desproporção. No setor corporativo estadunidense, assim como no setor empresarial como um todo, a remuneração não apresenta qualquer tendência como parcela do produto líquido (valor adicionado líquido) entre 1970 e a Grande Recessão. Isto significa que a remuneração e o produto basicamente cresceram às mesmas porcentagens, o que por sua vez implica que a remuneração por hora e o produto por hora – a produtividade – também cresceram basicamente à mesma porcentagem. Os lucros não cresceram às expensas da remuneração dos empregados. Alguns outros estudos parecem chegar à conclusão oposta, mas eles na verdade mostram apenas que a remuneração dos empregados caiu como parcela do PIB ou algo similar, não como parcela do valor adicionado líquido. Existem duas razões pelas quais o PIB é um denominador inadequado para este caso. Primeiro, ele inclui o produto de setores onde não existe lucro – o produto do governo, das instituições não-lucrativas, dos profissionais autônomos e o valor de “serviços de habitação” (housing services) providos pelos lares para os proprietários que neles vivem. Um aumento relativo neste tipo de produto reduz a participação das remunerações dos empregados no PIB, mas obviamente não significa que os lucros cresceram às expensas dos salários. Segundo, a depreciação representa uma substancial e crescente parcela do PIB, mas é um gasto, não uma forma de lucro ou de remuneração do trabalho. Sua inclusão no denominador levaria a inferências seriamente equivocadas no que diz respeito à distribuição. Devido ao fato de que a depreciação cresceu substancialmente como parcela do PIB, ao incluir a depreciação no produto chegar-se-ia à conclusão de que tanto a participação dos salários como a dos lucros no PIB caíram entre 1955 e 2007. Como notado acima, a estabilidade da participação dos salários tem sido questionada com base no argumento de que os dados sobre remuneração incluem aquela auferida pelos CEOs e outros executivos de alto nível, que seria sem dúvida parte dos lucros e não da remuneração dos trabalhadores por seus serviços. De todo modo a questão chave é quantitativa: Qual a proporção do avanço da remuneração dos executivos de alto nível avançou sobre a remuneração dos outros trabalhadores? No seu Capital in the 21st Century, Thomas Piketty (2014, p.302, 315) defende que a crescente remuneração dos “supermanagers” – “Executivos de alto nível de grandes empresas que conseguem obter pacotes de remuneração extremamente altos, sem precedentes históricos, por seu trabalho” – seriam a “razão primária para a crescente desigualdade de rendimentos das últimas décadas”. Isto sugere que sua remuneração teria avançado substancialmente sobre as dos trabalhadores. Piketty, entretanto, interpreta muito mal o estudo (BAKIJA; COLE; HEIM, 2012) no qual sua afirmativa se baseia. Ele afirma que o estudo teria descoberto que de 60% a 70% dos 0,1% mais ricos seriam supermanagers. (Piketty, 2014, p.302), mas as estatísticas a que ele se refere não tratam apenas de supermanagers. Elas também incluem profissionais – entre os quais 80 % não são de posição gerencial- bem como proprietários-gerentes de negócios não-corporativos de capital fechado, que recebem uma remuneração relativamente baixa (os rendimentos destes negócios não está incluído como parte da remuneração na Figura 5). Embora tenha subido substancialmente, este aumento não avançou sobre a remuneração dos empregados do setor empresarial; Ao contrário, ele avançou sobre os rendimentos de outros empresários e de profissionais liberais, e também as expensas dos juros recebidos por rentistas (Cf. KLIMAN 2014c, 8n). Usando dados não-publicados que os autores do estudo gentilmente cederam-me, é possível perceber que menos de um quarto daqueles entre os 0,1 % mais ricos e dos 1 % mais ricos se encaixariam na definição de supermanagers de Piketty. Ademais, minha estimativa para período entre 1979-2005 indica que, embora de fato os supermanagers tenham recebido uma parcela crescente do produto líquido, este aumento não afetou seriamente outros empregados – pressionando sua participação em apenas 0,6 pontos percentuais. Mesmo ao assumir, de forma extravagante, um aumento de sua remuneração que ultrapassa em muito seus rendimentos totais, não foi possível obter como resultado uma redução na participação da remuneração dos outros empregados de mais de 1 ponto percentual (cf. KLIMAN, 2014c). Embora a remuneração média por hora dos empregados tenha mantido o mesmo ritmo da produtividade, a remuneração recebida pelo trabalhador mediano cresceu de forma muito mais lenta. Como o crescimento da remuneração dos executivos de alto nível conta muito pouco para este distanciamento, quase todo ele deve-se à desigualdade de pagamentos recebidos pelos trabalhadores “reais” – ou seja, trabalhadores outros que não os supermanagers – pessoas que trabalham em funções gerenciais, financeiras, ou outras ocupações de negócios (muitos poucos dos quais se encaixariam na definição de supermanager) e profissionais que obtiveram aumentos em sua remuneração bem maiores que a média, como ocorreu com as mulheres com alguma educação superior, e homens com um diploma de no mínimo quatro anos de estudos universitários. A crescente desigualdade da remuneração do trabalho foi particularmente acentuada entre 1979 e 1988, depois se tornando mais moderada (CONGRESSIONAL BUDGET OFFICE, 2011, p.12, Fig. 7). Este crescimento da desigualdade não teve nada a ver com uma redistribuição de salários para lucros. Tratou-se de uma redistribuição de remunerações de trabalhadores de baixos salários para remunerações de trabalhadores de altos salários. Deve-se apontar também que a crença bastante difundida de que os salários estagnaram é baseada em dados que consideram apenas salários no sentido estrito. Entretanto, uma grande parcela dos trabalhadores também recebe benefícios de planos de saúde e pensões de seus empregadores e quase todos os empregadores pagam metade das taxas que financiam os benefícios de Seguridade Social e de Medicare dos empregados. Tudo isto é contado como remunerações dos empregados nas contas nacionais dos Estados Unidos e este procedimento é aceito internacionalmente. E uma vez que a remuneração total por hora manteve plenamente o mesmo ritmo de crescimento da produtividade, a estagnação dos “salários” foi totalmente compensada pelo acentuado aumento da componente de benefícios da remuneração. É possível argumentar que um dólar de rendimentos não-monetários (e.g., benefícios de seguro-saúde e Medicare) provê menos utilidade do que um dólar de rendimento monetário, e é mesmo possível argumentar que estes rendimentos não são realmente remuneração. Mas isto é irrelevante para a questão em tela – se os lucros cresceram as expensas dos salários recebidos pelos trabalhadores. Cada dólar a mais recebido por um trabalhador como benefício não-monetário pode não ser “salário” adicional, e alguém poderá até mesmo se recusar a chamá-lo de remuneração, mas ainda assim ele será algo que adiciona-se ao que o empregado recebe, e que reduz os lucros da companhia em um dólar inteiro, da mesma forma que os salários monetários. A estagnação dos salários simplesmente não é evidência de que os lucros cresceram as expensas dos empregados. A desigualdade de rendimentos nos Estados Unidos claramente cresceu, mas é errado inferir disto que os lucros cresceram as expensas das remunerações dos trabalhadores. Apontamos acima uma razão pela qual isto é um equívoco: Uma parte substancial do crescimento da desigualdade está entre os trabalhadores. Outra razão é que a desigualdade de rendimentos pode aumentar simplesmente porque uma parcela maior dos lucros seja distribuída aos proprietários na forma de juros ou dividendos. Isto pode ocorrer mesmo quando os lucros totais não crescem; neste caso, os dividendos e juros crescentes seriam totalmente compensados por uma redução da parcela dos lucros retida pelas próprias corporações. Isto ocorreu de fato nos Estados Unidos. O percentual médio de lucros (excedente operacional líquido) utilizado para pagar juros e dividendos aumentou de 21% entre 1947 e 1968 para 30% entre 1969 e 1979, e para 47% entre 1980 e 2007. Este crescimento se deu às expensas dos lucros retidos, e não da remuneração dos empregados (cf. KLIMAN, 2014b). Apesar de toda a discussão acima, admito que seria difícil reconciliar os dados de desigualdade com a queda da taxa de lucros e a estabilidade da participação dos salários no produto líquido se o crescimento da desigualdade fosse tão grande quanto o que se costuma acreditar. Entretanto, entendo que quando “rendimento” é definido de uma forma significativa e relevante, o crescimento da desigualdade é muito menor. Estudos que relatam os aumentos mais dramáticos na desigualdade são baseados na definição estreita e um tanto peculiar de rendimento empregada por Piketty e Emmanuel Saez. Devido a limitações dos dados de pagamentos fiscais que eles utilizam, seu trabalho (e.g. PIKETTY; SAEZ, 2003) não mede os rendimentos de indivíduos ou de famílias (households), mas de unidades fiscais (tax units – indivíduos ou casais, mais dependentes). Como as taxas de casamentos caíram mais na base da distribuição de rendimentos do que no topo, o número de unidades fiscais na base aumentou mais rapidamente. Como resultado, o rendimento por unidade fiscal na base cresceu menos do que o rendimento por pessoa, ou por família, e isto impulsiona a desigualdade conforme medida por Piketty e Saez. Ademais, ao contrário de outros pesquisadores, eles não ajustaram seus dados para o declínio no tamanho das famílias (ou das unidades fiscais). Em parte devido às limitações dos dados, seus dados sobre rendimentos também excluem todo rendimento não monetário (Medicare, Medicaid, vales-refeição, auxílios-moradia, etc) assim como outras transferências de renda em dinheiro do governo (Seguridade social, seguro desemprego, entre outros benefícios). O rendimento de seguridade social pago pelas taxas dos empregadores não é contado quando é pago; é simplesmente excluído. Tudo isto claramente deprime o crescimento dos rendimentos na base e impulsiona o crescimento da desigualdade que é medido. Os dados de pagamentos de impostos não são adequados porque as séries de dados não são consistentes ao longo do tempo. Elas mudam de acordo com as mudanças no direito tributário. Um aspecto especialmente importante do problema é o aumento de mais de 50% nos rendimentos dos “1% mais ricos” entre 1986 e 1988. Este aumento é uma parte grande do aumento total da participação dos “1%” nos rendimentos encontrado por Piketty e Saez. Mas os rendimentos dos “1%” não cresceram realmente mais de 50% em apenas dois anos. O que realmente ocorreu foi que uma grande parcela dos seus rendimentos passou, de forma súbita, a ser declarada como rendimento individual ao invés de ser declarada como rendimento corporativo devido a uma mudança no direito tributário que reduziu as taxas nas alíquotas mais altas para os indivíduos para um nível mais baixo do que o das taxas das alíquotas mais altas para as corporações. Mudanças na forma que os rendimentos em ações e opções são declarados também podem expressar outro problema significativo. Embora Mechling e Miller (2012, p.1) sejam apreciadores do trabalho que Piketty e Saez realizaram para construir seu conjunto de dados, eles argumentam que este conjunto “seria mais adequado para pesquisar as mudanças nos rendimentos do que para estudar a desigualdade de rendimentos ao longo do tempo”. Armour, Burkhauser e Larrimore (2013) mostram que o grau do crescimento da desigualdade é drasticamente maior quando a definição de Piketty e Saez é utilizada, do que quando o rendimento é definido como rendimento pós-impostos de famílias com o tamanho ajustado, incluindo tanto as remunerações monetárias quanto às não-monetárias. Parte da grande diferença parece ser específica ao seu conjunto de dados, que evidentemente não chega a levar em conta de forma adequada todas as fontes de rendimentos daqueles no ponto mais alto da distribuição. Mas os dados que acompanham um estudo recente do escritório de orçamento do congresso (Congressional Budget Office, 2012), baseado nos dados de pagamentos de impostos como os que Piketty e Saez usam, mas adotando uma definição rendimentos como a de Armour, Burkhauser e Larrimore (na qual o rendimento de ganhos de capital e excluído), também sugerem que a diferença nas definições tem um grande efeito nos resultados. Em suma, uma vez os equívocos sejam esclarecidos e os dados sobre distribuição sejam devidamente apreciados, as evidencias de que a taxa de lucros caiu não mais parecem estar em conflito com tais dados. O futuro Será possível eliminar as grandes crises do capitalismo como a Grande Recessão? Infelizmente, eu duvido muito. Ben Bernanke (2010) compartilhou uma visão similar em seu depoimento diante da Comissão de investigação sobre a Crise Financeira: As descobertas desta comissão nos ajudarão a entender melhor as causas da crise, o que por sua vez aumentará nossa habilidade para evitar crises futuras e mitigar os efeitos daquelas que ocorrerem. Não deveríamos imaginar, entretanto, que seja possível evitar todas as crises. Uma economia em crescimento e dinâmica requer um sistema financeiro que faça uso efetivo da poupança disponível alocando crédito para as famílias e as empresas. O oferecimento de crédito inevitavelmente envolve correr riscos. Acredito que a maior evidencia de que as grandes crises não podem ser evitadas sob o capitalismo seja a própria existência da Grande Recessão. Ela não deveria acontecer, mas aconteceu. Embora a crença de que a economia poderia ser submetida a um “ajuste fino” já tenha algumas décadas, os economistas elaboradores de política econômica não esperavam que uma crise de grandes proporções como a Grande Recessão pudesse ocorrer. Como admite David Romer (2011, p.1-2), um distinto macroeconomista e marido de Christina Romer, ex-dirigente do Conselho Presidencial de Conselheiros Econômicos: A crise macroeconômica que começou em 2008 despedaçou algumas das crenças centrais dos macroeconomistas e dos formuladores de política macroeconômica: – Nós pensávamos que tínhamos as flutuações macroeconômicas sob controle, mas elas retornaram e se vingam. – Os modelos estocásticos dinâmicos novo keynesianos (DGSE), nosso modelo burro-de-carga (workhorse) no qual estivemos concentrando tanto de nossa atenção nos foi de um valor mínimo no trato da maior crise macroeconômica dos últimos três quartos de século. Em suma, temos muita reflexão a fazer. Este é o estado da macroeconomia hoje. Talvez alguém ainda possa formular políticas fiscais e monetárias que venham a prevenir as crises futuras, mas como as dezenas e dezenas das melhores cabeças que vem trabalhando nestas questões ao longo dos últimos 80 anos ainda tem “muita reflexão a fazer”, eu não ficaria muito otimista. Mas e a regulação financeira? Ela não poderia evitar a recorrência de grandes crises? Para ajudar a responder esta questão, é útil relembrar a crise estadunidense do mercado de poupança e empréstimo (S&L - savings and loans crisis) dos anos 1980, que ocorreu quando o mercado de cadernetas de poupança era altamente regulado. De fato, a crise de S&L foi causada pela regulação. Uma lei federal impôs um teto nas taxas de juros que os S&Ls poderiam pagar aos titulares dos depósitos. Cerca de dois terços dos Estados também tinham leis de usura que limitavam os juros que poderiam ser cobrados nos empréstimos hipotecários que os S&L faziam (as hipotecas domiciliares eram o seu principal negócio). Os S&Ls eram conhecidos como a “indústria 3-6-3”: Captar recursos a 3%, emprestá-los a 6%, e estar no campo de golfe às 3 da tarde. Era um negócio muito chato, mas supostamente era muito seguro e estável. Entretanto, metade de todos os S&Ls que existiam em 1986 faliram ou foram comprados por outras instituições entre aquele ano e 1995 (CURRY; SHIBUT, 2000, p.26). Depositantes de S&Ls falidos cujos depósitos eram garantidos pelo governo federal, precisaram ser resgatados, e o custo do resgate para os contribuintes durante o período de 1986 a 1995 foi de $ 135 bilhões – fora os juros dos títulos que o governo emitiu para pagar o resgate (Id., 2000, p.31, 33). Embora a regulação tenha controlado as taxas de juros que os S&Ls pagavam e cobravam, elas não controlavam a espiral inflacionária que ocorreu no final dos anos 1970 e no início dos anos 1980, depois que o sistema de taxas de câmbio fixas de Bretton Woods entrou em colapso e a Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP) aumentou os preços. Quando a inflação acelerou, os juros que os S&Ls recebiam com seus empréstimos hipotecários se tornaram mais baixos que a inflação, de modo que em termos reais (ajustados à inflação) eles estavam perdendo dinheiro. Além disso, a baixa taxa de juros que o governo permitia que os S&Ls oferecessem aos depositantes estava ainda mais abaixo da taxa de inflação. Os depositantes estavam perdendo rapidamente seu dinheiro deixado nos S&Ls. Esta situação estimulou o rápido crescimento de uma alternativa desregulada de mercado monetário com os fundos mútuos, que estavam pagando taxas maiores que a inflação. Os depositantes estavam felizes em ter esta alternativa e correram para estes fundos mútuos de mercado monetário. Deste modo, a regulação e a inflação criaram uma situação uma quantidade insuficiente de dinheiro estava entrando e dinheiro demais estava saindo. Numa tentativa de evitar o colapso dos S&Ls, o Congresso aprovou em 1980 uma lei que anulava as leis estaduais de usura. Isto permitiria aos S&Ls alterar a taxa de juros cobradas nos novos empréstimos para percentuais que excedessem a taxa de inflação, mas isto não resolveria o problema fundamental: quase todo o seu rendimento vinha da cobrança de juros dos contratos de empréstimo já existentes – empréstimos hipotecários de 30 anos que eles tinham se estendiam desde as décadas de 1950, 1960 e 1970 a taxas de juros baixas. A lei de 1980 também permitiu que os S&Ls emprestassem mais ao reterem menos capital, e que entrassem em alguns negócios imobiliários e empréstimos especulativos. Estes negócios seriam potencialmente mais lucrativos do que as hipotecas, mas também bem mais arriscados. Como a crise continuou a piorar, o Congresso tomou medidas adicionais para evitar o colapso dos S&Ls. Em 1982, foi aprovada uma lei que elevou o teto das taxas de juros que os S&Ls poderiam oferecer aos depositantes. A nova lei também permitia que os S&Ls se envolvessem em negócios ainda mais especulativos, além de afrouxar ainda mais os requerimentos de capital. Mas era too little, too late. As provisões das leis de 1980 e 1982 que permitiram aos S&Ls tentarem recuperar suas perdas através de investimentos em negócios imobiliários especulativos e empréstimos de alto risco só agravaram o problema, já que muitos desses empréstimos nunca foram pagos. O resultado final foi o maior resgate da história dos Estados Unidos até o TARP. Embora a desregulamentação dos S&Ls tenha sido o golpe de misericórdia, ela representou um esforço fracassado para corrigir um problema crítico que já existia. As causas originais do problema foram as taxas de juros reguladas e as taxas de inflação crescentes que as políticas “Keynesianas” não puderam evitar. E a razão pela qual o resgate custou tanto dinheiro dos contribuintes deveu-se ao fato de que o governo garantiu os depósitos. É claro que se poderia argumentar que a regulação foi ainda assim eficiente, pois a crise dos S&Ls se limitou a um setor em um país, enquanto a última crise financeira se deu em escala mundial. Mas a razão pela qual o impacto da crise dos S&L foi tão limitado foi que o escopo da regulação era também limitado. Imagine que todas as taxas de juros nos Estados Unidos fossem reguladas. Quando a inflação acelerou, o dinheiro não teria apenas fugido dos S&Ls, teria fugido dos Estados Unidos. Haveria uma crise maciça de escala nacional que poderia inclusive levar a crises em outros países. Há também alguns outros problemas fundamentais com a idéia de que a regulação pode prevenir crises financeiras. O primeiro é que as novas regulações estão sempre “lutando a guerra passada”. Como disse Micheal Niemira, vice-presidente e economista-chefe do Conselho Internacional de Shopping Centers, quando o senado dos Estados Unidos aprovou a reforma financeira da lei Dodd-Frank: “É improvável que a origem da próxima crise financeira seja a mesma da última – Isto raramente ocorre” (Izzo, 2010). O outro problema foi essencialmente resumido por um cartoon publicado na New Yorker (VEY, 2009) de dois contadores em um escritório. Um se vira para o outro e diz: “Estas novas regulações vão mudar fundamentalmente as formas que usaremos para contorná-las”. Esta visão pessimista da regulação não é excepcional. A lei Dodd-Frank obrigou os bancos a reterem mais capital, e suas provisões tendem a aumentar seus custos e reduzir seus lucros. Entretanto, quando o Senado e a House of Representatives bateram o martelo com a versão final da Lei, as ações dos bancos subiram 2,7%. Gretchen Morgenson (2010), do New York Times, comentou que ou esta reação era “um mistério”, ou então “os investidores já estariam contando que os bancos farão o que fazem de melhor: acharão formas de contornar as novas regras e restrições”. Até os mais convictos defensores da visão de que as regulações são a solução, como Joseph Stiglitz, reconhecem que as instituições financeiras sempre acham uma forma de contorná-las. Durante o pânico de 2008, ele publicou um artigo no qual propunha um conjunto de seis reformas que seriam posteriormente incorporadas nas recomendações da comissão da ONU sobre reforma monetária e financeira que ele liderou (popularmente conhecida como comissão Stiglitz). Embora o artigo fosse intitulado “Como prevenir a próxima crise de Wall Street”, em seu parágrafo final ele concede que “estas reformas não garantem que não teremos outra crise. A engenhosidade daqueles que atuam nos mercados financeiros é impressionante. Eventualmente, eles descobrirão uma forma de enredar qualquer regulação que for imposta” (STIGLITZ, 2008). Então por que propor tais regulações? Stiglitz (2008) nos assegura que “estas reformas farão outra crise como este menos provável, e, caso ocorra, a farão ser menos severa do que seria sem as reformas”. Mas se, como ele mesmo diz, os mercados financeiros “descobrirão uma forma de enredar qualquer regulação que for imposta”, então as regulações não mais os restringirão uma vez que tenham descoberto como contorná-las, e neste momento uma crise financeira se tornará tão provável quanto era anteriormente. O melhor que poderia ser dito sobre novas regulações é que elas ajudariam a retardar a próxima crise, enquanto os mercados ainda estão encontrando formas de contorná-las. Mas retardar a crise significa mais expansão artificial e insustentável da economia através de endividamento excessivo neste ínterim, de modo que a contração será maior, e não menor, quando a bolha da dívida finalmente estourar [15]. Acredito que no futuro próximo, o capitalismo se torne mais instável e propenso a crises, do que foi antes da crise financeira de 2007-2008, e que o principal fator para debelá-la tenha sido, paradoxalmente, a fonte da crescente instabilidade. Estou me referindo à doutrina do “grande demais para quebrar” (too big to fail - TBTF), e ao perigo moral que ela gera (perigo moral – moral hazard – ocorre quando um grupo é encorajado a assumir riscos excessivos devido ao fato de que outro grupo assumirá os custos caso as coisas dêem errado). Durante a crise o TBTF foi aplicado pela primeira vez para instituições financeiras outras que não os bancos comerciais, tais como Bear Stearns e AIG. O Lehman Brothers foi deixado quebrar, mas isto provou-se um erro de alto custo, que o governo certamente não repetirá. Como coloca James Bullard (2010), presidente do Federal Reserve Bank de St. Louis: “A crise financeira mostrou que as grandes instituições financeiras em todo o mundo são grandes demais para quebrar (...), podemos deixá-las falir repentinamente, mas então se seguirá o pânico global”. Desta forma, a última crise e a resposta dada pelos formuladores de políticas a ela exacerbaram substancialmente o problema do TBTF. Antes da crise, não era algo totalmente claro que em “circunstâncias incomuns e urgentes”, o governo iria socorrer toda e qualquer instituição financeira de importância sistêmica. Agora, entretanto, isto está completamente claro. Como resultado, o perigo moral cresceu significativamente. Aqueles que as emprestam dinheiro, e também seus acionistas, têm um incentivo ainda maior do que antes para se envolver em comportamentos de risco, fiando-se na certeza de que o público assumirá e sofrerá as consequências de seus riscos excessivos. É extremamente duvidoso que algo possa ser feito nos marcos do capitalismo para que as instituições financeiras deixem de se tornar grandes demais para quebrar, ou para reduzir permanentemente o tamanho daquelas que já são muito grandes. Economias de escala permitem que as grandes empresas vençam a concorrência com as pequenas. Esta dinâmica é especialmente pronunciada no setor financeiro, onde um banco não precisa nem de 100 vezes mais trabalho nem de 100 vezes mais computadores para emprestar US$ 100 milhões ao invés de US$1 bilhão. Nos Estados Unidos, a grandeza e o número das empresas TBTF provavelmente crescerá consideravelmente, uma vez que o setor bancário não é nem de perto tão concentrado quanto ocorre na Europa [16]. O perigo moral, a tomada excessiva de riscos, e os resgates governamentais deverão, portanto, aumentar da mesma forma. Por fim, penso que existem boas razões teóricas para duvidar que as grandes crises possam ser evitadas sob o capitalismo. Uma razão é aquela já mencionada por Bernanke: “Uma economia em crescimento e dinâmica requer um sistema financeiro que faça uso efetivo da poupança disponível alocando crédito para famílias e empresas. A provisão de crédito envolve inevitavelmente a tomada de riscos”. Entretanto, embora seja verdade que toda economia em crescimento precisa de alguma forma colocar os recursos adicionais (poupança) em uso, e não consumi-los ou entesourá-los, um sistema financeiro é uma instituição especificamente capitalista; e o tipo de risco que Bernanke tem em mente – tomadores assumindo riscos com os recursos dos credores – seja também uma instituição especificamente capitalista. Ela existe apenas devido ao fato de que tomadores e credores aparecem como entidades separadas e opostas; isto não existiria numa sociedade comunista. De fato, a própria noção de crédito não faria muito sentido numa sociedade deste tipo. Da mesma forma que uma família não pode obter crédito dela mesma, pagar a si mesma, ou falhar em pagar uma dívida a si mesma – a família simplesmente decide usar os recursos ou poupá-los – o mesmo ocorreria numa sociedade comunista. É claro que qualquer decisão de utilizar os recursos ou poupá-los traz em si todo um conjunto de riscos, mas é difícil imaginar como uma decisão deste tipo poderia causar um declínio econômico prolongado. Os riscos associados com o sistema de crédito são diferentes porque as perdas não estão limitadas aos recursos que venham a ser desperdiçados. Elas são multiplicadas inúmeras vezes por meio da alavancagem. A teoria das crises de Marx também me faz duvidar que as grandes crises possam ser eliminadas sob o capitalismo. Outras teorias veem as crises como expressão de baixa produtividade, baixa demanda, a anarquia do mercado, intervenção estatal, altos salários, baixos salários, e etc. Todas sugerem que as tendências de crise no capitalismo podem ser a princípio reduzidas, ou eliminadas, consertado o problema específico que faz o sistema funcionar mal. Mas a teoria de Marx sugere que as crises não podem ser eliminadas porque elas não são causadas por fatores que podem ser eliminados deixando o sistema intacto. Sua lei tendencial de queda da taxa de lucros sugere que as crises são resultado da contradição entre a produção física e a produção de valor que está inscrita no funcionamento fundamental do capitalismo. Com o crescimento da produtividade, o valor das mercadorias cai. Seus preços consequentemente tendem a cair da mesma forma, assim como a taxa de lucro, e isto leva indiretamente a crises econômicas recorrentes. Para eliminar estas crises, é, portanto, necessário eliminar a produção de “valor” e o objetivo da acumulação de cada vez mais “valor”, e ao contrário produzir para satisfazer as necessidades dos seres humanos e fazer do autodesenvolvimento o objetivo de nossa atividade. Notas [1] Troubled Assets Relief Program. (N. do T.). [2] Estes números dizem respeito à taxa de lucros após a cobrança de impostos como um percentual do estoque líquido (ou seja, o investimento acumulado) em ativos fixos, deduzida a depreciação e avaliado historicamente. [3] Em seu Monopoly Capital (Capitalismo Monopolista), Baran e Sweezy (1966, p.81) tentam demonstrar que a demanda do investimento não pode crescer mais rápido que a demanda do consumo no longo prazo. A demonstração se funda de forma crucial em um erro lógico fatal. Eles argumentam que um crescimento da demanda do investimento que cresça mais rápido do que a demanda do consumo implicaria num crescimento econômico “explosivo” – i.e., que a taxa de crescimento se elevaria sem limites – e que isto seria “impossível”. Entretanto, a conclusão de Baran e Sweezy depende inteiramente na inferência incorreta de que, se algo cresce sempre, então não haveria limite. Crescimento permanentemente maior da demanda por investimento implica numa taxa de crescimento que se eleva continuamente, mas é fácil demonstrar que esta elevação não precisa ser ilimitada (KLIMAN, 2012a, p.167-173). [4] A tentativa feita em Monthly Review de aplicar esta teoria à Grande Recessão será analisada na sexta seção deste artigo. [5] A taxa de lucro pode ser expressada como π(pY) / ^pK = π(Y/K) (p/^p) onde π é a participação dos lucros (razão entre lucros e valor adicionado líquido), pY é o valor adicionado líquido, p é um índice dos preços correntes do produto físico líquido, Y é um índice do produto físico líquido, ^p é um índice médio ponderado dos preços passados aos quais as novas aquisições de capital físico foram feitas, e K é um índice de capital físico. Assume-se que o produto físico e o capital físico crescem às mesmas taxas (um “fato estilizado” bem conhecido entre os economistas), de modo que Y/K é uma constante, e que a participação nos lucros π também é constante. Então a taxa de lucro cairá como resultado do progresso técnico se, e somente se, aumentos na produtividade resultantes de inovações técnicas tenderem a reduzir p/^p (esta conclusão ajuda a esclarecer porque a lei de Marx não requer que os preços cheguem a cair de fato; o que importa não é se p é menor que ^p, mas se p/^p cai). [6] O ciclo descrito aqui não deve ser confundido com os ciclos de negócios de curto prazo (short-term business cycles). Marx identificava as causas destes argumentando que nas fases expansivas do ciclo os salários cresciam em relação aos lucros, o que levaria a um declínio no investimento produtivo, uma contração da atividade econômica, e uma queda nos salários em comparação com os lucros colocando as bases para uma nova expansão. [7] Fonte 1: USBEA (2014) http://bea.gov/iTable/index_nipa.cfm. PIB e Rendimentos individuais. Tabela 1.14 Valor adicionado bruto de empresas corporativas domésticas em Dólares correntes e valor adicionado bruto de empresas não-financeiras domésticas em Dólares correntes (linhas 1, 4, 7, 9, 10 e 12) para computar os lucros. Fonte 2: USBEA (2014) http://bea.gov/iTable/index_FA.cfm. Ativos fixos, tabela 6.6, depreciação por custos históricos dos ativos privados fixos por grupo setorial e forma de organização legal, linha 2 para a depreciação. Ativos fixos, tabela 6.3, estoque líquido por custos históricos dos ativos privados por grupo setorial e forma de organização legal, linha 2 para investimentos acumulados em ativos fixos descontada a depreciação. Taxa de lucros = lucro / estoque de ativos fixos. [8] Fonte 1: USBEA (2014) http://bea.gov/iTable/index_ita.cfm. Para dados dos ganhos pós-impostos antes do abatimento do imposto retido, clicar “Begin using data”, e então “International Transactions (ITA)”, então rolar a tela abaixo para “Previous Standard Tables”. Tabela 1, Transações internacionais dos Estados Unidos, linha 14 (recebimentos de investimento direto). Tabelas 7a e 7b, investimento direto: Rendimentos, fluxos financeiros, royalties e licenciamentos, e outros serviços privados, linha 6 ou 8 (ajuste a custos correntes) (linha 6 em 7a, linha 8 em 7b). Ganhos pós-impostos são a diferença entre recebimentos de investimento direto (tabela 1, linha 14) e ajuste a custos correntes (tabela 7b, linha 8; tabela 7a, linha 6) Para dados pós-impostos após o abatimento do imposto retido: Tabela 7ª e 7b, investimento direto: rendimentos, fluxos financeiros, royalties e licenciamentos, e outros serviços privados, linha 10 (rendimento de investimento direto sem ajuste a custos correntes). Fonte 2: USBEA (2014) http://bea.gov/international/di1usdbal.htm. Para o IED acumulado, selecionar as planilhas de Excel chamadas “Position on a historical-cost basis”. [9] A única outra justificativa para a taxa de custos de reposição é que ela supostamente se ajustaria à inflação, o que não ocorreria com as taxas de lucro em si conforme apresentadas acima. Entretanto, a taxa de custos de reposição não ajusta de fato à inflação – i.e, aumentos no nível geral de preços – ela ajusta para mudanças nos preços de ativos fixos. Computando as taxas de lucro ajustadas à inflação, percebe-se que os seus movimentos não divergem substancialmente dos movimentos na taxa de lucro nominal durante o período do início dos anos 1980 até a Grande Recessão (KLIMAN, 2012a, p.117-212; 82-88). [10] Esta seção do artigo se baseia extensivamente em Kliman e Williams (2014). [11] Fonte 1: USBEA (2014). http://bea.gov/iTable/index_nipa.cfm. PIB e Rendimentos individuais. Tabela 1.14 Valor adicionado bruto de empresas corporativas domésticas em Dólares correntes e valor adicionado bruto de empresas não-financeiras domésticas em Dólares correntes (linhas 1, 4, 7, 9, 10 e 12) para computar os lucros. Fonte 2: USBEA (2014) http://bea.gov/iTable/index_FA.cfm. Ativos fixos, tabela 6.6, depreciação por custos históricos dos ativos privados fixos por grupo setorial e forma de organização legal, linha 2 para a depreciação. Ativos fixos, tabela 6.3, estoque líquido por custos históricos dos ativos privados por grupo setorial e forma de organização legal, linha 2 para investimentos acumulados em ativos fixos descontada a depreciação. Participação do investimento = Investimento líquido / Lucro pós-impostos. Taxa de acumulação = Mudança no investimento acumulado em ativos fixos, a custos históricos / Investimento acumulado no final do ano precedente. [12] Fonte: USBEA (2014). PIB e Rendimentos individuais. Tabela 1.14 Valor adicionado bruto de empresas corporativas domésticas em Dólares correntes e valor adicionado bruto de empresas não-financeiras domésticas em Dólares correntes (linhas 1, 4, 7, 9, 10 e 12) para computar os lucros. Ativos fixos, tabela 6.3, estoque líquido por custos históricos dos ativos privados por grupo setorial e forma de organização legal, linha 2 para investimentos acumulados em ativos fixos descontada a depreciação. Taxa de acumulação = Mudança no investimento acumulado em ativos fixos, a custos históricos / Investimento acumulado no final do ano precedente. Participação do investimento = Investimento líquido / Lucro pós-impostos. [13] Fonte: USBEA (2014). Ativos fixos, tabela 6.3, estoque líquido por custos históricos dos ativos privados por grupo setorial e forma de organização legal, linha 2 para investimentos acumulados em ativos fixos descontada a depreciação. Ativos fixos, tabela 6.6, depreciação por custos históricos dos ativos privados fixos por grupo setorial e forma de organização legal, linha 2 para a depreciação. Os dados da tabela 6.6, linha 2 devem ser adicionados aos dados da tabela 6.3, linha 2 para estimar o “investimento bruto” e para os “lucros pós-impostos” (da Figura 1) para estimar o “lucro bruto”. [14] Fonte: USBEA (2014). http://bea.gov/iTable/index_nipa.cfm. PIB e Rendimentos individuais. Tabela 1.14 Valor adicionado bruto de empresas corporativas domésticas em Dólares correntes e valor adicionado bruto de empresas não-financeiras domésticas em Dólares correntes e por Chained Dollars (dólares ajustados por uma cesta variável de consumo). Linha 3 = produto das corporações, ou valor adicionado. Linha 4 = remuneração dos empregados nas corporações. Remuneração: PIB e Rendimentos individuais. Tabela 1.13. Rendimento nacional por setor, forma legal de organização e tipo de rendimento. Linhas 4 e 11 (remuneração dos empregados das corporações e dos setores não-corporativos, respectivamente).Valor adicionado ou produto: PIB e Rendimentos individuais, Tabela 1.9.5. Valor adicionado líquido por setor. Linha 2, setor de negócios. Para a linha escura: remuneração dos empregados das corporações / valor adicionado das corporações. Para a linha oca: Remuneração dos empregados do setor de negócios / valor adicionado nas no setor de negócios. [15] O relatório final da Comissão Stiglitz afirma: “O fato de que as firmas estão sempre inventando novas formas de contornar as regulações significa que os governos devem ver as regulações como um processo dinâmico” (COMISSION OF EXPERTS, 2009, p.63). [16] Em 2008 e 2009, 56% dos ativos dos bancos europeus eram de propriedade dos seus 1000 maiores bancos, mas apenas 13% dos ativos de bancos estadunidenses eram de propriedade de seus 1000 maiores bancos (IFSL RESEARCH, 2010, p.3, gráfico 7). Referências bibliográficas ARMOUR, P.; BURKHAUSER, R.; LARRIMORE. J.. Levels and Trends in United States Income and its Distribution: A Crosswalk from Market Income Towards a Comprehensive Haig-Simons Income Approach. NBER Working Paper, n. 19110, jun. 2013. Disponível em: http://www.nber. org/papers/w19110 BAKIJA, J.; Cole, A.; Heim, B. Jobs and Income Growth of Top Earners and the Causes of Changing Income Inequality: Evidence from U.S. Tax Return Data Apr. 2012. 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- Cambaleando rumo à utopia ou correndo rumo ao desastre?
Por Michael Roberts – economista britânico e professor da Universidade de Sussex Tradução: Wesley Sousa Revisão: Pedro Badô Link do original:Michael Roberts Bradford DeLong é um dos mais proeminentes economistas keynesianos e historiadores econômicos do mundo; ele é professor de Economia na Universidade da Califórnia, Berkeley. DeLong serviu como Vice-Secretário Assistente do Departamento do Tesouro dos EUA na Administração Clinton sob Lawrence Summers. Sua figura é um arquétipo Democrata Liberal na política dos EUA, um clássico keynesiano na economia. Ele publicou um novo livro intitulado Cambaleando rumo à utopia: uma história econômica do século XX. Esta é uma obra ambiciosa com o objetivo de analisar e explicar o desenvolvimento da economia capitalista no que considera ser o seu período mais bem sucedido: o século XX.. Em especial, DeLong alega que o capitalismo, como uma força progressiva para desenvolver as necessidades da humanidade, apenas decolou de 1870 até a Grande Recessão de 2008-9, que completou o que chamou de “longo século XX”. Quais foram as razões que permitiram ao capitalismo um crescimento econômico mais rápido e um salto quântico nos padrões de vida a partir de 1870? DeLong diz que elas foram “a emergência tripla da globalização, laboratórios de pesquisas industriais e a corporação moderna”. Esses fatores, “deram início a mudanças que começaram a tirar o mundo da terrível pobreza que havia na humanidade nos últimos 10 mil anos, desde a descoberta da agricultura”. Assim, o crescimento deveu-se à expansão das economias de capital e de mercado do hemisfério norte para o resto do mundo; à aplicação de novas tecnologias e descobertas científicas; através de empresas modernas que as desenvolveram para o mercado. Com efeito, DeLong alega que o capitalismo trabalhou durante o século XX para melhorar o destino da humanidade, a despeito de duas terríveis grandes guerras mundiais; conflitos regionais incessantes; e a exploração intensiva das empresas multinacionais do globo. Mas esse “longo século XX” terminou em 2010, com as avançadas economias capitalistas “incapazes de retomar o crescimento em qualquer coisa perto do ritmo médio que tinha sido a regra desde 1870”. DeLong afirma que para o capitalismo, em seu longo século XX, “as coisas eram maravilhosas e terríveis, mas pelos padrões do resto de toda a história humana, muito mais maravilhosa do que terrível”. Foi o século “que nós vimos acabar com a nossa pobreza material quase universal”. O capitalismo foi bem sucedido durante este longo século, primeiramente, por causa do poder do mercado, digamos em comparação com o fracasso do "planeamento" como na União Soviética. Por isso, diz DeLong, podemos agradecer “o gênio – do tipo de Dr. Jekyll –, filósofo moral austro-inglês-chicagoano Friedrich August von Hayek”, que observou que “a economia de mercado fomenta a colaboração coletiva e coordena soluções na base dos problemas que estabelece”. Tendo o capitalismo as instituições certas para organização e para pesquisa e tendo as tecnologias, e tendo sido totalmente globalizado, isso “destravou o portal que anteriormente tinha mantido a humanidade na pobreza. O problema de tornar a humanidade rica poderia agora ser posto para a economia de mercado, porque agora isso tinha uma solução”. Assim, o capitalismo parecia estar correndo rumo à utopia que muitos desejavam: sem pobreza e liberdade para trabalhar duro – uma utopia que Keynes tinha reivindicado ser provável (até agora, em 2022) quando deu aulas aos seus estudantes da Universidade de Cambridge em 1931 contra o comunismo e a favor de uma utopia baseada na ciência de uma sociedade de lazer. Qual é a evidência do sucesso do capitalismo no século XX? Bem, isso parece irrefutável. Baseado nas melhores estimativas estatísticas que nós temos, DeLong afirma que a economia mundial cresceu apenas 0,45% ao ano (medida do PIB real) antes de 1870. Mas após 1870, acelerou para 2,1% ao ano, em média, até 2010. E “2,1% em média de crescimento para os 140 anos [nesse intervalo] é uma multiplicação por um fator surpreendente de 21,5%”. Se considerarmos a população, a renda média mundial per capita em 2010 foi cerca de 8,8 vezes a de 1870. DeLong conclui que este é “um guia muito aproximado do quanto a humanidade é mais rica em 2010 do que era em 1870”. A tese de DeLong baseia-se na sua escolha de 1870 como um divisor de águas para o desenvolvimento sob o capitalismo. E há algumas evidências disso, como mostram seus números. Mas ainda me parece arbitrário. Desde o início do capitalismo agrícola, em meados do século XVII, liderado por uma Inglaterra republicana e pelos Países Baixos, o crescimento econômico saltou mais rapidamente do que no período medieval. Claro, é verdade que a população também cresceu, e pelo menos até ao início do século XIX manteve o ritmo ou mesmo ultrapassou o crescimento económico, de modo que o rendimento per capita não aumentou sensivelmente - aparentemente justificando a análise malthusiana (e a receita reacionária de Malthus de aceitar elevadas taxas de mortalidade num mundo sombrio). No entanto, Malthus estava errado. O modo de produção capitalista, particularmente em sua fase industrial até o início do século XIX, acelerou a produtividade do trabalho e também a produção nacional geral. De fato, como aponta DeLong, Marx e Engels já tinham visto em 1848 que o modo de produção capitalista era uma força prometéica que iria desenvolver dramaticamente as “forças produtivas”. DeLong cita Marx e Engels em 1848 [do Manifesto Comunista] sobre o capitalismo: “durante seu domínio de escassos cem anos …, criou forças produtivas mais massivas e colossais do que todas as gerações predecessoras juntas. A subjugação das forças da natureza, as máquinas, a aplicação da . química à indústria e à agricultura, a navegação a vapor, as estradas de ferro, o telégrafo elétrico, a exploração de continentes inteiros, a canalização dos rios, populações inteiras brotando na terra como por encanto - que século anterior teria suspeitado que semelhantes forças produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social?”. Contudo, DeLong acrescenta uma ressalva a este aparente sucesso: “nunca se esqueça que as riquezas foram mais desigualmente distribuídas em todo o mundo em 2010 do que eram em 1870”. E essa ressalva nos leva a uma importante contradição da análise do autor. Sim, em média as pessoas do passado eram “mais pobres” do que somos hoje. Em 1820, estima-se que o PIB global per capita tenha sido de cerca de 1.102 dólares internacionais por ano e isto já depois de algumas regiões do mundo terem alcançado algum crescimento econômico. Para todas as centenas – milhares – de anos antes de 1820, o PIB médio per capita era ainda menor. Mas Marx e Engels também tinham uma advertência, mais propriamente, o lado obscuro do capitalismo: a sua aniquilação do bem comum; o impulso da população ativa para a exploração pelo capital; a expansão raivosa da subjugação política e econômica de milhares de milhões nas economias menos desenvolvidas, criando cada vez mais guerras e cada vez mais violentas de natureza global; e a destruição acelerada da natureza e do planeta. DeLong ignora todas essas contradições. DeLong afirma que “hoje menos de 9% da humanidade vive abaixo do padrão de vida, com cerca de 2 dólares por dia, considerado como ‘extrema pobreza’, abaixo do aproximadamente 70% em 1870”. E mesmo entre esses 9%, muitos têm acesso à saúde pública e às tecnologias de comunicação de grande valor e poder, ele diz. Que DeLong deveria aceitar sem questionar o nível de pobreza fixado pelo Banco Mundial (2 dólares por dia!) ou não, mostram que, exceto pela expansão da produção per capita na União Soviética na primeira parte do “longo século” ou pelo crescimento sem precedentes do colosso populacional da China na última parte do século, a pobreza (mesmo nas medidas do Banco Mundial) não teria diminuído em nada como 9%. De fato, para muitas regiões do mundo, a diferença entre elas e as nações “mais sortudas” (DeLong) do norte global não diminuiu no todo. E ainda, há desigualdade dentro das nações – que eu tenho bem registrado com muitas fontes em muitos posts anteriores. DeLong diz que “desde 2010, uma família típica já não enfrentava como problema mais urgente e importante a tarefa de adquirir comida, abrigo e roupas suficientes para o próximo ano ou para a próxima semana”. Jura? Que família “típica” é essa? Talvez a família “típica” do país de DeLong, os EUA, embora até lá isso possa ser questionado. Mas não pode ser esse o caso de 4 bilhões de pessoas que permanecem naquele que qualquer um consideraria um nível de pobreza mais realista (digamos, 10 dólares por dia) ou abaixo dele. O livro de DeLong chama-se “Cambaleando rumo à utopia”. Aparentemente, o todo-poderoso capitalismo do século XX abrandou para um rastejar e a utopia parece uma perspectiva mais distante, em um gradual e longo desaparecimento, no século XXI. DeLong explica: vê-se que a economia mundial ainda está mediada por uma economia de mercado. Embora a divisão do trabalho nesta economia de mercado tenha sido muito bem sucedida, “o problema é que não reconhece outros direitos dos seres humanos além dos direitos que vêm com a propriedade e que seus governos dizem que possuem. E aqueles direitos de propriedade só valem alguma coisa se eles ajudam a produzir coisas que os ricos querem comprar. Isso não pode ser justo”. Então, o capitalismo só reconhece os direitos de propriedade e não os direitos básicos da humanidade. DeLong estaria mais próximo da realidade se a tivesse colocado de forma diferente. O capitalismo é um sistema de exploração em que os proprietários dos meios de produção (menos de 1% de todos os adultos) exploram os outros 99% que não possuem os meios de produção (embora possam ter alguns bens pessoais) e por isso têm de vender a sua força de trabalho para viver. Claro, essa visão marxista da contradição no capitalismo não é a mesma de DeLong. Para ele, o problema do capitalismo é que ele dirige a produtividade apenas para lucro e direitos de propriedade, e não para a humanidade enquanto tal. Isso é fato, mas ele não consegue oferecer uma alternativa para o século XXI, exceto que o mundo precisará de uma nova ideologia citando seu o herói, John Maynard Keynes: “Falta-nos mais do que um habitual esquema coerente do progresso, um ideal tangível. Todos os partidos políticos têm suas origens em ideias passadas e não em novas ideias – e nenhum mais nitidamente do que os marxistas”. Ao procurar novas ideias, contudo, DeLong recorre às antigas: as prescrições keynesiana clássica para os caprichos da economia de mercado: “governos devem gerir, e gerir com competência”. Mas mesmo que não tenha garantido o progresso rumo à utopia depois da Grande Recessão. Governos têm gerido “com mão pesada... e as instituições políticas do norte global nem sequer começaram a lidar com o aquecimento global. O motor subjacente da produtividade começou a estagnar. E os grandiosos e benevolentes do norte global estavam prestes a não priorizar a restauração rápida do pleno emprego, incapazes de entender e de gerenciar os descontentamentos que fariam ascender os políticos neofascistas e quase fascistas ao redor do mundo desde 2010”. Para o autor, o fracasso dos “grandiosos e benevolentes” em aplicar com destreza políticas de gestão à economia de mercado é a razão pela qual a corrida rumo à utopia transforma-se em cambalear. Mas ele não oferece explicação para o fracasso dos governos em gerenciar a economia de mercado. E ele não oferece também qualquer explicação do porquê a produtividade do trabalho, mesmo no capitalismo avançado, diminuiu a um ritmo tão lento (e bem antes da hecatombe de 2009). Como o historiador de esquerda Adam Tooze colocou em sua resenha acerca do livro de DeLong: “O próprio título está dizendo: ‘Cambaleando rumo à utopia?’. Se a utopia estivesse em jogo, a postura cambaleante seria realmente nosso problema? A grande preocupação agora é o receio de que o século XX tenha nos lançado em direção a um desastre coletivo… para evitar o desastre, podemos esperar que a fórmula do século XX de DeLong – laboratórios, corporações de mercados e o governo inteligente – seja suficiente?”.
- A última Noite de Valpúrgis
por Lucas Parreira Álvares [1] La Nuit de Walpurgis, Constantin Nepo Mesmo um desavisado leitor da obra máxima de Goethe percebe distinções evidentes entre o teor que subjaz a trama do Fausto I em relação ao Fausto II. A primeira parte da trágica peça teatral, publicada em 1808, pode ser lida como o “drama do amor”: concentra-se na tarefa primeva da alquimia moderna, a produção da porção áurea capaz de propiciar ao protagonista a juventude e virilidade suficientes para que sua relação amorosa com Margarida se pavimentasse; já a segunda parte, publicada postumamente em 1832, é conhecida como o “drama da economia”: a ela se insere a produção do ouro artificial no sentido de dinheiro, sobretudo em razão da criação do papel-moeda na corte do Imperador [2]. Como agente mediador dos processos alquímicos por Fausto, surge a figura icônica de Mefistófeles, personagem inspirado em um traiçoeiro demônio do medievo. Embora nas raízes originárias das lendas e crendices alemãs o Mefisto tenha firmado com Fausto um pacto, na reprodução de Goethe o personagem diabólico firma com o protagonista uma aposta expressa pelo alquimista nos seguintes termos: “Se vier um dia em que ao momento Disser: Oh, para! És tão formoso! Então algema-me a contento, Então pereço venturoso! Repique o sino derradeiro, A teus serviços ponhas fim, Pare a hora então, caia o ponteiro, O Tempo acabe para mim!” [3] No episódio bíblico da “Tentação no Deserto”, o Diabo tentou seduzir Jesus a um pacto através dos seguintes dizeres: “Eu te darei todo este poder com a glória destes reinos (...) se te prostrares diante de mim, toda ela será tua”.[4] Jesus resistiu à tentação, mas na peça goethiana, o alquimista não escondeu o interesse em tomar parte com o Diabo. Selado com sangue, o pacto-aposta permitia a Fausto todos seus desejos terrenos em troca da sujeição de sua alma a Mefistófeles após sua morte. Uma cláusula, no entanto, atravessa os termos do contrato: a morte somente acontecerá quando Mefistófeles oferecer a Fausto uma circunstância de felicidade tão plena capaz de fazê-lo desejar que aquele momento nunca terminasse, conduzindo o alquimista a dizer literalmente as seguintes palavras: “Oh para! És tão formoso!”. Tácito aos distintos itinerários percorridos por Fausto e Mefistófeles entre a primeira e a segunda parte da obra máxima de Goethe, alguns dramas sociais são interpostos à narrativa e permitem aos leitores extraírem conclusões sobre o contexto político e social da Europa oitocentista. Compreender os dramas por detrás das palavras é um pressuposto da necessidade de dessacralizar a criação literária, “destacando a sua dimensão histórica-sociológica e rejeitando a perspectiva idealista que vê a literatura, ou mesmo a arte como um todo, como uma esfera da atividade humana completamente autônoma em relação às condições materiais de sua produção”.[5] Mais que uma peça teatral, o Fausto de Goethe deixa à mostra marcas alegóricas e simbólicas da era industrial: permite ao leitor uma visão atenta das mudanças sociais da Europa com as inovações do século XIX, a transformação dos meios de vida da população, a decadência da manufatura, o advento da grande indústria e, com ela, a divisão social do trabalho e novas conformações simbólicas entre indivíduos e grupos. Talvez salte aos olhos o modo como isso é feito, sendo o leitor convidado a transitar por diferentes cenários, desde estruturas imperiais até os mágicos terrenos das celebrações populares. Um desses cenários ocupa aqui um lugar de ênfase: segundo uma lenda medieval popular da região de um circuito de cadeias montanhosas no norte da Alemanha conhecido como Harz, na madrugada do dia 30 de abril a primeiro de maio, demônios, bruxas, feiticeiros e mortos-vivos reúnem-se no cume da mais alta montanha da região – o Brocken – para promover um culto a Satã. Não é de surpreender que, ambientado no clássico goethiano, Mefistófeles conduziria Fausto a tal festividade. Evento sujeito à presença das mais malignas entidades, o personagem diabólico da peça-teatral reconheceu que a Noite de Valpúrgis extrapolava até mesmo seus critérios: “Terei de usar lei de patrão; eh, lá! Lugar! vem Dom Satã! Alto, gentil corja, alto! Agarra-me doutor! e, agora, um grande salto Que deste aperto nos extraia; Isto é demais até pra minha laia!” [6] Do teatro ao ritual – assim como ao drama social – as cenas do poema épico de Goethe podem servir como recursos alegóricos para pensarmos a presença dessas e outras representações no interior das interações simbólicas entre indivíduos e grupos. Em circunstâncias liminares, o período de sensibilidade dos dramas sociais pode ocasionar a interação com entidades anteriormente estranhas, mas justificadas pelos processos sociais nos quais as relações se engendram. A despeito do Fausto ser um texto literário, as interações com seres metafísicos não são estranhas a determinados contextos sociais, e alguns trabalhos etnográficos revelam particularidades capazes de converter o misticismo a um plano terreno. Um exemplo que podemos explorar é a investigação de Michael Taussig acerca de dois contextos etnográficos em que seus interlocutores recorreram ao pacto com o Diabo para a ascensão da produtividade em razão das transformações sociais ocorridas pela conversão do trabalho livre em assalariado. Foi com a obra O Diabo e o Fetichismo da Mercadoria na América do Sul que Michael Taussig transpôs o conceito marxiano de “fetichismo da mercadoria” a seus interesses na Antropologia. A partir das propriedades da mercadoria como abstração, Marx demonstra que não há nada de misterioso quando se trata de seu valor de uso, pois é apenas uma coisa sensível. No entanto, quando a concebemos como objeto possuidor de valor de troca, “ela se transforma em uma coisa sensível-suprassensível”, possuindo, assim, um caráter místico.[7] Em suma, com esse fenômeno as mercadorias parecem ser dotadas de vida própria: é como se elas fossem ao mercado por suas próprias pernas. Nas palavras de Taussig, o fetichismo da mercadoria revela uma “objetividade fantasmagórica” capaz de obscurecer as relações entre pessoas. [8] Ampliando o alcance do fetichismo da mercadoria, Taussig percebe que nos grupos sociais por ele estudados os símbolos adquirem propriedades particulares. No entanto, ele critica a interpretação que advoga que os símbolos devem ser entendidos como emanações da estrutura social.[9] Taussig então sugere que as sociedades no limiar do desenvolvimento capitalista interpretam-no necessariamente com crenças e práticas não capitalistas. A relação de seus interlocutores – trabalhadores de minas e canaviais da Colômbia e da Bolívia – com o Diabo revelam a forma como eles interpretam as transformações do modo de produção capitalista em sua própria vida cotidiana. As investigações etnográficas de Taussig demonstraram que em processos onde há uma transformação radical das condições de vida, as relações com o Diabo emergem como apêndice factual do limiar sensível. Na medida em que foram convertidos à condição de trabalhadores assalariados, os camponeses passaram a invocar o Diabo como parte do processo de manutenção e aumento da produção. Tanto rituais coletivos quanto pactos individuais tornaram-se práticas comuns aos trabalhadores de canaviais e de exploração de minérios na América do Sul. O curioso, no entanto, é que essa negociação com o Diabo não é um atributo tradicional desses trabalhadores: quando plantam para seu próprio sustento, ou seja, quando não há meandros entre o produtor e seu produto, o Diabo não é acionado como elo mediador da fartura: “não importa quão pobre e carente ou quão necessário é que se aumente a produção: apenas quando os camponeses passam por um processo de proletarização é que o Diabo adquire importância”. [10] Em outras palavras, o Diabo só passa a ter relevância como mediador da produção no interior da relação com outrem. Em obra posterior – Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem – Taussig sofisticou sua posição sobre o fetichismo da mercadoria tratando-o como “uma língua diabolicamente maliciosa, na qual os significantes se tornavam significados”. [11] Considerando o fetichismo da mercadoria um fenômeno que compete ao universo simbólico de grupos sociais, outros antropólogos também encontraram nessa categoria uma via para o entendimento de processos sociais. Jean e John Comaroff, por exemplo, afirmaram que enquanto hieróglifos sociais, as mercadorias descrevem um mundo de poder e significado fortemente entrelaçados, encantado por uma crença “supersticiosa” na capacidade das mercadorias de serem prolíficas e se multiplicarem. Por isso Marx, ao compreender as mercadorias como objetos de devoção através de fetiches, reconheceu que o espírito desses bens contagia a política dos valores em toda a parte.[12] Jean e John Comaroff, assim como Michael Taussig, debruçaram-se sobre as transformação dos meios de vida de seus interlocutores e encontraram vínculos nas mudanças sociais do processo de trabalho como impulso novos dramas sociais. O que há de novidade para nossa Noite de Valpúrgis é que não apenas o Diabo se manifesta como símbolo de mediação desses processos dramáticos. Citando o material etnográfico produzido por Edwin Ardener entre os Bakweri de Camarões [13], Michael Taussig demonstra a transformação social no universo simbólico deste povo que, antes da imposição das dinâmicas capitalistas, eram tidos como irredutivelmente avesso às diretrizes mercantis. Com o estímulo da economia capitalista, o momento associado à fase de crise no interior de seus dramas sociais é marcado por processos nos quais os Bakweri supostamente “matavam parentes, e até mesmo filhos, transformando-os em Zumbis que iam trabalhar em uma montanha distante”.[14] Como aspecto resolutivo deste fenômeno, a reintegração do grupo ocorreu através da formação de cooperativas para o cultivo de bananas, e com isso, houve uma modificação na ordem ali existente, afinal, as práticas de bruxaria e as mediações de Zumbis no interior das relações de trabalho foram se dissolvendo. Porém,, a queda dos preços da banana a partir da década de 60 indicavam que Bruxos e Zumbis retornariam.[15] Essa não é a única ilustração na qual a imagem simbólica de Zumbis é emanada como mediador vinculado aos dramas sociais provocados por transformações na ordem social. Um fatídico exemplo ocorrido na África do Sul pós-colonial, o “retorno” de um renomado músico Zulu que havia morrido anos antes, é destacado por Jean e John Comaroff em uma investigação que explora as consequências das ações de impostura frente às condições contemporâneas de grupos sociais. Diferente de Taussig, que demonstra o surgimento do Diabo como mediador do choque entre dois diferentes sistemas de produção, Jean e John Comaroff ressaltam a imagem do Zumbi como expressão alegórica de dramas sociais frente à perda do trabalho assalariado. Taussig lida com as reações simbólicas liminares da expansão capitalista, ao passo que Jean e John Comaroff lidam com as consequências aos atos místicos dessa forma de produção já solidificada. O primeiro lida com a conversão do trabalho livre em assalariado; o segundo, com a perda desta condição. Havia certa expectativa para a sociabilidade pós-Apartheid em que o Estado lidaria com o crescente problema da desigualdade social na África do Sul; no entanto, o país enfrentou o paradoxo do crescimento sem emprego, ocasionando uma crise econômica e identitária frente ao desencadear das transformações sociais. Nesse contexto, mais precisamente no decorrer dos anos de 1990, Zumbis foram associados ao surgimento repentino de novas fortunas de procedência obscuras em condições adversas: “Zumbis eram considerados trabalhadores fantasmas, que pareciam ter sugado a vida de trabalhadores reais, minando o mercado de trabalho e o mundo que ele sustentava”.[16] Assim como no pacto com o Diabo entre os interlocutores de Taussig, a disjunção das relações sociais no interior de um contexto liminar na África do Sul pós-colonial provocou a associação a meios escusos para alcançar um fim. A proeminência de Zumbis na vida pública da África do Sul pós-colonial ocorre no exato momento em que a economia deste país se intensificava além de seus grandes pólos urbanos e se fazia presente em comunidades proletárias. Mas ao invés dessas transformações econômicas garantirem alguma estabilidade social nas relações de seus povos, o “desenvolvimento” da economia sul-africana associada às dinâmicas mercantis do liberalismo provocou um efeito reverso: com a reestruturação da indústria e da mineração, o trabalho se tornou cada vez mais informal e milhões de empregos foram perdidos, como Jean e John Comaroff atestaram em uma investigação anterior. [17] Ambientado nesse contexto pós-Apartheid, o retorno de Khulekani Khumalo revela o que atos de impostura podem nos dizer sobre autoconstrução pós-colonial. A discussão ensejada por Jean e John Comaroff não municia a investigação policial para o descobrimento se o retorno daquele que afirma ser Khumalo é produto de um sequestro de identidade ou se se trata mesmo de um retorno autêntico do músico que anos antes havia falecido. Nem mesmo a família do músico era unânime sobre a real identidade daquele que assumia seu nome. Para o casal Comaroff, o que compete às suas intenções é que o significado desse drama social não depende de seu desfecho, mas sim, que “a história nos diz sobre a busca, em tempos de mudança de normas e índices de verdades”, [18] na África do Sul pós-colonial ou mesmo em outros contextos. Fato é que Khulekani Khumalo retorna às terras onde foi criado. Como um ator teatral, “reencenou uma viagem icônica entre o local de trabalho e a morada rural que (...) há tempos tem ligado trabalhadores negros ao movimento de retorno ao lugar de origem rural para construir casa, constituir família e garantir a permanência da pessoa social”.[19] Esse ato também respalda, de certo modo, uma alegoria do retorno a uma época social precedente, onde as intempéries do trabalho assalariado dão formas a outros mecanismos de obtenção dos meios de vida. Seja por impostura, obsessão, ou recurso, o rompimento de fronteiras liminares através de símbolos e dramas rituais expressam fenômenos distintos com procedências e intenções diferentes. No entanto, é notório como o contexto liminar alavancado em circunstâncias de crise, revela as contradições inerentes à produção e reprodução dos meios de vida. A revolução industrial não produziu apenas inovações nas máquinas da grande indústria, mas também foi responsável pelo modo como as novas relações entre indivíduos e grupos foram forjadas. Abstraindo o caráter lúdico da festividade, não pode ser mera coincidência que os Zumbis e Diabos (para não dizer Bruxas, no fim do período medieval) tenham descido do Brocken e levado a Noite de Valpúrgis aos diversos contextos associados ao trabalho assalariado – ou seja, onde há mediações interpostas entre o produto e o produtor. Onde, adaptando uma passagem de Taussig, [20] homens e mulheres são vistos como objetivos da produção, em vez da produção ser encarada como objetivo de homens e mulheres. No entanto, um fortuito acidente permitiu que a Noite de Valpúrgis fosse comemorada na mesma data em que a maioria dos países do mundo celebram, em razão de uma fatídica greve geral estadunidense do fim do século XIX, o Dia do Trabalhador. *** Goethe certa vez disse que a razão da felicidade pela existência configura-se quando alguém consegue “ligar o fim de sua vida ao início”. [21] Reduzindo as expectativas goethianas, e se tivermos alguma felicidade nessas linhas derradeiras, entrelaçamos o fim desse texto a seu princípio. Para o alquimista do clássico de Goethe, “no princípio era a ação”, mas aqui, o princípio é o pacto-aposta. De certo modo, as décadas que compreendem o processo de criação de Fausto são contemporâneas às transformações sociais do ocidente em decorrência da Revolução Industrial. Assim como as transformações nos meios de vidas foram capazes de promover uma inflexão dramática no clássico de Goethe, elas também foram capazes de produzir contextos liminares em grupos sociais diversos. Por mais que para a produção de sua magnum-opus Goethe tenha desenvolvido uma série de investigações sobre mitos, lendas e crendices para o substrato de sua peça teatral, as ações simbólicas impregnadas nos dramas sociais conduziram as entidades da Noite de Valpúrgis a se manifestarem nos vínculos dramáticos dos mais variados povos. Tais expressões variavam desde Zumbis na África do Sul à Diabos na América Latina. Isso, é claro, não sob uma expressão difusionista, mas alegórica. Normalmente as consequências da Revolução Industrial se colocam sob a égide da produção material dos meios de vida. No entanto, suas adjetivações também devem comportar o descentramento e a fragmentação da atividade de recriação de universos simbólicos; a autonomia adquirida pelas esferas do trabalho; a subsunção do lazer às atividades produtivas; e a dispersão das formas de expressão simbólica que acompanham a fragmentação das relações sociais. [22] A princípio não há dúvidas que Fausto é uma obra que emerge das entranhas da aristocracia, mas a despeito da ausência de um caráter insurgente, ela ainda é capaz de nos fazer questionar a ordem existente. A beleza que provocou ao alquimista a perda do pacto-aposta com o Diabo não foi fruto do amor de Margarida nem das dádivas do conhecimento. Ao fim de tudo, o que motivou Fausto a dizer “Oh para! És tão formoso” foi a insinuação de uma terra livre para um povo livre, através de um exercício imaginativo que inverteu as relações de produção colocadas em seu tempo. “Sim! da razão isto é a suprema luz, A esse sentido, enfim, me entrego ardente: À liberdade e à vida só faz jus, Quem tem de conquistá-las diariamente. E assim, passam em luta e em destemor, Criança, adulto e ancião, seus anos de labor. Quisera eu ver tal povoamento novo, E em solo livre ver-me em meio a um livre povo. Sim, ao Momento então diria: Oh! Para enfim – és tão formoso!” [23] Mas a expectativa de Fausto ainda era objetivada em um mundo artificial em que sua cegueira não o permitiu observar que a transformação radical dos meios de vida era apenas um exercício utópico de sua consciência. A consequência de seus sonhos foi a perda de sua aposta, e sua alma foi, enfim, entregue ao Diabo. A ambiguidade se encontra no momento em que, ao sugerir que “poderia dizer” a frase que compõe o termo apostado, ele finalmente a diz. Em um contexto em que a ordem social acomete as intempéries mais drásticas, Fausto pode servir como metáfora reveladora das consequências e um drama social de nosso tempo, onde as apostas já estão feitas e, para os pessimistas, devidamente perdidas. Mas a pergunta que se eleva é outra: a quem nossa alma foi vendida, afinal, e a que preço? NOTAS 1. Lucas Parreira Álvares é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutorando em Antropologia Cultural pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É integrante do projeto Mapeamento de Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais e do Laboratório Marxista de Experimentações Antropológicas. Atualmente desenvolve pesquisas teóricas sobre os aspectos etnológicos na obra de Karl Marx e pesquisas de campo entre pactários com o Diabo e promesseiros a Deus no sertão do São Francisco, Minas Gerais, articulando relações econômicas e dinâmicas de parentesco. 2. BINSWANGER, Hans Christoph. Dinheiro e Magia: Uma crítica da economia moderna à luz de Fausto de Goethe (Rio de Janeiro: Zahar, 2011) p. 57. 3. GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto: uma tragédia – primeira parte (São Paulo: Editora 34, 2011) p. 142. 4. BÍBLIA DE JERUSALÉM. Evangelho Segundo São Lucas (São Paulo: Editora Paulus, E-book, 2002) p. 777. 5. FACINA, Adriana. Literatura & Sociedade (Rio de Janeiro: Zahar, 2004). 6. GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto: uma tragédia – primeira parte. op. cit. p. 346. 7. MARX, Karl. O Capital. crítica da economia política – Livro I: o processo de produção do capital (São Paulo: Boitempo, 2013) p. 146. 8. TAUSSIG, Michael. O Diabo e o Fetichismo da Mercadoria na América do Sul. (São Paulo: Ed. UNESP, 2010) p. 25-26. 9. TAUSSIG, Michael. O Diabo e o Fetichismo da Mercadoria na América do Sul. op. cit., p. 31. 10.TAUSSIG, Michael. O Diabo e o Fetichismo da Mercadoria. op. cit. p. 37. 11. TAUSSIG, Michael. Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem: um estudo sobre o terror e a cura. (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993), p. 82. 12. COMAROFF, Jean; COMAROFF, John. “Etnografia e imaginação histórica” (In: Revista Proa, n. 02, vol. 1, 2010) p. 7. 13. cf. ARDENER, Edwin. Witchcraft, Economics, and the Continuity of Belief (In: DOUGAS, Mary (Org.) Witchcraft, Confessions and Accusations. Londres: Tavistock, 1970). 14. TAUSSIG, Michael. O Diabo e o Fetichismo da Mercadoria. op. cit. p. 46. 15. Idem. 16. COMAROFF, Jean; COMAROFF, John. “O retorno de Khulekani Khumalo, cativo de zumbis: impostura, lei e paradoxos da noção de pessoa na África do Sul pós-colonial” (In: Significação, vol. 41, n. 42, 2014) p. 202. 17. cf. COMAROFF, Jean; COMAROFF, John. “Alien-Nation: Zombies, immigrants, and millennial capitalism” (In: Codesria Bulletin. Dakar: n. 3/4., 1999). 18. COMAROFF, Jean; COMAROFF, John. “O retorno de Khulekani Khumalo, cativo de zumbis”, op. cit., p. 197. 19. Idem, p. 201. 20. TAUSSIG, Michael. O Diabo e o Fetichismo da Mercadoria. op. cit. p. 34. 21. MAZZARI, Marcus. “Goethe e a história do Doutor Fausto: do teatro de marionetes à literatura universal”. (In: GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto: uma tragédia – primeira parte. São Paulo: Editora 34, 2011) p. 13. 22. DAWSEY, John Cowart. “Turner, Benjamin e Antropologia da Performance: o lugar olhado e ouvido das coisas” (In: Campos. 7 (2): 17-25, 2006) p. 19-20. 23. GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto: uma tragédia – segunda parte (São Paulo: Editora 34, 2011) p. 601.