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  • Uberização do trabalho e O capital de Marx

    por Guilherme Nunes Pires [1] Tradução de Wesley Sousa e Pedro Badô Ilustração: Cristiano Siqueira /Insta: @crisvector/ Twitter: @crisvector O presente texto foi publicado originalmente em língua inglesa no volume 24 da Revista Katálysis, jan.-abr. 2021, p. 228-234, e encontra-se disponível no link . A despeito das discordâncias teóricas que alguns de nossos editores levantam em relação às conclusões do texto, reputamos como fundamental o espírito crítico do autor. Nos parece que este impulso da crítica, que leva Guilherme Pires a buscar nos escritos de Marx uma hipótese explicativa, é o caminho incontornável para todo aquele marxista que queria se debruçar sobre as imensas problemáticas que dizem respeito a exploração da força de trabalho e do desenvolvimento do modo de produção capitalista em nossos dias. Diferentes hipóteses sobre a chamada “uberização” podem ser encontradas no texto de Eleutério Prado < https://eleuterioprado.files.wordpress.com/2018/04/subsuncc3a3o-financeira-do-trabalho-ao-capital.pdf>. Introdução Nos últimos anos pôde-se observar o surgimento de uma síntese muito peculiar entre as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) e as relações de trabalho descentralizadas, freelance e por demanda [on demand]. De um lado estão as plataformas digitais que ligam produtores e consumidores, enquanto, de outro lado, estão os trabalhadores gig [gig workers] [2] sem salário fixo e sem direitos trabalhistas básicos. Essa particular combinação tem sido caracterizada como Gig Economy [3] e as relações de trabalho específicas como uberização [Uberization] (De Stefano, 2016; Johnston, Land-Kazlauskas, 2019; Bloomer, 2019; Fontes, 2017). Apenas para ter dimensão desse processo, em 2018, o volume bruto da Gig Economy foi de 204 bilhões de dólares em todo o mundo. Em 2019, esse número aumentou para mais de 250 bilhões e, para 2023, a expectativa é de crescimento superior a 450 bilhões. Do total desses números, o setor de transportes corresponde a 58% do volume bruto total. A nível regional, os países que lideram nesse total são EUA, Brasil, França e Reino Unido, respectivamente. Em comparação com as economias desenvolvidas, os países subdesenvolvidos tiveram um crescimento de 30% do uso do trabalho gig [gig work] nas plataformas digitais. Ou seja, esse fenômeno é uma tendência mundial do capitalismo contemporâneo (Muhammed, 2019; Mastercard, 2019; Johnston, Land-Kazlauskas, 2019). Fundamentalmente, as relações de trabalho da Gig Economy baseiam-se em empregos descentralizados [decentralized], freelance e por demanda [on demand] sem contrato e salários fixos – geralmente realizados em plataformas digitais – conhecidas como uberização. Os ganhos destes trabalhadores baseiam-se exclusivamente no número de gigs/tarefas [gigs/tasks] que realizam. Da uberização do trabalho decorre um grande número de consequências. Como já está evidente, essas relações de trabalho estão diretamente ligadas à intensificação do trabalho, ampliação da jornada laboral, baixa remuneração, ausência de direitos trabalhistas, ampliação do controle indireto sobre o processo de trabalho, etc. (Fontes, 2019; Istrate, Harris, 2017). Entretanto, embora pareça que a uberização do trabalho seja uma nova característica do capitalismo contemporâneo, não é possível argumentar que essas relações de trabalho sejam novas. É claro que elas carregam a combinação entre plataformas digitais e relações de trabalho descentralizadas, mas podemos indicar que Marx (1976) [4] viu esse processo como uma tendência constitutiva da economia capitalista. Mais do que isso, ao analisar o salário por peça [piece-wage] em O capital, Marx argumentou que a remuneração por tarefas/gigs [tasks/gigs] não altera a natureza das relações de trabalho e é uma tendência par excellence no capitalismo, já tendo identificado as principais consequências para a classe trabalhadora. A partir disso, o objetivo deste artigo é indicar que O capital de Marx já antecipava essa tendência da economia capitalista e traçou as principais consequências da uberização do trabalho. Além disso, esse artigo tenta preencher a lacuna da análise da uberização a partir da crítica da economia política. O decorrer do artigo é dividido em duas seções. Na primeira seção, apresentamos as principais características da Gig Economy e suas relações de trabalho. Na segunda seção, expusemos e argumentamos que, n’O capital, Marx já havia antecipado as principais características da uberização do trabalho e suas consequências. A Gig Economy e o trabalho Nós podemos caracterizar a Gig Economy como um modelo de negócios que combina tecnologia com emprego descentralizado, freelance e por demanda da força de trabalho. As empresas mais eminentes da Gig Economy são aquelas em setores influenciados pela tecnologia, principalmente plataformas digitais. A ideia da Gig Economy implica a noção de economia compartilhada [Sharing Economy]: uma perspectiva que relaciona bens e serviços de espaços conectados a plataformas online ou mesmo redes descentralizadas que podem resultar em benefícios monetários ou não monetários. Um claro exemplo dessa ideia de compartilhamento pode ser observado na Wikipédia, onde qualquer pessoa conectada à internet pode fazer uma contribuição significativa (ou não) para o desenvolvimento de uma enciclopédia mundial gratuita e acessível (Rihehart, Gitis, 2015). Essas duas perspectivas combinadas caracterizam o modelo de negócios atual que usa relações de trabalho de tempo parcial [meio período]/por demanda [part-time/on demand] vinculadas a plataformas digitais como uma forma de superar os limites da acumulação de capital nos dias de hoje. Um exemplo global claro disso são as empresas Uber, Lyft e Airbnb, que conectam esses recursos principais. A Gig Economy representa o amadurecimento do processo de globalização econômica e desenvolvimento tecnológico. Desde os anos 1970, temos visto a transição do padrão produtivo metal-mecânico-químico para a microeletrônica e telecomunicações. O ponto de amadurecimento, contudo, envolve esse longo processo de desenvolvimento tecnológico das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) que levará a modelos de negócios que proporcionam formas de exploração do trabalho no capitalismo contemporâneo (Perez, 2002). De acordo com Istrate e Harris (2017), a Gig Economy tem, pelo menos, três características principais. A primeira está relacionada ao trabalho. Diferentemente do emprego padrão com salário fixo, na Gig Economy o salário depende exclusivamente do número de tarefas ou projetos realizados (gigs) [tasks or projects performed (gigs)] pelos trabalhadores. A segunda se refere à forma de consumo. Os consumidores têm uma enorme variedade de opções de bens e serviços por meio das plataformas digitais. Por fim, a terceira característica diz respeito à maneira pela qual a empresa intermediária conecta produtores e consumidores por meio das plataformas digitais. Como Istrate e Harris (2017, p. 3) sintetizam da seguinte maneira: A gig economy é formada por três componentes principais: os trabalhadores independentes pagos pelo gig (ou seja, uma tarefa ou um projeto), em oposição aos trabalhadores que recebem um salário ou uma remuneração por hora; os consumidores que precisam de um serviço específico, por exemplo, uma carona até seu próximo destino ou a entrega de um determinado item; e as empresas que conectam o trabalhador ao consumidor de forma direta, incluindo plataformas de tecnologia baseadas em aplicativos. Empresas como Uber, Airbnb, Lyft, Etsy ou Taskrabbit atuam como meio pelo qual o trabalhador está conectado ao – e por fim pago pelo – consumidor. Essas empresas facilitam aos trabalhadores encontrarem um emprego rápido, temporário (ou seja, um gig), que pode ser qualquer tipo de trabalho, desde uma apresentação musical até o conserto de uma torneira com vazamento. Uma das principais diferenças entre um gig e os arranjos de trabalho tradicionais, entretanto, é que um gig é um contrato de trabalho temporário, e o trabalhador é pago apenas por esse trabalho específico. A partir disso, os principais elementos da Gig Economy são as empresas de plataformas digitais, os trabalhadores gig [gig workers] e os consumidores finais. Do ponto de vista das empresas de plataformas digitais, elas têm sido a força motriz por trás da expansão desse fenômeno. Essas empresas facilitam as transações entre consumidores e produtores nas plataformas digitais, tornam o trabalho mais flexível, oferecem opções de pagamento online, das quais é cobrada uma taxa significativa, e fornecem perfis online com a qualificação e a avaliação dos produtores e dos consumidores (Istrate, Harris, 2017). Em geral, nos países desenvolvidos, em relação aos trabalhadores que estão conectados com os consumidores por plataformas digitais, há, em média, dois grandes grupos que podem ser identificados. O primeiro diz respeito àqueles que fornecem seu trabalho para ganhar a vida: motoristas, trabalhadores manuais e entregadores. As principais características desses trabalhadores são a baixa escolaridade e a baixa renda, cuja vida profissional foi baseada em empregos de tempo parcial [meio período; part-time] e temporários, ou também devido à dificuldade de encontrar empregos com maior estabilidade. No segundo grupo estão os trabalhadores, que fornecem algum bem ou serviço, que possuem renda e escolaridade mais altas e que não dependem exclusivamente do trabalho em tempo parcial [meio período; part-time]. Isso porque, em geral, eles têm empregos em tempo integral [full time] e buscam ganhar uma renda extra trabalhando em plataformas digitais (Istrate, Harris, 2017). Mas isso vem mudando ao longo dos anos. A cada ano, muitos trabalhadores qualificados não têm outra opção a não ser se tornar um trabalhador gig em tempo integral [full gig worker]. Nas economias subdesenvolvidas, entretanto, é bem diferente. Esses países geralmente têm um grande mercado de trabalho informal e taxas de desemprego mais altas, de modo que podemos ver um grande grupo de trabalhadores que foram transformados em trabalhadores gig pelas circunstâncias da periferia do capitalismo. De trabalhadores precários a recém-desempregados, de advogados a engenheiros, não há alternativa a não ser se tornar um trabalhador gig. O emprego da força de trabalho nesses setores baseia-se principalmente em contratos temporários e freelance. Ou seja, os trabalhadores estão sujeitos a diferentes modalidades: tempo parcial [meio período; part-time], autônomo [por conta própria; self-employed], por demanda [on demand], etc. (Rinehart, Gitis, 2015; Johnston, Land-Kazlauskas, 2019). Além disso, “os trabalhadores gig, como contratados independentes [independent contractors], não recebem benefícios, como seguro saúde, das empresas de plataformas tecnológicas; em vez disso, eles devem obtê-los por conta própria” (Istrate, Harris, 2017, p. 5). Essas características principais da força de trabalho da Gig Economy têm sido chamadas de uberização, pois a Uber é uma das maiores empresas do segmento (Fontes, 2017). Embora a Uber seja apenas uma entre muitas empresas, ela é a principal empresa que tem crescido exponencialmente em todo o mundo ao longo dos anos. Portanto, ao falarmos em uberização do trabalho, estamos apenas reafirmando uma tendência geral de acumulação de capital e subordinação do trabalho. Vamos dar uma breve olhada nos números da Uberização. Especificamente nos EUA, a parcela de trabalhadores gig saltou de 10,1% em 2005 para 15,8% em 2015. Entre 2005 e 2015, os trabalhadores autônomos [self-employed workers] aumentaram 19% nos EUA (Istrate, Harris, 2017). Além disso, os ganhos desse tipo de trabalho são muito baixos. Por exemplo, nos EUA, alguns trabalhadores gig das plataformas digitais podem receber US$ 2 por hora, mais de três vezes abaixo do salário mínimo médio (ILO, 2018). Com esse salário gig [gig salary], a jornada de trabalho precisa aumentar para mais de 10 horas para que se consiga um salário para sobreviver. No Reino Unido, o número de trabalhadores gig dobrou em três anos. Em 2019, o Reino Unido tinha 4,7 milhões de trabalhadores gig e espera-se que esses números aumentem nos próximos anos. Com a expansão da Gig Economy, agora 1 em cada 10 trabalhadores no Reino Unido está empregado em condições de uberização (Partington, 2019). Na União Europeia, de acordo com Bloom (2019), o número de trabalhadores gig dobrou entre 2000 e 2014, fazendo deste tipo de relação de trabalho o grupo principal e o de crescimento mais rápido. Na África do Sul, pelo menos 30.000 trabalhadores gig, divididos entre dois grupos: a primeira metade são motoristas de táxis e o restante são entregadores gig [delivery gig workers]. No Brasil, a uberização do trabalho é evidente. Em menos de uma década, nós temos visto uma dramática expansão disso. Em 2019, de acordo com o IBGE, mais de 5 milhões de trabalhadores brasileiros tinham suas principais fontes de renda pelas plataformas digitais como a Uber e, ao menos, 17 milhões têm eventualmente alguma fonte de renda pelas plataformas digitais (Gravas, 2019). Entre 2014 e 2019, somente a Uber viu seus trabalhadores gig crescerem de 5.000 para mais de 600.000. A situação mais dramática, entretanto, diz respeito aos entregadores que utilizam bicicletas [bike delivers] no Brasil, conhecidos como “bikeboys”. Apesar de trabalharem 12 horas diárias e sete dias por semana, eles não recebem o salário mínimo nacional. Uberização e O capital de Marx Embora pareça que a uberização do trabalho seja algo estritamente novo no capitalismo contemporâneo, vamos discutir como esse processo é uma tendência do capitalismo e que O Capital de Marx já previa esse fenômeno e suas consequências gerais. Em O capital, Marx (1976) já identificava no salário por peça [piece-wage] algo muito similar ao que nós podemos encontrar na uberização do trabalho na Gig Economy. No capítulo sobre o salário por peça no Livro I d’O Capital, Marx explicou como essa forma de salário não era algo estritamente novo e como ela coexiste com outras formas de pagamento. Como Marx pontua, essa coexistência sempre ocorreu, “ambas as formas do salário existem ao mesmo tempo, uma ao lado da outra” (Marx, 1976, p. 692) [2013, p. 621]. Essa ideia, entretanto, não contradiz a natureza fundamental do regime salarial do capitalismo, ou seja, as formas de pagamento do salário, seja por peça (gig) ou por tempo, “não modifica em nada a essência” (Marx, 1976, p. 693) [2013, p. 622]. De acordo com Fontes (2017), na Gig Economy a empresa detém apenas parte dos meios de produção necessários para a realização das atividades principais da empresa. Principalmente a plataforma on-line onde as atividades-meio são desenvolvidas e estabelecidas entre os trabalhadores e os consumidores. Consequentemente, elas têm total controle para gerenciar e viabilizar a combinação dos meios de produção com a força de trabalho para atender ao mercado consumidor, sem exigir emprego no sentido formal (Fontes, 2017). Empresas como a Uber, por exemplo, obtêm seus lucros ou prejuízos independentemente dos custos de criação e manutenção de sua plataforma, custos esses que não variam diretamente com a quantidade de “serviços de transporte” vendidos por seus precários “funcionários” [precarious “employees”] por meio do aplicativo. Como Fontes (2017, p. 56) argumenta, nessas condições há uma forte inter-relação entre “ as formas mais concentradas da propriedade, que viabilizam o controle econômico do processo [...], o controle da extração, a captura do mais-valor e sua circulação de volta à propriedade” [5]. O financiamento dessas grandes plataformas da Gig Economy está intimamente ligado à necessidade de grandes fundos especulativos de obter lucros extraordinários. Ou seja, “une-se estreitamente a investidores que, detentores de quantias de dinheiro monumentais, precisam transformá-las em capital, isto é, investi-las em processos de extração de valor” (Fontes, 2017, p. 56). Fontes (2017) argumenta que é evidente a intensificação do comando do capital sobre o trabalho na Gig Economy e na uberização. O controle do processo de trabalho é absolutamente centralizado e os custos trabalhistas são reduzidos. À primeira vista, a intermediação da plataforma digital na conexão entre produtores e consumidores parece proporcionar maior autonomia aos trabalhadores. No entanto, produtores e consumidores devem ser credenciados nas plataformas, seguir a forma de pagamento eletrônico e se submeter às normas impostas pelos algoritmos. O controle sobre o trabalho torna-se impessoal e em tempo real (Fontes, 2017). A análise de Marx sobre o salário por peça sugere as mesmas consequências. De acordo com Marx (1976, p. 694) [2013, p. 623], semelhante à uberização, “[a] qualidade do trabalho é controlada, aqui, pelo próprio produto, que tem de possuir uma qualidade média para que se pague integralmente o preço de cada peça”. Isso significa que, com base na avaliação do consumidor, os bens e serviços fornecidos podem sofrer uma série de penalidades que podem levar a descontos ou até mesmo a bloqueios que impeçam o trabalhador de trabalhar por um determinado período. Ou seja, “[s]ob esse aspecto”, a forma de salário por peça “se torna a fonte mais fértil de descontos salariais e de fraudes capitalistas” (Marx, 1976, p. 694) [2013, p. 623]. Se usarmos as plataformas digitais como exemplo, é possível ver a própria consequência para os trabalhadores gig. Além disso, a uberização do trabalho permite que os capitalistas meçam integralmente o aumento da intensidade do trabalho. Como os salários são medidos pelo número de gigs realizados, não há necessidade de supervisão rigorosa do processo de trabalho. Agora, a intensidade e a jornada de trabalho são controladas pelo próprio trabalhador, que deseja aumentar seus ganhos diários e intensificar ao máximo sua própria exploração. Isso está intimamente relacionado ao salário por peça analisado n’O capital. Marx (1976, p. 695) [2013, p. 624] argumenta que “[c]omo a qualidade e a intensidade do trabalho são, aqui, controladas pela própria forma-salário, esta torna supérflua grande parte da supervisão do trabalho”. O salário por peça, portanto, a uberização, tornou-se um melhor “sistema hierarquicamente concatenado de exploração e opressão" (Marx, 1976, p. 695) [2013, p. 624]. Embora pareça que o trabalhador tenha uma autonomia e um controle relativamente maiores sobre sua própria atividade, em essência isso garante um controle indireto muito mais intenso. As plataformas digitais garantem o controle em tempo real enquanto a plataforma digital estiver ativa. Além disso, a dependência de pagamentos automáticos, vinculados às plataformas, garante a extração direta de um montante considerável da remuneração do trabalhador, em torno de 20 e 25% a título de taxa fixa. De acordo com Fontes (2017, p. 56), a plataforma digital: permite acoplar uma plataforma de busca a uma tecnologia móvel de cartão de crédito e a um localizador, que asseguram a estreita dependência do trabalhador, pois do cartão depende sua própria remuneração e o localizador denuncia todos os seus percursos, uma vez acionado o celular (conexão principal). E é através do cartão que serão extraídos diretamente entre 20 e 25% de toda a remuneração do trabalhador. A taxa de extração de valor é férrea, assim como o regime de trabalho. Como são os trabalhadores que empregam os meios de produção, todos os custos de depreciação, reparo e melhoria são pagos pelos próprios trabalhadores. Se utilizarmos a empresa Uber como exemplo, veremos que o automóvel como meio de produção é de propriedade do trabalhador ou, em alguns casos, alugado pelo próprio trabalhador. Portanto, além das taxas cobradas pelas plataformas digitais, os trabalhadores arcam com todos os custos extras e de manutenção de seus próprios meios de produção, como combustível, reparos, troca de pneus etc. Em outras palavras, de acordo com Fontes (2017, p. 57), “[a] empresa distancia-se da vida concreta e faz questão de ignorar as condições de vida dos trabalhadores, assegurando-se um custo próximo de zero para maquinaria, matéria-prima (combustíveis, reparos, renovação da frota) e da própria força de trabalho”. A empresa só precisa pagar a manutenção da plataforma e toda a estrutura necessária para ela. Paralelamente a isso, há uma expansão dos segmentos capitalistas que buscam parasitar essas atividades. Conforme demonstrado por Marx (1976, p. 695) [2013, p. 624], na forma de salário por peça, isso “facilita, por um lado, a interposição de parasitas entre o capitalista e o assalariado”. Na uberização, podemos ver o fenômeno exatamente. Um exemplo claro disso hoje é a empresa Uber: entre a empresa e o motorista, há uma série de intermediários que procuram alugar carros (meios de produção) para trabalhadores gig. Além disso, há o processo de descentralização do processo de trabalho. Como dito acima, o credenciamento em plataformas digitais permite o controle indireto e irrestrito sobre o trabalhador, mas, além disso, altera qualitativa e quantitativamente a jornada de trabalho. Como argumenta Fontes (2017, p. 58): Para além do credenciamento e do localizador, não há controle direto próximo aos trabalhadores: apenas a pura necessidade deve movê-los ao trabalho. Não há jornada de trabalho combinada ou obrigatória, nem limites para ela, tampouco dias de repouso remunerado. Estes se sabem trabalhadores, mas não se consideram como tal, mas como prestadores de um serviço casual, mesmo se movidos pela mais dramática necessidade. De fato, eles não têm um emprego, mas uma conexão direta de entrega do mais-valor aos proprietários capazes de lhes impor um processo de produção de valor pré-estabelecido. Não são os poros do tempo livre que tais proprietários procuram obturar, como nos processos fabris, que realizam estrito controle do tempo de trabalho. Aqui, trata-se de lidar com novas escalas, ampliando o volume de valor, através de fornecedores massivos de mais-valor. Qualquer tempo disponibilizado pelo trabalhador singular é tempo de lucro. Marx faz um bom paralelo entre o salário por peça e o aumento da jornada de trabalho e da intensidade do trabalho nessa forma de salário: como resultado do salário baseado em gigs, ele diz, “é natural que o interesse pessoal do trabalhador seja o de empregar sua força de trabalho o mais intensamente possível, o que facilita ao capitalista a elevação do grau normal de intensidade” (Marx, 1976, p. 695) [2013, p. 624]. Além disso, uma consequência natural desse arranjo é o desejo do trabalhador de trabalhar mais horas por dia. Nas palavras de Marx, é “do interesse pessoal do trabalhador prolongar a jornada de trabalho, pois assim aumenta seu salário diário ou semanal” (Marx, 1976, p. 696) [2013, p. 625]. Esse aumento na jornada e na intensidade do trabalho é evidente tanto no salário por peça quanto nos gigs. Ao analisar o salário por peça, Marx argumentou que a jornada de trabalho era tão extensa que, no século XIX, até mesmo Thomas Malthus não gostava dela. Marx (1976, p. 698-699) [2013, p. 628], em O Capital, nos lembra que: “Malthus observou, àquela época, em relação aos fatos publicados pelo Parlamento: ‘Confesso que vejo com desagrado a grande difusão da prática do salário por peça. Um trabalho efetivamente duro que se estenda por 12 ou 14 horas por dia, ou por períodos ainda mais longos, é demasiado para um ser humano’.”. De acordo com Marx, a forma de salário por peça também proporciona ilusões reconfortantes aos trabalhadores que, em uma luta competitiva consigo mesmos, acreditam que têm mais liberdade, autonomia e independência. Na verdade, eles estão apenas em uma luta constante para sobreviver. Em suas palavras: “Mas o maior espaço de ação que o salário por peça proporciona à individualidade tende a desenvolver, por um lado, tal individualidade e, com ela, o sentimento de liberdade, a independência e o autocontrole dos trabalhadores; por outro lado, sua concorrência uns contra os outros” (Marx, 1976, p. 697) [2013, p. 626]. A partir disso, a noção de uberização do trabalho não é algo exclusiva e fundamentalmente novo, mas uma tendência do capitalismo já identificada por Marx. A inovação aqui é a combinação muito particular de novas tecnologias em desenvolvimento, plataformas digitais e capital financeiro para ampliar o escopo e a amplitude da acumulação de capital. Considerações finais A expansão da uberização do trabalho é uma tendência global e podemos ver esse processo em todo o mundo. Desse ponto de vista, as propriedades resultantes desse fenômeno aparecem inteiramente como algo novo na economia capitalista contemporânea. É verdade que as plataformas digitais na Gig Economy combinam novas características da economia capitalista contemporânea. A nova característica é, nesse caso, a combinação do desenvolvimento tecnológico, especificado nas plataformas digitais, e a necessidade do capital financeiro de obter lucros extraordinários. Em outras palavras, a necessidade de grandes quantidades de dinheiro para se transformar em capital por meio da extração de valor aliada a um número crescente de trabalhadores em busca de vender sua força de trabalho. Do ponto de vista das relações de trabalho capitalistas, foi possível perceber que o fenômeno da uberização, e suas principais consequências para a classe trabalhadora, não é algo exclusivamente novo no capitalismo contemporâneo. Marx já identificava essa tendência ao analisar o salário por peça na dinâmica capitalista. O aumento da jornada de trabalho e de sua intensidade, a ausência de direitos trabalhistas, a descentralização do processo de trabalho, a ampliação do controle indireto sobre o trabalho, as penalidades de desconto, etc., são características tanto do salário por peça quanto das formas gig de salário [gig forms of salary] e foram entendidas com excelência por Marx como uma tendência do capitalismo. Embora a combinação de TICs e atividades de trabalho descentralizadas produza novos modelos de negócios por meio de plataformas digitais, a especificidade central da uberização do trabalho continua sendo explicada pela crítica da economia política de Marx, ou seja, a necessidade do capital de reduzir os custos do trabalho e ampliar sua exploração. Parece que a crítica da economia política de Marx é um ótimo ponto de partida capaz de lidar com a uberização do trabalho sem cair em análises anacrônicas e apologistas desse processo. A partir dessa aproximação inicial, novas pesquisas podem surgir para aprofundar essa questão. Referências BLOOMER, P. (2012). The future of work: litigating labour relacioships in the Gig Economy. Business & Human Rights Resource Centre, 2019. DE STEFANO, V. (2016). The rise of the “just-in-time workforce”: on-demand work and labour protection in the ‘gig economy’. Internacional Labour Organization. Conditions of work and employment serie, Geneva, n. 71. FONTES, V. (2017). Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho. Marx e o marxismo, 8(5), 45-67. GAVRAS, D. (2019). 5,5 milhões usam app de transporte para trabalhar. O Estado de S. Paulo. 28 abr., 2019. ILO. (2018). Job quality in the plataforma economy. International Labour Organization: Global Commission on the Future of Work, 2018. ISTRATE, E., HARRIS, J. (2017). The future of work: the rise of the Gig Economy. National Association of Countries. JOHNSTON, H., LAND-KAZLAUSKAS, C. (2019). Organizing on-demand: representation, voice and collective bargaining in the gig economy. International Labour Organization: Conditions of Work and Employment Series, Geneva, n. 94. MARX, K. (1976). Capital. Critique of political economy. Vol. I. London: Penguin Books. MASTERCARD. (2019). The Global Gig Economy: Capitalizing on a ~$550B Opportunity. MUHAMMED, A. (2019) 5 important stats about the Gig Economy to know in 2019. Forbes, mai. 2019. PARTINGTON, R. (2019). Gig Economy in Britain doubles, accounting of 4,7 million workers. The Guardian, 28 jun., 2019. PEREZ, C. (2002). Technological Revolutions and Financial Capital. USA: Edward Elgar. RINEHART, W., GITS, B. (2015) Independent contractors and the emerging Gig Economy. American Action Forum, Washington, DC. Notas [1] Universidade Federal do ABC, Centro de Ciências Naturais e Humanas, Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais, São Bernardo do Campo, São Paulo, Brasil. (N.A.). [2] A expressão gig, em sentido estrito, costuma designar a ideia de uma única performance executada por um músico, ou grupo de músicos, especialmente tocando música moderna ou pop. No entanto, passou a ser empregada de maneira generalizada para designar trabalhos, empregos e serviços prestados temporariamente. (N.T.). [3] Termo que designa de maneira mais abrangente as relações de trabalho temporárias e sem vínculo empregatício, incluindo atividades freelancer e remuneradas por cada projeto ou serviço. (N.T.). [4] Na presente tradução, utilizamos a tradução brasileira de O capital da editora Boitempo: MARX, K. O capital: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013. (N.T.). [5] Todas as citações em outros idiomas foram traduzidas livremente pelo autor. (N.A.).

  • Eles não sabem o que falam e o fazem mesmo assim: a polêmica envolvendo o fetichismo da mercadoria.

    Por Warlen Nunes e Ayrton Otoni Dentre as inúmeras polêmicas que parecem surgir nas redes sociais, uma em específico envolveu a categoria do fetichismo da mercadoria. Uma categoria que é basilar do marxismo embora, como ficou demostrado - pelas tentativas insuficientes de explicações sobre o tema por parte dos “sociais influencers marxistas" – mostrou-se muito incompreendida. O debate acerca do fetichismo da mercadoria não é algo novo no campo da teoria marxista, apesar de alguns se apresentarem como inovadores ou porta-vozes das boas novas, a discussão sobre a temática já se acumula por algumas décadas. Tendo como exemplo, em “A teoria marxista do valor” (1928), Isaak Rubin resgata questões centrais e já apontava a necessidade de revisão na forma de leitura dos apontamentos de Marx sobre fetichismo, sob o argumento principal de que ainda à época “a teoria de Marx sobre o fetichismo da mercadoria não ocupou lugar que merece no sistema econômico marxista” (RUBIN, 1974). Segundo Rubin, o fato não se deve a falta de leitura sobre a temática, pois o autor reconhecia que “tanto os marxistas quanto os adversários do marxismo elogiaram a teoria, considerando-a como uma das mais audazes e engenhosas” a apresentando como uma “brilhante generalização sociológica, uma teoria crítica de toda cultura contemporânea, baseada na reificação das relações humanas” (RUBIN, 1974). Entretanto, as interpretações não reconheciam que o conceito de fetichismo faz parte de uma dimensão orgânica e central para a garantia da produção e reprodução do sistema capitalista, em que não pode ser lida como um momento deslocado da lógica interna expressa por Marx em O Capital, pois as categorias não são para o autor somente palavras vazias mas “[…] as categorias expressam formas de ser, determinações de existência” (MARX, 2011, p. 59). Os apontamentos de Rubin visam inicialmente traçar dois diagnósticos que nos parecem atuais: 1) a teoria sobre o fetiche da mercadoria aparece tanto sob os críticos quanto para a tradição marxista como um momento em suspenso (puramente abstrato) da forma de ser da sociedade capitalista, ou até mesmo enquanto, uma ilusão puramente subjetiva e psicológica que acontece somente na cabeça dos homens. 2) como uma análise sociológica. Segundo o autor, esses erros estão presentes, devido a má compreensão da forma expositiva da estrutura da primeira seção de “O Capital”, onde o capítulo sobre o fetichismo está “separado” dos capítulos anteriores. Entretanto salienta o autor que “esta estrutura formal, no entanto, não corresponde à estrutura interna e às conexões das ideias de Marx” (RUBIN, 1974), onde a “teoria do fetichismo é, per se, a base de todo sistema econômico de Marx, e particularmente a sua teoria do valor” (RUBIN, 1974). Nesse sentido, para afastar essas interpretações que retornam no mar agitado das frágeis polêmicas das redes sociais, o texto visa explicitar de forma sumária no que consiste essa categoria para Marx. Marx define seu projeto de Crítica da Economia Política como o de “desvelar a lei de movimento econômico da sociedade moderna”. O Capital de Marx, como ele mesmo disse em uma carta a Engels de 1958, se trata de uma crítica das categorias econômicas, o projeto de minha vida, é a exposição crítica do sistema da economia burguesa, ou seja, é ao mesmo tempo a exposição do sistema e sua crítica (MARX. ENGELS: 2021). Dessa maneira, Marx visa pôr a nu as principais contradições das relações sociais burguesas por entender que essas relações aparecem através de certas formas invertidas e coisificadas, e mesmo que essas sejam criações humanas acabam por se autonomizar e dominar os próprios seres humanos. A palavra fetichismo deriva do português feitiço. Na sua origem o termo fetiche designava um objeto ao qual se atribuía poderes mágicos. Ele surge no contexto do colonialismo europeu para caracterizar as religiões dos povos africanos. Marx ao se apropriar do conceito lhe dá um novo significado, o relacionando como um dado inseparável da produção de mercadorias, ou seja, o ser da mercadoria tem como uma de suas propriedades essenciais o fetiche. Desse modo, o conceito de fetichismo explicita essa forma de aparecer das relações sociais capitalistas – é através desta categoria que compreendemos que as relações de produção entre as pessoas assumem necessariamente a forma de relações entre coisas (MARX, 2013: RUBIN, 1987). Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias. (MARX.2013, p.147-148) Para explicar esse quiproquó, Marx, vai analisar como o trabalho de produtores privados e independentes adquire seu caráter social no modo de produção capitalista. E, como esse caráter social do trabalho que produz valor aparece como uma qualidade natural das mercadorias, do dinheiro e do capital. É nesse viés, que Rubin vai dizer que o fetichismo é parte constitutiva da teoria do valor de Marx (RUBIN,1987). Portanto, é dessa maneira que os segredos e os mistérios das relações capitalistas poderão ser desvelados, não só revelando que o trabalho é a fonte oculta do valor, mas explicando por que o trabalho social assume essas formas fetichistas de manifestação. Marx se expressa nos seguintes termos sobre a forma-mercadoria e o fetiche que lhe é inerente, “reflete aos homens o caráter social dos seus trabalhos como propriedades naturais das coisas, uma inversão se opera aqui- o que é social fruto das relações entre os homens aparece como qualidade natural da própria coisa”. (MARX, 2013) A propriedade social do valor das mercadorias só pode se manifestar em sua relação com outras mercadorias, desse modo, a qualidade de ter valor aparece como algo inscrito no corpo da mercadoria e não da relação entre pessoas. Assim, podemos entender porque a mercadoria devolve aos homens a relação social de produção como uma relação entre coisas. Podemos denominar essa relação como de coisificação das pessoas e personificação das coisas (RUBIN:1974). Ademais, o caráter de fetiche dos produtos do trabalho como demonstra Marx surge do caráter peculiar do trabalho social produtor de mercadoria e, para que os trabalhos privados se validem como trabalho social a única maneira de isso ocorrer é mediante a comparação através de coisas que valem. Assim sendo, para que o valor se expresse ela tem que encontrar seu equivalente de valor. Ou seja, ela tem que ser vendida. Nos dizeres de Marx, a mercadoria tem que realizar seu salto mortal, o trabalho só é validado como trabalho social no mercado. Por isso, Marx vai dizer que as relações humanas estão coisificadas, dessa forma, mediada por coisas. A questão toda se torna mais visível quando o dinheiro entra em cena. Assim, o mistério do fetichismo do dinheiro é o mesmo do fetichismo da mercadoria, só que agora de forma visível e deslumbrante diante de nossos olhos (MARX, 2013). O dinheiro é um modo de representação das trocas generalizadas de mercadorias, esse é seu fundamento que Marx vai nos explicar a partir da categoria de equivalente geral. Só é possível compreender o fetichismo do dinheiro desvendando sua gênese a partir da forma mercadoria. “A objetividade do valor das mercadorias é diferente de Mistress Quicklyf, na medida em que não se sabe por onde agarrá-la. Exatamente ao contrário da objetividade sensível e crua dos corpos das mercadorias, na objetividade de seu valor não está contido um único átomo de matéria natural”. (MARX, 2013, p.124-125). É somente a partir da relação social de uma mercadoria com outra mercadoria que a substância social cristalizada nas mercadorias pode se manifestar, por isso, se inicia a análise da forma valor pela relação mais simples, isto é, a troca de uma mercadoria pela outra. “Cabe, aqui, realizar o que jamais foi tentado pela economia burguesa, a saber, provar a gênese dessa forma-dinheiro, portanto, seguir de perto o desenvolvimento da expressão do valor contida na relação de valor das mercadorias, desde sua forma mais simples e opaca até a ofuscante forma-dinheiro. Com isso, desaparece, ao mesmo tempo, o enigma do dinheiro” (MARX, 2013, p. 125), ou seja, como afirma Jadir Antunes “para compreendermos o fetiche da mercadoria será necessário compreendermos o duplo movimento da mercadoria: o movimento do vir-a-ser mercadoria e o do vir-a-ser dinheiro. O primeiro movimento da mercadoria, o do vir-a-ser mercadoria, é o movimento através do qual uma coisa, que em sua origem existe em-si e por-si mesma, torna-se mercadoria e coisa para outro numa relação de troca” (ANTUNES, 2018). Aqui Marx realiza o que jamais foi tentado, buscar compreender a expressão de valor contida na relação de troca das mercadorias, da forma simples a ofuscante forma dinheiro, assim desaparece o enigma da forma dinheiro, por conseguinte, seu fetiche pode ser revelado. A forma simples de valor pode ser representada da seguinte maneira: x mercadorias A = y mercadorias B ou: x mercadorias A têm o valor de y mercadorias B (20 braças de linho = 1 casaco ou: 20 braças de linho têm o valor de 1 casaco). Na relação de troca as duas mercadorias não desempenham o mesmo papel. A, a forma relativa tem que expressar seu valor em um outro corpo distinto do seu, e B expressa o valor de A. Mas, para que B se torne a forma de expressão do valor de A, ele tem que se tornar uma forma autonomizada do valor, ou seja, ele tem que se tornar coisa de valor, ao se tornar coisa de valor ele se torna a forma equivalente. Nessa relação, a forma equivalente B, aparece como uma coisa tangível em que o valor se manifesta, desse modo, a forma B parece possuir naturalmente a capacidade de ser a expressão de valor. Assim, é pelo valor de uso da mercadoria B, que ela pode expressar o valor da mercadoria A. O valor está dado nas suas propriedades naturais, por exemplo, 20 metros de linho valem 1 casaco, 10 metros de linho meio casaco. O casaco fora da relação de troca é só um valor de uso, embora quando ele entra nessa relação social, o casaco adquire a propriedade de ser expressão de valor como algo dado no seu próprio corpo. Esse fenômeno onde uma coisa possui na sua materialidade natural a qualidade de ser forma equivalente independente da relação – ou seja – quando ele se torna forma de valor autonomizado, uma forma específica de mercadoria, o ouro, se estabelece por costume. Nesse sentido, os produtores vinculam suas mercadorias a um equivalente geral que representa seu valor, esse processo que os homens fazem, mas não sabem que estão fazendo, transforma o corpo natural da mercadoria em equivalente socialmente válido. Junto das propriedades e qualidades naturais uma outra qualidade do equivalente geral é de ser trocado imediatamente por todas as demais mercadorias. O caráter fetichista do dinheiro consiste em se fixar como forma equivalente e, assim, ao lado das suas propriedades naturais ele desenvolve a qualidade social de ser uma coisa sensível-suprassensível, dessa maneira, seu valor de uso passa a representar a magnitude do valor social das mercadorias. Com o fetichismo da mercadoria vimos que este é determinado pelo caráter específico do trabalho social produtor de valor que se manifesta como determinada magnitude, já a partir da análise das formas do valor, o fetichismo do dinheiro é uma relação coisificada que se dá entre coisas, ou seja, a relação das mercadorias como equivalentes particulares com o dinheiro como equivalente universal. É essa é a forma específica do trabalho social no modo de produção capitalista. Para expressar o valor do linho como objetividade de valor, ela tem que entrar em uma relação social- o polo equivalente é o casaco, coisa que se manifesta o valor ou coisa que representa o valor. Existe uma mudança no casaco, nessa relação de expressar o valor de outra mercadoria ele sofre uma transformação, seu corpo de casaco passa a ser encarnação de valor. Agora passamos ao dinheiro, o dinheiro é uma mercadoria que tem o monopólio de expressar o valor que concentra muito tempo de trabalho em pouca quantidade. Quando o equivalente se torna encarnação de valor seu corpo natural parece possuir por natureza valor. A redução dos trabalhos concretos que produzem coisas úteis a um trabalho humano igual, transforma a relação dos produtores em relação entre os produtos do trabalho. Uma relação na qual esses produtos representam seus valores de troca mutuamente e todas elas vão se referir a uma coisa específica como seu equivalente geral, ou seja, o dinheiro. Assim, o fetichismo é a forma de aparição das relações sociais capitalista naquilo que ela é, ou seja, relações sociais coisificadas. Desse modo, as relações sociais aparecem não como relações sociais diretas entre os produtores e seus trabalhos, mas como relações coisificadas das pessoas e como relações sociais das coisas. Desse jeito, são as coisas que desempenham papéis sociais. (RUBIN:1984). As determinações sociais dos trabalhos privados aparecem como determinações naturais dos produtos do trabalho, de relações sociais entre pessoas e relações sociais entre coisas. As relações sociais agora aparecem na forma de objeto. Portanto, poderemos compreender o significado do fetichismo: o caráter de fetiche dos produtos do trabalho nasce, como a análise demonstra, do peculiar caráter social do trabalho que produz mercadorias. Ao analisar as formas de valor Marx vai nos dizer, que o casaco como coisa de valor se iguala ao linho- como produto de trabalhos concretos distintos linho e casacos são coisas distintas, mas como valores eles são reduzidos a algo em comum, isto é, a trabalho humano igual, e é mediante a expressão de valor equivalente que os trabalhos de diferentes espécies são reduzidos de fato a seu comum, a trabalho humano em geral. Quando digo que o casaco, a bota etc. se relacionam com o linho sob a forma da incorporação geral de trabalho humano abstrato, salta aos olhos a sandice dessa expressão. Mas quando os produtores de casaco, bota etc. relacionam essas mercadorias ao linho – ou com o ouro e a prata, o que não altera em nada a questão – como equivalente universal, a relação de seus trabalhos privados com seu trabalho social total lhes aparece exatamente nessa forma insana (MARX. 2013, p. 150-151, grifos meus). Portanto, a troca transforma os trabalhos privados em trabalho abstrato igual e social mediante sua equiparação com o valor na sua forma autonomizada, ou seja, com o dinheiro. É só com a generalização das trocas que podemos falar de trabalho abstrato, assim, como só podemos falar de fetichismo se os trabalhos privados se tornarem sociais ao passarem pela dimensão das trocas. Por isso, Marx vai afirmar que as mercadorias são coisa sensíveis-suprassensível, algo cheio de sutilezas metafísicas e manhas teológicas. Em sequência, Marx demonstra que o fetichismo não se restringe só à mercadoria, mas ao conjunto das categorias econômicas. No capital o lucro não aparece como fruto da exploração do trabalho, mas como uma característica que remunera o tamanho do capital, por conseguinte, a renda aparece não como fruto da sociedade, mas como uma propriedade natural do fator de produção terra. E esse fetichismo se completa com o capital portador de juros, pois, a realidade espectral do capital portador de juros “apaga” e mistifica o processo produtivo efetivo de produção do mais-valor, “o juro aparece como uma mera relação jurídica” (MELO, 2019, p 203), autonomizado do processo produtivo, o juro parece ser uma fonte de rendimento engendrado a partir de si mesmo. Apoiando-se nessa constatação, segue Melo: “D-D’ ou a circulação do capital portador de juros converte-se em um movimento autônomo do ciclo real do capital. Em D-D’ temos a forma do capital vazia de conceito, a inversão e a reificação das relações de produção levadas ao extremo” (MELO, 2019, p.204). Consequentemente, o capital portador de juros é a forma pura do fetichismo das relações sociais mercantis. Todas as sociedades que produzem mercadorias de forma generalizada tomam parte nesse fetichismo. (MARX; 2013). Como vimos ao longo deste texto a categoria do fetichismo constituir parte inseparável da teoria do valor de Marx – questão que o marxismo vulgar acha sem importância prática, até porque esse conceito poderia se levado a cabo desmistificar as formações sociais que não romperam com a forma-mercadoria e se apresentam aos olhos dos iludidos como grandes expressões do socialismo. Para os ingênuos que adotam como socialista qualquer sociedade em que impera formas de propriedade estatal, inclusive, esse é o ponto em comum entre os delírios liberais que saltam nas redes sociais brasileiras e em certo marxismo nacional-estatista. Para finalizar afirmamos: se houver troca generalizada de mercadorias independente se tem mais ou menos estado o fetiche se faz presente com todas as inversões, mistificações e ilusões que lhe é inerente. Bibliografias. MARX, Karl. O Capital: crítica da Economia Política. Livro 1: O processo de produção do capital. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política – Livro III: O Processo Global da Produção Capitalista. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017. MARX, Karl. “Introdução”. In: Grundrisse – manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo/Rio de Janeiro: Boitempo/UFRJ, 2011. MELO, Ricardo Pereira. Sobre o desenvolvimento da categoria capital portador de juros. Revista Ideação, Feira de Santana, v.1, n.39, p.198-210, 2019. RUBIN, Isaak. A teoria marxista do valor. São Paulo: Editora Polis, 1987. ANTUNES, Jadir. Marx e o fetiche da mercadoria dinheiro. Revista Dialectus, Fortaleza, v. 5, n. 12, p. 139-162, jan./jul. 2018.

  • Notas sobre a estrutura dialética do Livro Primeiro d' O Capital

    Por: Jadir Antunes Texto(PDF) publicado originalmente em: https://jadirantunes.files.wordpress.com/ Hats and Beards é uma pintura de Martel Chapman Introdução O Livro Primeiro de O Capital está dedicado à análise das contradições do processo de produção da mais-valia e possui 25 capítulos distribuídos em 7 seções. A primeira seção compreende os capítulos I a III e estuda as determinações contraditórias do dinheiro e da mercadoria na esfera da circulação simples. As seções II a VI compreendem os capítulos IV a XX e estudam as contradições contidas no processo de produção da mais-valia. A seção VII estuda a repetição do processo de produção e a conversão da mais-valia em capital, isto é, estuda as contradições contidas na esfera da reprodução do capital. Vejamos então as linhas gerais desta divisão. Significado geral da exposição de O Capital – Livro I 1)Seção Primeira: M-D-M (Mercadoria – Dinheiro – Mercadoria). Representa o começo puramente formal, abstrato e expositivo da exposição. Os operários aparecem como indivíduos livres e dispersos pelo mercado. M (uma mercadoria qualquer) se converte em D (dinheiro) que será reconvertido noutra mercadoria (M) qualquer. O dinheiro não aparece ainda como dinheiro, mas como moeda e meio de circulação. O dinheiro, por isso, não aparece ainda como o fim do processo de troca. O fim da troca aparece, ilusoriamente, como M, como a satisfação de uma necessidade humana qualquer. 2) Seção II: Contradições da fórmula geral do capital D- M-D’ (Dinheiro – Mercadoria – mais-Dinheiro) . Primeiro momento negativo e crítico da exposição. Nesta seção surgem as primeiras contradições da fórmula geral do capital na esfera da circulação e a crítica à noção dos economistas de que a mais- valia surge desta esfera. O dinheiro nesta seção surge como dinheiro exatamente, não mais como moeda e meio de circulação como aparecia na seção anterior. O dinheiro surge agora como valor que deve se valorizar na circulação e como o fim do processo de troca. O problema aqui é explicar como o dinheiro, seguindo a lei do valor e da equivalência entre as mercadorias, segundo a lei de comprar e vender pelo valor, pode se valorizar no processo. O problema é explicar como o dinheiro (D), ao se converter em M (uma massa de valor igual a D), sai ao fim do processo maior do que entrou no começo sem violar as leis da troca de mercadorias. Ainda no interior desta segunda seção surge a resposta ao problema da valorização do valor com o surgimento de uma mercadoria determinada, a força de trabalho, e um vendedor, também determinado, o trabalhador, que ainda não apareciam na seção anterior, ou que apareciam misturados sem se diferenciar com uma miríade de outros vendedores. A fórmula FT-D-M (Força de Trabalho – Dinheiro – Mercadoria) surge como a mediação dialética entre o começo abstrato e indeterminado e a esfera da produção que virá logo mais. O mercado, por isso, está agora mais determinado que no começo, pois agora estamos no mercado de força de trabalho. Aqui é o momento da venda da força de trabalho (FT) pelo operário ao capitalista. Momento da conversão da força de trabalho em D (dinheiro) e, mais tarde, em meios de subsistência (M) do trabalhador. D só pode se converter em D’ caso entrar em relação com um vendedor de uma mercadoria determinada, a força de trabalho (FT) do trabalhador, com uma mercadoria que possui a peculiaridade de gerar uma soma de valor acima de seu próprio valor. 3)Seção III a VI: D-M (D - FT + MP) ...P... M’-D’ (Dinheiro – Mercadoria força de trabalho e Mercadoria meios de produção...Processo de Produção ... mais-Mercadoria – mais-Dinheiro, onde ... significam as pausas do processo de troca). Segundo momento crítico e negativo da exposição e a primeira negação determinada do começo. A valorização do valor é exposta na esfera da produção capitalista. Os operários surgem como uma categoria determinada da sociedade reunidos pelo capital em torno de uma grande fábrica e lutando por reivindicações positivas e de caráter sindical. Dinheiro (D) se converte em certas mercadorias determinadas (força de trabalho e meios de produção). ...P... indica a paralisia transitória do processo de valorização do valor na esfera da produção. O valor ressurge valorizado ao final do processo de produção com M’. O valor, porém, ressurge valorizado numa forma determinada e rígida da produção social, ressurge sob a forma de M’ com valor superior ao valor adiantado inicialmente. D’ representa a transmutação do valor de sua forma rígida e determinada para a forma líquida, fluente, indeterminada e universal da riqueza. Com D’ o dinheiro retorna ao seu ponto de partida mais elevado quantitativamente. O fim do processo, valorizar o valor, foi atingido. D se converteu em capital e em D’, isto é, o dinheiro se converteu em mais-dinheiro mediante extração de mais-trabalho do operário. 4)Seção VII: D-M (FT + MP) ... P ... M’-D’-D-M (FT + MP) ... P ... M’-D’-D-M (FT + MP) ... P ... M’-D’. Repetição sem fim de todo o processo anterior e unidade sintética de todos os momentos da circulação com o da produção e reprodução do capital. A exposição cai numa repetição circular e sem fim, por isso, surge a necessidade de marchar além dela e de transpor a esfera insossa da reprodução social buscando a gênese e princípio do capital. O dinheiro se reproduz incessantemente retornando sempre ao seu ponto de partida elevado quantitativamente. D se converte em D’ mediante extração de mais-valia do operário, D’, por sua vez, retorna à circulação e se converte novamente em D que se converte, por sua vez, numa massa acrescida de M (FT + MP) que ao ser posta em atividade no interior da fábrica (... P ...) se converte numa massa maior de mercadorias (M’), que, posta para circular no mercado, se converte novamente em D’, que reinicia novamente todo o processo numa escala mais elevada que no começo e assim sempre de novo como num círculo vicioso. 5)Seção VII: a acumulação originária. Exposição do princípio fundador do capital e das tendências gerais da sociedade capitalista. É o momento da negação da negação. Os operários se elevam à condição de classe social, estão internacionalmente ligados pela grande indústria e lutam pela revolução internacional. Para fugir da exposição circular é necessário sair fora dela e recuar às origens históricas do capitalismo, mostrando que todo o processo de valorização do valor se apoia na mais bárbara violência do homem sobre o próprio homem. Ao desvelar a gênese histórica e o princípio fundante do capital, a violência aberta da luta de classes, Marx pode entender as tendências futuras do capital. Ao compreender a gênese do passado pode desvendar o sentido das tendências futuras. A tendência histórica da acumulação capitalista pode, assim, ser compreendida em seus três momentos fundamentais: 1)Momento positivo e afirmativo do capital: é o momento da expropriação dos produtores diretos (servos de gleba, camponeses, colonos livres, mestres e artesãos corporativos de fins da Idade Média europeia) e sua conversão em trabalhadores assalariados. Expropriação da propriedade privada baseada no trabalho e sua conversão em propriedade capitalista pelos capitalistas ingleses dos séculos XIV-XVII. Transformação do trabalho individual e disperso pelo campo e em pequenas oficinas urbanas em trabalho social nas grandes manufaturas urbanas. Fim do isolamento dos trabalhadores e sua reunião em grandes centros industriais urbanos. 2)Momento negativo do capital: expropriação da pequena propriedade capitalista pelo grande capital, ruína do pequeno capital pela concorrência no interior da própria sociedade capitalista já desenvolvida. Formação dos grandes monopólios internacionais, controle consciente das forças da natureza e sua aplicação na produção. Formação de uma economia verdadeiramente mundial baseada na interdependência entre as nações e superação do isolamento entre os homens em todas as nações. Formação de uma única nação capitalista mundial. Formação de uma vasta classe operária mundial reunida em torno das grandes fábricas multinacionais e grandes centros urbanos industriais. Superação da propriedade privada por meio do sistema de ações, superação da necessidade histórica do capitalista individual frente ao processo de produção e sua substituição por gerentes executivos assalariados.Negação da propriedade privada à maioria da humanidade. Sobrevivência da propriedade privada sob forma antitética, como Sociedade Anônima. O capital gesta, no interior de si mesmo, uma forma de produção social que contradiz seu princípio privado. Gesta, ainda, seus futuros coveiros reunidos em torno da grande indústria e responsáveis pela negação deste segundo momento. 3) Momento da negação da negação: é o momento da expropriação dos expropriadores pela massa dos trabalhadores, é o momento da expropriação da minoria reduzidíssima da população que ainda permanece proprietária, como sócia acionista, pela maioria da população. É o momento da revolução operária e a formação de um novo modo de produção, é o momento da economia planificada, da ditadura revolucionária do proletariado e o começo da verdadeira história humana. A violência usada pelo capital se volta contra ele para fundar uma nova história, sem capital, sem propriedade privada, sem classes e sem exploração de classes. Com a revolução operária as contradições da sociedade capitalista são finalmente abolidas e resolvidas. Surgem novas contradições, mas não de caráter capitalista. Com a negação da negação se dissolve e se encerra não apenas o processo de exposição das contradições do capital, mas se encerra, ao mesmo tempo, a história da própria sociedade capitalista. A partir daí um novo princípio é posto e com ele se desenvolve uma nova história. A exposição (pôr para fora o que está apenas pressuposto e escondido) avança, assim, negativa e gradualmente, do começo abstrato e indeterminado do mercado a níveis cada vez mais profundos, complexos e determinados da realidade. A exposição avança cada vez mais dialeticamente do começo para o fim, mas para um fim que é na verdade princípio determinado, que é arché, fundamento e gênese de todo o processo e marcha na direção do futuro socialista. Chega-se, assim, finalmente, à negação da negação em escala mundial e verdadeiramente universal. Assim, no método de exposição dialético, avançar é um retroceder ao princípio que funda e rege todo o processo, avançar a exposição é expor, por meio de uma série complexa de mediações, o princípio que está pressuposto e ainda velado, avançar é conduzir o leitor pedagogicamente do começo indeterminado e abstrato aos níveis mais profundos e verdadeiros da realidade, avançar a exposição é avançar o leitor de O Capital da passividade e alienação do mercado em direção à atividade prática revolucionária. O princípio, ponto de chegada da análise, contudo, é ponto de chegada apenas na aparência. Na verdade ele está posto, desde o começo da exposição, como pressuposto velado que rege todo o processo. O princípio é ponto de chegada na exposição apenas para aqueles que realizam pela primeira vez a leitura de O Capital. Para Marx, seu autor, e para a vanguarda conhecedora do processo, ele está desde o começo posto como pressuposto, como aquilo que ainda deve ser exposto, isto é, como aquilo que ainda deve ser posto explicitamente, como a meta a ser desvelada lenta e gradualmente ao longo do processo de exposição. Assim, o recém iniciado na leitura de O Capital começa sua leitura sem pressuposto, isto é, sem conhecer o princípio e o fim almejado pela exposição, e o fim almejado pela exposição é converter o leitor comum, passivo e alienado na esfera do mercado, em um ativista revolucionário. Para Marx e para a vanguarda, o princípio e o fim, contudo, são conhecidos desde o começo da exposição, o princípio e o fim estão postos desde o começo como meta a ser alcançada. Uma vez conhecido o princípio, torna-se possível a superação dialética e revolucionária do capital desde o começo da exposição, desde a dispersão dos operários na instância imediata do mercado até a revolução socialista. Conhecido o princípio e posto ele como pressuposto desde o começo da exposição torna-se possível à vanguarda revolucionária conduzir o proletariado em luta, dialeticamente, como faz Marx com seus leitores, desde a instância fetichizante do mercado até a revolução socialista e à negação da negação. Ao longo da exposição Marx vai lentamente expondo não apenas a natureza contraditória da realidade capitalista, mas vai expondo, ainda, como as contradições do sistema são insolúveis no interior das relações capitalistas de produção. Ao longo da exposição Marx demonstra, científica e dialeticamente, que a solução definitiva e total para as crises do sistema capitalista só pode ser alcançada com a revolução operária e socialista. Significado geral da Seção I do Livro I A Seção I de O Capital representa a instância mais imediata, abstrata, aparente e ilusória da realidade capitalista. Há aqui um aparente intercâmbio de equivalentes e a relação entre capital e trabalho não aparece como tal, mas como uma relação entre dois vendedores individuais de mercadorias. O trabalhador não aparece ainda como tal, mas, sim, como vendedor de uma mercadoria indeterminada. O patrão, do mesmo modo, não aparece como tal, mas sim, como certo comprador de mercadorias em geral. A única relação econômica que surge neste momento é uma relação de comércio, onde, de um lado, se apresenta certo vendedor indeterminado e de outro, certo comprador, do mesmo modo indeterminado. Um surge como proprietário de produtos e o outro como proprietário de dinheiro. Esta instância é a mais abstrata, e por isso a mais pobre de conteúdo, porque toda a transação entre comprador e vendedor é analisada num grau puramente formal, num grau bastante purificado de conteúdo. Isto é: toda a transação econômica desta instância é analisada abstraindo-se de qualquer conteúdo e num nível puramente formal e indeterminado. Por isso, Marx expressa esta relação comercial com a fórmula da circulação simples de mercadorias: M-D-M. Nesta fórmula o dinheiro não circula como capital, mas, sim, como moeda, isto é, como meio de circulação. O fim do processo é a satisfação de uma necessidade ainda não satisfeita e não a valorização sem fim do valor. Como todo conteúdo da transação foi abstraído da exposição, mercadoria e dinheiro não aparecem como capitais, mas aparecem sim, como mercadoria e dinheiro mesmo. Do mesmo modo, vendedor e comprador não aparecem frente a frente como trabalhador e patrão, mas aparecem sim, como vendedor e comprador mesmo, sem determinação alguma. A dificuldade para se compreender esta Seção I, reside exatamente no caráter abstrato da exposição que recém inicia. As contradições que surgem neste nível surgem como resultados do caráter contraditório de certas categorias inteiramente abstratas. É o caso, por exemplo, da contradição que surge quando a mercadoria, a forma determinada, particular e rígida da riqueza social, deseja ser trocada pelo dinheiro, a forma universal, indeterminada e fluída da riqueza social. Surge assim uma contradição entre a forma particular, rígida e determinada da riqueza social com sua forma universal, fluída e indeterminada. A leitura positivista e historicista de O Capital acredita que existe entre a primeira seção e as seções restantes um corte paradigmático e incomensurável. Para essa leitura, a primeira seção de O Capital estaria analisando as condições históricas pré-capitalistas sobre as quais partiu e se desenvolveu a acumulação capitalista. Para essa leitura, na primeira seção Marx estaria analisando um suposto modo de circulação das mercadorias – a circulação mercantil simples (M-D-M) – que teria precedido no tempo a circulação capitalista de mercadorias (D-M-D’). Para essa visão, a circulação capitalista de mercadorias e o processo de valorização do valor que a caracteriza começariam a ser expostos por Marx apenas a partir da segunda seção, com a exposição do processo de compra e venda da força de trabalho. Desse modo, a transição da primeira seção para as seções seguintes de O Capital seguiria o mesmo curso histórico da sociedade capitalista em seu período de gênese. A transição, portanto, não seria conceitual, mas, sim, histórica e temporal. A leitura dialética de O Capital, por seu lado, leitura da qual partilhamos, acredita que a esfera da circulação simples e a esfera da circulação capitalista de mercadorias são momentos de um mesmo processo de pensamento baseado na contraposição entre momentos mais imediatos, abstratos e aparentes de uma determinada realidade, com seus momentos imanentes e ocultos aos sentidos naturais do homem. Para essa leitura dialética de O Capital, a esfera da circulação simples de mercadorias e a troca de equivalentes expostas nessa primeira seção são os momentos conceitualmente mais imediatos de todas as trocas realizadas no interior da própria sociedade capitalista, e não momentos de processos que antecedem no tempo a história dessa sociedade. Para essa visão dialética da questão, a circulação simples de mercadorias é a esfera nas quais todos os diferentes agentes da sociedade capitalista aparecem diariamente na figura de compradores e vendedores de mercadorias, que têm como meta satisfazerem-se no consumo. Essa esfera da circulação não é uma esfera inexistente, nem mesmo uma esfera atrasada no tempo, quando comparada com a esfera capitalista das trocas que visa a valorização do valor. Essa esfera é a esfera na qual trabalhadores e capitalistas se defrontam cotidianamente com a mercadoria e o dinheiro na figura de homens comuns, que vendem e compram mercadorias para satisfazer suas necessidades de consumo. O dinheiro, por isso, aparece para esses agentes como coisa e mero meio de circulação, e nunca como representação de algo que se esconde para além de si próprios e como meta das trocas. A exposição crítica e dialética de Marx toma essas relações ordinárias com a mercadoria e o dinheiro como relações abstratas e, por isso, como relações conceitualmente carentes de determinações mais precisas e imanentes. A transição do começo da exposição para as seções seguintes segue, por isso, um curso conceitual e não temporal e histórico. A diferença entre a primeira seção, que inaugura a exposição crítica de Marx, e as seções seguintes é uma diferença entre níveis de abstração e concretização de um mesmo e único pensamento e de uma mesma e única realidade, e não uma diferença entre dois tempos historicamente separados. As dificuldades de uma compreensão dialética da primeira seção de O Capital começaram a aparecer ainda na época da publicação da Contribuição à Crítica da Economia Política, em 1857, obrigando Marx a aperfeiçoar a exposição e a deixar sua obra magna mais didática e acessível ao leitor comum. Marx comentava no Prefácio da Primeira Edição (1867) que O Capital era uma continuidade de sua obra Contribuição à Crítica da Economia Política. Dizia ele que o primeiro capítulo de O Capital era um resumo da Contribuição e que sua exposição estava agora mais aperfeiçoada e acessível, especialmente a exposição sobre a substância e a grandeza do valor. Essas dificuldades foram também observadas por Marx no Posfácio da Segunda Edição Alemã. Marx comentava nesse Posfácio que, por sugestão de seu amigo Dr. Kugelmann, aperfeiçoará a ordenação do livro, deixando-a mais clara. Comenta ainda que apresentará com maior rigor científico a relação entre o valor e o valor-de-troca, e a conexão da grandeza do valor com o tempo de trabalho socialmente necessário. Marx lamentava-se nesse Posfácio sobre a pouca compreensão mostrada pelos leitores na questão do seu método de exposição. Marx ainda comentara ter usado certos modos de expressão peculiares a Hegel e confessar-se abertamente discípulo, ainda que crítico, desse grande pensador, tratado injustamente como cachorro morto pelo movimento neo-kantiano de finais do século XIX. Engels, o velho e inseparável amigo, teria sido o primeiro grande intérprete de Marx a não entender o caráter dialético da exposição de O Capital e dessa primeira seção do Livro Primeiro, convertendo essa seção em pressuposto histórico do capitalismo. Em seu Prefácio ao Livro Terceiro de O Capital, Engels procurou corrigir as polêmicas surgidas com os economistas, a partir da publicação do Livro Segundo. Segundo os economistas, como Conrad Schmidt, Fireman, Wolf e Loria, haveria uma incompatibilidade entre a teoria marxista do valor e da mais-valia e a formação do lucro capitalista. Engels respondera a esses economistas dizendo que a esfera da circulação simples de mercadorias e a teoria do valor equivalente formavam o ponto de partida histórico do capitalismo, e que esses economistas, por serem incapazes de compreender este caráter histórico do capitalismo, também seriam incapazes de compreender a teoria do valor trabalho de Marx. A polêmica sobre a vigência da lei do valor trabalho na sociedade capitalista permaneceu mesmo após a publicação do Livro Terceiro, juntando-se agora a acusação de incompatibilidade entre os Livros Primeiro e Terceiro, obrigando Engels a publicar um Suplemento explicativo na Revista Neue Zeit, em 1895/96. Nesse suplemento, Engels explicava que para Conrad Schmidt e Loria, a lei do valor trabalho teria uma validade meramente hipotética ou imaginária na sociedade capitalista, pois nela predominava a lei dos preços de produção. Engels esclareceu, então, reafirmando sua compreensão historicista da primeira seção, que a lei do valor e a circulação simples de mercadorias formavam a base de um processo não apenas lógico, mas ainda histórico para a produção capitalista. Rosa Luxemburgo também teria sido uma das grandes personagens da história do marxismo a não compreender o caráter dialético da exposição e da primeira seção do Livro Primeiro, e a reclamar da complexidade dialética de Marx nesta seção, adotando o ponto de vista historicista de Engels. O marxista belga Ernest Mandel também foi um dos mais importantes difusores da tese engelsiana do caráter histórico da primeira seção do Livro Primeiro de O Capital, e de sua não relação com as categorias imanentes da circulação capitalista de mercadorias. Nesta mesma linha de interpretação inaugurada por Engels seguiram economistas como Paul Sweezy, Oskar Lange e Ronald Meek. Louis Althusser, ainda que não partilhasse da popular concepção engelsiana, foi ainda mais longe nessa questão, ao recomendar aos iniciantes de O Capital – em seu Prefácio ao Livro Primeiro de 1969, em francês – que pulassem essa seção, devido ao caráter abstrato e incompreensível dela para um leitor não familiarizado com a cientificidade do marxismo. Althusser recomendava ainda a esses jovens leitores que começassem a leitura pela segunda seção, retornando à primeira seção somente após várias leituras completas do Livro Primeiro. Evidentemente, a leitura dialética de O Capital deve começar pelo começo e sem recorrer a quaisquer atalhos que quebrem arbitrariamente a arquitetura dialética da exposição e o caráter político e revolucionário da obra de Marx, avançando sempre mais e mais na direção dos níveis mais imanentes, negativos, contraditórios e revolucionários da totalidade da realidade capitalista.

  • A guerra e a ausência proletária

    Para compreender o papel central ucraniano na indústria de gás da URSS – tanto no desenvolvimento tecnológico, quanto no que se refere ao transporte e armazenamento – é importante mencionar que o país era um território incontornável para os gasodutos, circunstância que legou à nação uma relação especial com Moscou. Assim, a Rússia deveria recompensar os governantes ucranianos que fortalecessem os laços com o governo moscovita. Em contrapartida, a Ucrânia era beneficiada com preços significativamente mais baixos do que os do mercado internacional de gás e petróleo, sem os quais a competitividade de sua produção nacional ficava profundamente reduzida. É perceptível que por trás das crises do gás em 2006 e 2009, que resultaram em breves interrupções no abastecimento russo à Ucrânia e à UE, estavam divergências relacionadas ao preço que a Ucrânia paga pelo gás e à forma de pagamento da dívida contraída por Kiev decorrente dessa relação. Sob essa intercâmbio, parece estar escondida a intrincada trama de um fio que nos leva do oriente ao ocidente. A Rússia depende profundamente da produção de gás e petróleo, o carro chefe de suas exportações. Com uma baixa taxa de produtividade do trabalho em sua indústria – equivalente a 40% da taxa alemã –, o país demonstra graves problemas em inovação tecnológica, sendo os investimentos em pesquisa, dados de 2012, equivalentes a 1,2% do PIB russo – número baixo se comparado aos 2% da China. Os russos empregam uma quantidade de energia por unidade de produto duas vezes maior do que a quantidade comumente gasta em economias mais desenvolvidas. No entanto, mesmo sem dados robustos para confirmar, há que se cogitar que a baixa taxa de produtividade seria compensada, em certa medida, pelo baixo custo de produção dos combustíveis, o que explicaria a competitividade dos preços dos produtos de certos ramos da indústria russa no mercado global (1). A hipótese ganha ainda mais relevo ao notar que cerca de 43% do gás natural consumido nos países da UE vem da Rússia. No caso específico da Alemanha, o número sobe para 55%. A conjunção entre a imensa disponibilidade de matéria-prima nas jazidas russas, a necessidade de baixa tecnologia e de pouca renovação da maquinaria para a extração e uma intensa exploração da força de trabalho – sobre a qual nos faltam dados –, proporcionaria superlucros para a indústria do ramo energético e beneficiaria – devido ao acréscimo de produtos sem um acréscimo de capital – outros ramos industriais com maior composição orgânica do capital, tanto na Rússia como na Alemanha, o que poderia explicar o aumento progressivo e consciente, ao longo de décadas, da dependência alemã em relação ao gás russo (2). Tudo isso, evidentemente, às custas de uma bárbara exploração da classe trabalhadora. Moscou parece utilizar a abundância desses produtos a custos baixos de produção para controlar não apenas a dependência energética da indústria ucraniana, como também a necessidade que tem a UE – principalmente Alemanha e França – dos preços desses combustíveis. Nesse sentido, a Ucrânia seria um nó górdio atando Rússia e UE à espera de seu destino. Sob essa ótica, suscitar pretensões imperialistas na ação bélica da Rússia não parece uma ideia tão absurda. Mesmo que seja difícil vislumbrar sua economia competindo com EUA, Alemanha ou China, é preciso admitir que o país possui uma produção nacional relevante, uma relativa exportação de capitais – inclusive para países da UE –, mas principalmente um poder militar imenso, com inovações tecnológicas importantes. A produção bélica não só garante posições militarmente vantajosas no mundo, como também é uma indústria que exporta para outros países – sendo essas mercadorias consumidas quanto mais conflitos militares são feitos. A organização estatal russa também adiciona elementos a essas pretensões. Estando boa parte das jazidas energéticas em mãos privadas, o armazenamento, a distribuição e os canais de transporte concentram-se no setor público, permitindo ao Estado exercer pressão sobre os agentes envolvidos no processo de extração e comercialização. Temos como exemplo a Rosneft, Transneft e Gazprom, sendo que essa última – com maioria de ações estatais – tem monopólio sobre os dutos de exportação de gás no país. A concertação do governo Putin – reunindo a alta burguesia pós-soviética, chamados de oligarcas, siloviks e ex-agentes da burocracia – leva em rédeas firmes o capitalismo nacional. Sob as particularidades da formação social russa, Putin parece efetivar uma das mais genuínas tarefas do Estado burguês. É um comitê de negócios comuns dos capitalistas com significativa eficiência, priorizando a manutenção dos interesses mais gerais do capital nacional – olhando não só para árvore, mas para a floresta inteira –, indo até às últimas consequências para efetivá-los, mesmo que para isso seja necessário atropelar interesses individuais de alguns capitalistas (3). Por outro lado, a presença das potências capitalistas ocidentais no problema ucraniano também é evidente. Como já mencionamos, os Estados Unidos não apenas miram na Rússia – por sua influência regional, seu poder sobre os preços da energia europeia e seu arsenal militar – como também mira os países da União Europeia, os quais têm sido mantidos sob suas asas na OTAN. Entre às ações ocidentais, principalmente a estadunidense, tem-se destacado até agora as chamadas revoluções coloridas – e fomento a governos pró-ocidente – na Geórgia, Quirguistão e Ucrânia, a adesão de países do leste europeu à OTAN e à UE, além da interferência no Oriente Médio, como fatores de pressão sobre a Rússia. Nos últimos meses antes da atual guerra, viu-se o governo russo pedir por negociações em relação à sua própria segurança – reclamos reconhecidos como pertinentes até por um Thomas Friedman. Qualquer um sabe o resultado de chegar até a fronteira de seu inimigo – um gigante nuclear. Os EUA atingiram em 2021 seu maior orçamento militar desde a Segunda Guerra. A ingerência na política interna ucraniana também ficou patente desde 2004. As relações diretas – e financeiras – de Bush com a campanha presidencial de Yushchenko, de Zelensky com Trump – na tentativa de conseguir recursos para ir adiante com a guerra civil no Donbass – são públicas. Esses muitos elementos jogaram pólvora na situação e o governo norte-americano tinha plena dimensão disso. Não por outra razão, semanas antes da guerra os EUA diziam que a Rússia estava prestes a invadir, enquanto Putin chamava de “histeria ocidental”. É evidente que sempre há pontos a serem explorados numa guerra fora de seu território, sem sacrifício de seu próprio exército e provando que seu inimigo foi quem começou a agressão. A Ucrânia dos anos 2000 tornou-se um barril de pólvora. O país mais pobre da Europa era um caldeirão de insatisfações populares somadas à insatisfação da burguesia. Dos três grupos de oligarcas industriais, um no cinturão de Kiev – com a maior renda per capita do país –; um no Donbass, a leste; e um em Dnipro, a sudeste, esses dois últimos – que juntos têm o dobro da renda média das cidades do oeste – estavam insatisfeitos. A Ucrânia oriental é a região mais industrializada do país, concentrando-se nas cidades do leste mais da metade do potencial industrial nacional, além de fornecer pelo menos três quartos da renda do Estado. A insatisfação com a distribuição desigual do orçamento nacional somou-se à revolta com a deposição de Yanukovich, líder do Partido das Regiões – bastião da burguesia oriental ucraniana. O evidente intervencionismo ocidental – insuflando ainda mais o chauvinismo ucraniano contra os russos – parece ter desequilibrado de vez a balança entre UE e Rússia, da qual os partidos e lideranças ucranianas sempre buscaram tirar melhor proveito sem rompimentos bruscos (4). EUA, UE e Rússia antes negociavam no varejo com o governo de plantão em Kiev. Agora parece ser possível apenas comprar no atacado, tendo a Ucrânia que escolher um lado definitivamente. Na parte oeste do país, o adesionismo europeu hegemonizou as mobilizações massivas anti-corrupção – de caráter pequeno burguês, chamado Maidan – com o discurso salvacionista de que a entrada na UE livraria o país das garras da corrupção. O pânico moral anti-soviético dos anos 1990 e o anticomunismo bárbaro encontraram no chauvinismo ucraninano um sentimento anti-russo potente. A vanguarda política desse movimento só poderiam ser os grupos neonazistas com seu saudosismo do colaboracionismo com o exército hitlerista dos anos 1930. A insatisfação da burguesia oriental – que no sudeste produz mercadorias de relevância tecnológica como motores, satélites, aviões e equipamentos industriais, os quais não entram na UE, só podendo ser exportados para a Rússia e mercados asiáticos – e o fortalecimento da pressão cultural e linguística feita contra os russos étnicos do leste do país tomou forma ideológica no grosso da população como defesa étnica. O desdobrar disso vimos na guerra civil do Donbass, com o massacre feito pelo governo de Kiev, na formação das Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk, com suas milícias de tendências populares, pequeno burguesas independentistas e até de direitistas nacionalistas russos, os quais defendem a anexação ao governo de Moscou. Este último, evidentemente, não deixou de tirar proveito disso. Mesmo não reconhecendo a independência de início, subterraneamente forneceu algum armamento, negociou com as tendências direitistas do Donbass, enviando também seu grupo de guarda costas neonazistas – os mercenários do Grupo Wagner –, além de insuflar o chauvinismo russo, um arremedo do reacionário pan-eslavismo, fiel à Igreja – Ortodoxa russa –, família e pátria. Engana-se, portanto, aqueles que pensam que a Rússia tem algum sopro progressista para oferecer ao proletariado mundial. As tentativas de expansão de seus domínios, mesmo que em raros instantes tenha nos fornecido posições táticas favoráveis – como em algum momento aconteceu no Donbass –, ao fim, esmagam qualquer resquício de resistência proletária ou popular que se oponha a ela. Por toda a Europa, circulam notícias da ligação de Putin com o Aurora Dourada grego e a Frente Nacional Francesa. A bem da verdade, os choques entre Rússia e EUA poderiam gerar alguma oportunidade histórica revolucionária se estivéssemos diante de um proletariado pujante, reerguido após a derrota acachapante do fim do século XX. A atual quadra histórica põe a nós, marxistas, numa situação crítica. As posições assumidas – por intelectuais, quadros e organizações – quando não histriônicas, têm sido protocolares, vazias, óbvias ou, pior ainda, distorcem os fatos para que a realidade se adeque às formulações teóricas previamente concebidas. A situação da Ucrânia é a prova disso. Há um conflito aberto no país desde 2004, e, mesmo havendo veículos jornalísticos independentes comprometidos com a cobertura dos eventos, muito pouco se sabe sobre o que realmente ocorre por lá. Permanecemos apenas tateando no escuro, não só em relação à Ucrânia ou à Rússia, como em relação ao próprio solo concreto dos interesses concretos das classes sociais e de suas frações, da grande produção de mercadorias, seja nos EUA, na Europa, na Rússia ou na China. Falamos em ausência proletária não sob a perspectiva teórica de uma pretensa extinção da classe trabalhadora, mas sim da debilidade das lutas dessa classe contemporaneamente, o que é retroalimentado pela inexistência de uma posição teórica consistente – o que não significa que ela não exista esparsa e pontualmente – que sustente uma posição política de fato proletária, isso é, um posição que tenha, como fundamento, unicamente os interesses de classe do proletariado. NOTAS As exportações russas representam cerca de 20% do mercado bélico mundial, com grande destaque para aviões de combate, equipamentos antiaéreos, munição, além de helicópteros, equipamentos navais, veículos blindados leves e armas de fogo. A Rosoboronexport (empresa russa de exportação de armas) abastece Venezuela, Índia, alguns países vizinhos da Rússia, além de diversos países da África e Oriente Médio envolvidos em conflitos, bem como fornece munições aos EUA. Além disso, algo em torno de 7% das exportações russas são representadas por equipamentos e máquinas, como motores, reatores nucleares e automóveis. Com o início da atual guerra, o chanceler alemão Scholz admitiu que sem o abastecimento russo, “o suprimento de energia para geração de calor, mobilidade, abastecimento de eletricidade e a indústria não pode ser assegurado de outra forma". Nesse sentido, é notável o incômodo dos capitais norte-americanos, que sob o presidente Kennedy, nos anos 1960, impuseram através da OTAN um embargo às exportações de tubulações de gás feitas pela Alemanha Ocidental e com Reagan, na década de 1980, tentaram convencer diversas vezes os alemães a reduzirem o volume de importações russas. Atualmente, a construção do gasoduto Nord Stream 2 – o segundo que ligará a Rússia diretamente à Alemanha pelo mar Báltico – sofreu uma feroz oposição dos EUA, Inglaterra e Ucrânia. Mesmo reticente, o governo alemão suspendeu a inauguração do gasoduto como retaliação à Rússia pela guerra, mas só depois de forte pressão dos EUA. Biden busca agora novos fornecedores de gás e petróleo para a Europa. Durante o governo Putin, viu-se uma restrição ao ingresso de capitais estrangeiros no setor energético. Umas das famosas operações “moralizantes” de Putin contra alguns oligarcas foi a perseguição judicial e o confisco à fortuna de Khodorkovsky, ação que, segundo algumas fontes, teve um forte componente de combate à presença de capitais estrangeiros no setor, o que beneficiou também outros oligarcas ligados ao grupo de Putin – tributários de sua política de soberania nacional. Em 2012, o presidente prometeu que obrigaria a devolução daquilo que essa burguesia roubou durante o desmonte soviético – o que, obviamente, foi feito só em alguns casos. Nesse mesmo ano, também foram aplicadas políticas destinadas a pressionar os oligarcas a repatriar parte de seu capital depositado no exterior. Os rótulos de pró-ocidente e pró-Rússia na política ucraniana eram, até então, uma simplificação rasteira. Um exemplo disso é que, em princípio, laranjas (partidários de Yushchenko) e azuis (partidários de Yanukovich) se declaravam favoráveis ​​à incorporação na UE. Embora os laranjas tenham afirmado posições mais próximas do ocidente, talvez forçados pelo ambiente, eles sempre tentaram não prejudicar as relações com Moscou. Enquanto isso, os azuis, apesar de rejeitarem o ingresso na OTAN, também não romperam claramente os laços com essa Aliança. Assim, o projeto de Yanukovich, em suma, não era simplesmente pró-Rússia. Entre 2010 e o início de 2014 houveram as reaproximações com a UE, a manutenção da Ucrânia na associação – bastante hostil a Moscou – entre Geórgia, Azerbaijão e Moldávia (GUAM), além da não incorporação da Ucrânia na união aduaneira constituída pela Rússia, Bielorrússia e Cazaquistão.

  • 2021: Marcha o exército de famélicos na Estrada de Tijolos Amarelos

    Foto: José Medeiros / Agência O Globo E chegamos em novembro, o momento poderia ser de comemoração com os índices cada vez menores de contaminação – devido à vacinação – e com a proximidade das festas de final de ano, mas o clima é de incertezas. Com a alta dos preços de produtos básicos para a população, vimos, em progressão assustadora, a procura por restos de açougue – como carne de quinta categoria, pés de galinha, ossos bovinos e suínos –, culminando nas reviradas de lixo nacionalmente televisionadas feitas por pessoas em busca de restos de alimentos para preparar o que talvez seja a única refeição do dia de uma família. Neste contexto de crescimento exponencial da população em situação de insegurança alimentar, ainda nos deparamos com o fim do Bolsa Família, que, por determinação de Bolsonaro, será substituído pela política eleitoreira do Auxílio Brasil – programa social que ainda foi sequer planejado em termos concretos. Se falta comida, cinismo há de sobra. Como ficou comprovado na última semana, o objetivo do governo é, sob o argumento de atender aos pobres, romper o sacrossanto teto de gastos da burguesia e aumentar a farra de compra de apoio no Congresso. De brinde, Bolsonaro ganha um programa social para chamar de seu, desmontando parte da estrutura de assistência social criada por petistas e tucanos que, apesar de nunca ter tido como objetivo pôr fim à miséria, consolidou um projeto eficiente para sua administração. Por outro lado, a miséria também passou a ocupar grande parte da pauta dos jornalões da burguesia que fazem oposição ao governo. Evidentemente, o que lhes preocupa é o rompimento do teto de gastos. Até mesmo a intragável Vera Magalhães admitiu isso e passou o sermão em seus patrões, acusando-os de ter engolido todo tipo de ataque do presidente, e só se incomodarem com as ameaças ao teto. Bolsonaro recebeu o pior dos adjetivos do dialeto liberal: fura-teto. Consolidou-se também, de uma vez por todas, a decepção com Guedes, que prometia absoluta austeridade e “responsabilidade” fiscal. Tais vozes liberais, que passaram as últimas décadas vomitando o mais puro desprezo pelo povão, agora dizem estar preocupadas com o pão de cada dia. Nunca se viu a Folha de S. Paulo publicando tantos editoriais que expressassem tamanha preocupação com a miséria – como este, esse, aquele e também esse outro. O cinismo é tanto que, em todos os editoriais, a condição para arrefecer a pobreza é o “controle” fiscal, isto é, diminuir os gastos públicos. Como se não fosse bastante, em defesa do projeto burguês de ataque aos salários, o jornal paulista diz que a “economia prejudica resultado da correta reformulação da CLT aprovada há 4 anos”. Em palavras mais claras: “que o mundo padeça, mas salvem o arrocho salarial!”. Os séquitos da burocracia estatal precisam do voto popular e por isso estão preocupados com as barrigas roncando. Já os jornalões sabem que, muitas vezes, os interesses da burocracia do Estado burguês friccionam-se com os interesses imediatos da própria burguesia, que, perdida em seus dramas e objetivos mesquinhos, não tem demonstrado capacidade de traçar um projeto de dominação do capital mais eficiente e que descarte de uma vez por todas a imundice do bolsonarismo. Os porta-vozes do capital querem limpá-lo de sua própria sujeira Aos empregados, com necessidade de prover o sustento de si e de sua família, resta a submissão a jornadas de trabalho mais intensas e extensas, com um salário cada vez mais desvalorizado em termos reais. No entanto, como bem afirma o Faraó das vinte e duas pragas, é melhor ter um emprego sem direito algum que todos os direitos na fila do desemprego. Aos desempregados resta o desalento amargo da sarjeta. Sem condições de prover moradia, e já assolados pela situação de insegurança alimentar, os desabrigados aumentam progressivamente. Apesar das tentativas dos assim chamados especialistas das colunas econômicas de atribuir as causas desta conjuntura desastrosa à pandemia, estas circunstâncias estavam em franco processo de consolidação nos últimos anos. Não há, é claro, que subestimar os impactos do coronavírus no agravamento do processo, tampouco das medidas bolsonaristas; no entanto, o abismo da fome, bem como os recordes de demissão e de desemprego se remetem a momentos anteriores às condições pandêmicas. Trata-se da crise de 2015, a qual, diferentemente da “marolinha” de 2008, atinge o Brasil com a potência de um tsunami. A aliança petista entre capital e trabalho já não era mais suficiente para conter os estragos; a voracidade do capital é insaciável de tal modo que, nos momentos de retração do crescimento e da expansão, como o percebido após 2015, as políticas liberais de assistência social deixam de se apresentar como alternativa e a austeridade se coloca como palavra de ordem indiscutível. O moribundo capital industrial, incapaz de aumentar a produtividade com investimento em tecnologia, encapou não apenas uma batalha pelo arrocho salarial, como também migrou parte dos capitais para o setor financeiro. Para retomar a taxa de lucro, naquele momento em queda livre, era preciso cortar muitas das garantias que, se antes eram direitos fundamentais, agora não passam de entraves ao crescimento econômico. Nesta diretriz, aprova-se o teto de gastos públicos, a reforma trabalhista e a reforma previdenciária em sequência, ainda no governo Temer, deixando de joelhos a classe trabalhadora já mutilada pela crise e refém dos empregos cada vez mais precários e instáveis. O momento, como já apontamos, é de crise e não tem suas causas limitadas ao fatídico ano de 2021 ou à crise sanitária do coronavírus. Contrariamente aos arautos do politicismo, não cremos ser possível compreender a miséria generalizada simplesmente no âmbito da moral e da política, de um mercado totalizante e dotado de vontades próprias, nem meramente das ações da figura vil de Bolsonaro. De tal modo, é fundamental esboçar uma breve análise sobre as tendências econômicas que operam no presente e que, em última instância, coordenaram a caminhada da situação desesperadora de janeiro à miséria de novembro. Evidentemente, isso não significa que devemos descartar o papel da política e da administração política do capital como agentes ativos na realidade, no entanto, é preciso dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Um fator decisivo é o longo processo de crises globais operadas no modo de produção, marcadas principalmente pela queda da taxa de lucro. Seja pelo aumento do investimento em capital constante ou pela redução de capital variável empregado na produção, as taxas de lucro vêm caindo de maneira generalizada, comprovando a conhecida lei da queda tendencial da taxa de lucro (MARX, 2017, p.249-270). Ocorre, porém, que, tal como uma força física, vetores tanto a impulsionam, quanto a retardam ou a revertem: as chamadas “causas contra-arrestantes”. Tendo isto em vista, devemos compreender que três dessas causas se apresentam como saída por serem a opção racional – muito embora o capitalista individual não chegue a essa conclusão de forma planejada, mas por debruçar-se sobre seu lucro imediato – para reverter a crise decorrente da queda das taxas de lucro que se opera a nível global, inclusive no Brasil. Ainda que a massa dos lucros das empresas seja facilmente comprovada como ascendente, elas vêm há anos tentando retomar taxas que possibilitem o crescimento e desenvolvimento de seu capital. Operam, portanto, no escopo das forças contrárias à lei tendencial de queda dessas mesmas taxas, a compressão dos salários abaixo de seu valor (MARX, 2017, p.274) de maneira central nesse processo, amparada, em maior ou menor medida – por uma ou outra fração da burguesia – pelo aumento do grau de exploração do trabalho (MARX, 2017, p.271) e aumento do capital acionário (MARX, 2017, p.279). Comprova-se a execução dessas medidas contra-tendenciais tanto pelo rebaixamento do salário real, quanto pela queda do rendimento real médio do trabalho principal efetivo. No que tange ao rebaixamento dos salários, o êxito na implementação da carteira verde-amarela parece ser um importante indicador da tentativa de aumentar a exploração sobre a força de trabalho. Já em relação ao aumento do capital acionário, observa-se um movimento duplo e mistificador. Por um lado, o capital financeiro aparece enquanto uma via desesperada de ganhos mínimos para complemento e/ou garantia de renda por meio dos juros para os estratos mais elevados da classe trabalhadora e da pequena-burguesia – fenômeno demonstrado pelo crescente número registrado de pessoas físicas investindo no B3 em agosto desse ano. Por outro lado, há também o crescimento de investimentos no capital acionário por parte de diversos setores do grande capital – demonstrado pelo aumento em 13% do lucro líquido das empresas na bolsa no terceiro trimestre em relação ao mesmo período de 2020. Tais contratendências explicitadas são acompanhadas, no entanto, por uma quarta e decisiva causa contra-arrestante conhecida como superpopulação relativa (MARX, 2017, p.275-276). Essa se expressa na determinação de uma competição excessiva entre trabalhadores – resultando no exército de reserva – e na criação de novos ramos produtivos – os quais não se confirmam em nosso caso específico. Tal causa contra-arrestante é decisiva na medida em que opera, no presente momento, por via do aumento da competitividade entre os trabalhadores, força uma redução dos salários e, simultaneamente, um aumento no grau de exploração do trabalho. Segundo dados do Ministério da Economia, há um aparente crescimento das admissões. Entretanto, em primeiro lugar, fica evidente que tais vagas de trabalho são insuficientes para ocupar novamente a força de trabalho que foi jogada no olho da rua durante os surtos de demissão entre fevereiro e junho de 2020 e novembro de 2020 e fevereiro de 2021. Em segundo lugar, afirmamos ser aparente tal crescimento de empregos devido ao fato de os dados, nos quais se baseia o Ministério, considerarem apenas os empregos formais, esses mesmos postos de trabalho que encontram-se em constante ameaça de extinção em nossa economia. Os dados do IBGE – com menores distorções em relação aos números do Ministério da Economia – apresentam 20 milhões de brasileiros desempregados e “desalentados” sob uma taxa de desemprego de 14,1%. De outra parte, os dados mais rigorosos do ILAESE (2021, p.10) nos apontam um cenário ainda mais realista. Nesse mesmo período citado, somam-se cerca de 92,1 milhões de brasileiros sem emprego ou no subemprego – os quais compõem o exército industrial de reserva – e representam 43,65% da população total do país. Portanto, vemos que cresce timidamente o lucro em massa, mas sua taxa decresce. Enquanto isso, a fome, advinda do tumor capitalista, aumenta entre os trabalhadores. Não à toa, aproximam-se demasiadamente a porcentagem de desempregados e “desalentados” da porcentagem de famintos, sendo respectivamente 9,7% e 9% – com base na população atual estimada. Os trabalhadores ainda não entraram em cena na defesa de seus próprios interesses de classe. Pelo contrário, digladiam-se pelas sobras descartadas do amanhã, tornando-se ainda mais vulneráveis a qualquer contrato que lhes ofereça Mefistófeles. Não podem, no entanto, resolver seus problemas engrossando as fileiras de famélicos em busca de ossos. A única possibilidade é sublevarem-se contra as condições que causam sua miséria, de maneira que as crises e a taxa de lucro não sejam meramente revertidas, mas sim extintas. De toda sorte, essa solução não se encontra de modo algum no pleito de 2022, pois as alternativas eleitorais concretas nada mais propõem além da administração política desta crise. Quaisquer que sejam as cores em que se encontrem trajados os personagens, enquanto os trabalhadores não saírem da plateia, adentrando do palco até as coxias, nos resta apenas assistir ao julgamento de Veneza. Referências ILAESE. Anuário Estatístico do ILAESE: trabalho e exploração - o mapa da exploração no Brasil e no mundo. v 1, nº 03. São Paulo: ILAESE, 2021 MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política, Livro III: o processo global de produção. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

  • Os três discursos de Marx, de Maurice Blanchot

    Traduzido do francês por Eduardo Galeno. A publicação original, com o título de Lire Marx, é da revista Comité (nº1, octobre, 1968), lugar em que Blanchot publicou seus panfletos. Foi reeditada em 1971, integrando o livro L’Amité (Gallimard). Todas as notas, com exceção da terceira, são do tradutor. Em Marx, e sempre provindo de Marx, nós vemos assumir força e forma três tipos de discurso, todos os três necessários, separados e mais do que contrários: justapostos. O diferencial que os mantêm ligados constitui uma pluralidade de requisitos aos quais, após Marx, cada pessoa, falando, escrevendo, não deixa de se sentir obrigada, salvo ao se ver carente do todo. 1. — O primeiro desses discursos é direto, mas amplo. Falando nele, Marx emerge como um «escritor de pensamento», no sentido de que, surgido da tradição, [o discurso] se utiliza do logos filosófico¹, usando nomes maiores emprestados ou não de Hegel (não importa) e se desenvolve no momento da reflexão. Amplo, se toda a história do logos nele se reafirma; mas direto de registro duplo, porque não só ele tem algo a falar, mas o que ele diz é resposta, se inscreve na forma de respostas, essas respostas formalmente decisivas, dadas definitivas e que, introduzidas tais pela história, não podem tomar valor de verdade, a não ser no momento de suspensão ou de ruptura históricas. Dando resposta — a alienação, a primazia da necessidade, a história como processo da prática material, o homem total —, no entanto, ele deixa indeterminadas ou indecisas as questões às quais responde: a depender se o leitor de hoje ou o leitor de ontem formula diferentemente o que deveria acontecer em tal ausência de questão — preenchendo, assim, um vazio que deveria, antes e sempre, ser explícito —, esse discurso de Marx se interpreta tanto como humanismo, pense historicismo, tanto como ateísmo, anti-humanismo, pense niilismo. 2. — O segundo discurso é político: é breve e direto, mais que breve e mais que direto, porque ele colapsa toda fala. Ele não tem mais um sentido, mas um apelo, uma violência, uma decisão de quebramento. Ele não diz nada de modo próprio, ele é a urgência do que anuncia, ligado a uma impaciência e sempre excedente, pois o excesso é sua única medida: chamando, assim, à luta e mesmo (o que nos apressamos a esquecer) rogando o «terror revolucionário»², exigindo «a revolução permanente» e sempre designando a revolução não como uma necessidade a prazo, mas como iminência, porque é característica da revolução não permitir atraso, se ela se abre e atravessa o tempo, se doando à vida como exigência sempre presente³. 3. — O terceiro discurso é o discurso indireto (o mais amplo, portanto) da exposição científica. Em relação a isso, Marx é louvado e reconhecido pelos outros representantes do saber. Ele é, então, homem de ciência, responde à ética do estudioso, aceita se submeter a qualquer revisão crítica. É o Marx que dá como máxima: de omnibus dubitandum⁴, e declara: «Chamo "vil" um homem que procura submeter a ciência a interesses que lhe são estranhos e exteriores». Assim, O capital é uma obra essencialmente subversiva. Ela é mais porque inclui, sem formular muito, uma maneira de pensar teórica que subverte a própria ideia de ciência e menos porque levaria, pelos caminhos da objetividade científica, à necessária consequência da revolução. Nem a ciência nem o pensamento saem, em efeito, intactos do trabalho de Marx, e isso no significado mais forte, na medida em que a ciência se designa aí como transformação radical de si mesma, teoria de uma mutação sempre em jogo na prática, bem como, dentro dessa prática, mutação sempre teórica. Não desenvolvamos mais aqui essas observações. O exemplo de Marx nos ajuda a compreender que o discurso da escrita, discurso de contestação incessante, deve, constantemente, se desenvolver e explodir em múltiplas formas. O discurso comunista⁵ é sempre tácito e violento, político e científico, direto, indireto, total e fragmentário, amplo e quase instantâneo. Marx não vive comodamente com essa pluralidade de linguagens que sempre se colidem e se disjuntam nele. Mesmo se essas linguagens pareçam convergir ao mesmo fim, elas não poderiam ser retraduzidas uma na outra, e sua heterogeneidade, a separação ou a distância que as descentram, as tornam não coevas e tais que, produzindo um efeito de distorção irredutível, obrigam aqueles que têm que sustentar sua leitura (a prática) a se submeter a uma incessante remodelação. * A palavra «ciência» volta a ser palavra-chave. Vamos admitir. Mas lembremos que, se há ciências, ainda não há ciência, porque a cientificidade da ciência permanece sempre dependente da ideologia, uma ideologia que nenhuma ciência particular, mesmo a ciência humana, não poderia reduzir hoje, e, por outro lado, recordemos que nenhum escritor, mesmo marxista, poderia remeter a escrita a um saber, pois a literatura (a exigência de escrever, quando toma a seu cargo todas as forças e formas de dissolução, de transformação) não se torna ciência a não ser pelo mesmo movimento que a ciência se transforma, por sua vez, em literatura, discurso inscrito, aquilo que cai sempre no «le jeu insensé d’écrire»⁶. NOTAS: ¹ Blanchot parece utilizar, se não o mesmo, uma parecida ideia de logos que existe em Heráclito. "O pensamento é uma qualidade própria da alma, que a si mesma se multiplica". ² O termo "terror" se comporta como excessivo, que se utiliza de uma ação excessivamente para pôr em cheque dada coisa. Um exemplo pode ser dito em Sade, que deslegitimou, através da escrita, a sociedade fundamentada em valores do sistema dominante. "Le refus est absolu, catégorique" [A recusa é absoluta, categórica] (Blanchot, 1958). ³ Isso foi evidente, e de forma notável, no Maio de 68. ⁴ 'Duvidar de tudo'. ⁵ Comunismo, para Blanchot, vai além do mero político (apesar de estar imbricado diretamente em quaisquer ações e ideias que sejam referentes ao significante). ⁶ Blanchot se apropria de uma expressão de Stéphane Mallarmé, poeta francês do XIX. Sobre as figurações da escrita, recomendo ver uma nota de Walter Benjamin, Vereidigter Bücherrevisor, feita em 1926. O texto se encontra nas Obras escolhidas II – Rua de mão única, da Brasiliense, e no livro de antologia poética Mallarmé, da Perspectiva.

  • Através das fissuras conjunturais - Os limites do nosso momento

    Foto: Marcelo Camargo - Agência Brasil I. Entre os muitos acontecimentos das últimas décadas na conjuntura brasileira, o mais notável foi a disputa que se deu entre as frações da burguesia por fatias maiores na apropriação do lucro, a qual — somada à fratura política das eleições de 2014 — encontrou um denominador comum na derrubada do governo de Dilma em 2016. Se por um lado a política conciliatória adotada pelos governos petistas agradou grande parte da burguesia por um determinado período, por outro, ela se revelou insuficiente para solucionar a exponencial queda da taxa dos lucros que se desenhava naquele período. A necessidade de acelerar a aplicação de medidas contratendenciais — redução dos salários, ampliação e intensificação das jornadas de trabalho — para recompor rapidamente os rendimentos do capital unificou a burguesia no Brasil em torno de uma nova saída. Não por outra razão, deu-se a opção por um governo transicional chefiado por Temer, o qual demonstrou-se mais eficiente na aprovação da contrarreforma trabalhista. Dessa dinâmica, emergiu o fenômeno eleitoral bolsonarista. As forças invocadas pelo grande capital e por seus jornalões, contra um possível retorno do Partido dos Trabalhadores, mobilizaram-se por meio do pânico moral anticorrupção. A ele se somou o filistinismo da pequena burguesia e das camadas médias, bem como o pavor cristão contra a “destruição da família”. Bolsonaro logo angariou o apoio dos ressentidos e gananciosos generais, do pequeno empresariado frustrado, de amplas camadas médias do interior do país — fiéis guardiões da mais pura podridão nacional — e de parcelas do proletariado. Mas, para muitos setores capitalistas, a aposta em Bolsonaro parecia incerta. No entanto, diante de seu crescimento eleitoral, o grande capital precisou abandonar o seu candidato preferido, Geraldo Alckmin (PSDB), e embarcou no balaio de gato bolsonarista, ao qual também se juntou, agora oficialmente, o lava-jatismo, que viu ali uma chance de se projetar para o centro da cena política. Bolsonaro parece ter se dado conta de que venceria no meio do processo eleitoral. De improviso, tentou apagar seus crimes passados e montou um governo de notáveis idiotas, trambiqueiros e oportunistas. Com sua explosiva popularidade, sobreviveu fazendo o que sabe fazer de melhor: provocar, conspirar e ameaçar, além de profissionalizar a disseminação massiva de mentiras. Seguiu tensionando a institucionalidade, galgando posições e colocando sua tropa de choque na rua aos domingos. Fidelizando sua base, promoveu um rompimento, mesmo que aparente, com o cinismo republicano e liberal que dominou as últimas décadas da política nacional. A vitória eleitoral do capitão também colocou em curso um programa econômico liberal ainda mais incisivo contra as poucas conquistas que restaram à classe trabalhadora. Mas as fissuras da conjuntura se intensificaram. As diferentes facções da burguesia brasileira reagiram de forma não esperada ao plano econômico. Ainda em 2020, vimos as desavenças dos capitalistas nas páginas dos jornalões paulistas. De um lado, a Coalizão Indústria, chamada de “Fiesp do B” — responsável por 45% da produção industrial brasileira —, reunia-se diuturnamente com Paulo Guedes. Cobrava a conta por ter apoiado Bolsonaro na véspera das eleições. No Estado de S. Paulo, seus serviçais criticavam abertamente os resultados econômicos e alardeavam a chamada “desindustrialização” do país, aumentando a pressão sobre a trupe de economistas liberais do governo. Do outro lado, Paulo Skaf, um puxa-saco profissional e presidente da Fiesp, declarava seu apoio irrestrito a Bolsonaro, demonstrando que, na prática, para ele, outros segmentos do capital devem ser priorizados, mesmo que isso implique em uma eutanásia da indústria no país. Historicamente assim constituída, os segmentos da burguesia brasileira vão se movendo pelos interesses mais imediatos e mesquinhos. Sem a tranquilidade dos vultosos lucros dos primeiros mandatos petistas, mesmo os setores mais poderosos do capital parecem ter grande dificuldade em estabelecer uma saída política comum — tal como foi o impedimento de Dilma. Mesmo o objetivo geral de rebaixar os salários e saquear as finanças estatais parece não ter ainda uma direção clara e bem articulada. Apesar de tais tensões, Bolsonaro não desistiu de criar condições para uma ruptura. A crise de março de 2020, deflagrada contra o STF — que havia barrado a interferência de Bolsonaro na Polícia Federal e anulado as condenações de Lula —, escalou diante das ameaças golpistas. A crise só foi resolvida quando generais, parlamentares e ministros do Supremo pactuaram. Um grande acordo prometia pacificar o país e dar prosseguimento às reformas tão exigidas pelo capital. Entretanto, qualquer pacto iria para o ralo assim que Bolsonaro estivesse, ao mesmo tempo, sob pressão e seguro para ameaçar. O STF, então, seguiu precavendo-se, cercando o presidente de inquéritos contra seus filhos e apoiadores. É em meio a este turbilhão que a pandemia cai como um tijolo na cabeça de Jair. Não por outra razão, recusou-se a tomar qualquer atitude de contenção da calamidade. Negou veementemente a gravidade da situação. Defendeu a "imunidade de rebanho” — enquanto tinha plena consciência de seus resultados nefastos — como caminho mais rápido para a retomada da normalidade e recomendou o uso de medicamentos ineficazes para encorajar os trabalhadores a permanecerem na rotina. Importantes setores do grande capital, baseados na experiência de outros países, apoiavam timidamente medidas de restrição sanitárias com a certeza de que poderiam sobreviver até tudo voltar ao normal. Entretanto, diferentemente das burguesias dos países centrais, não moveram uma palha para que o governo estabelecesse ordem ao caos; afinal, trata-se de uma classe dominante radicalmente indigente e oportunista que sabe tirar proveito das situações sociais mais degradantes. Já os médios e pequenos comerciantes, estes insurgiram-se contra as medidas de restrição adotadas por alguns governadores e prefeitos. Essa pequena burguesia irada e militante — legítima vanguarda do bolsonarismo — recebeu intensa solidariedade do presidente, o qual apontou tais medidas como causa principal da ruína dessa classe. A insistência na cloroquina milagrosa — mesmo contra todas as evidências — foi a única possibilidade de sustentar a não adoção das restrições. Assim, enquanto a grande burguesia, em silêncio, esperava o pior passar de dentro de suas mansões, a turba verde-amarelista fazia suas carreatas. Bolsonaro ganhou força com todo esse clima. Tendo as ruas para si, o presidente diariamente criava aglomerações, desafiava as recomendações sanitárias e ameaçava uma intervenção federal — e militar — nos estados sob a justificativa da garantia “da lei e da ordem” contra o isolamento social. Os elementos assim narrados podem aparentar certa aleatoriedade, parecem carecer de um sentido mais geral que lhes forneça uma explicação sólida. No entanto, não se pode crer, como muito se diz por aí, que o que vivemos hoje é resultado de uma guerra de “narrativas”, de um engano ao qual o povo foi levado pela máquina de “fake news”, ou por mera disposição de um capitão alucinado que quer destruir a democracia. Não basta dizer que há uma crise de representatividade ou que as democracias estão morrendo. A beira do abismo a qual chegamos no Brasil não pode ser explicada por simples aforismos sociologistas ou culturalistas. Esse tipo de ideia mistifica as verdadeiras razões do fenômeno social. Devemos rastrear os motivos de tais expressões sociais nas formas concretas do modo de viver dos seres humanos. Nossa busca deve ir às raízes não apenas da forma política, mas também das principais ideias que vigoram em nossos dias, as quais erguem-se sobre as condições em que as classes sociais, suas frações e grupos, produzem e reproduzem nossa atual sociedade capitalista. Desse modo, uma rápida olhada para esta condição pode fornecer importantes pistas. Se começarmos pelo proletariado brasileiro, o veremos, enquanto classe organizada, praticamente alheio aos conflitos sociais atuais. Trata-se de uma classe trabalhadora em estado anêmico, jogada à ignorância e à voracidade do capital, com salários cada vez menores, completamente derrotada ideologicamente e com suas organizações sindicais capturadas pela burocracia operária. De modo mais geral, a derrota mundial do proletariado no último século ganhou, em solo nacional, reforço do desarme ideológico, levado a cabo pelo Partido dos Trabalhadores — o último grande partido dirigente da classe trabalhadora brasileira. Sem uma direção política, grande parte desses trabalhadores, vendo suas condições de vida deterioradas diante da crise econômica, seguiu as forças do capital e apoiou Bolsonaro em sua eleição. Mas, agora, deparam-se com as contradições do governo e indignam-se. Todavia, mesmo que esta revolta exista no plano individual, na atual conjuntura, dificilmente toma forma coletiva, consciente e com capacidade de influir verdadeiramente na vida nacional. A esse respeito, não se pode compreender tais fenômenos — que as ciências políticas têm chamado “crise da democracia”, “onda conservadora” etc. — sem conhecer alguns elementos históricos. Nesse sentido, é fundamental ter em conta que, desde meados do século XIX, a burguesia e seus ideólogos entraram em um paulatino abandono das ideias que os ajudaram a derrotar o velho mundo feudal. Consolidando-se como classe dominante, a burguesia não somente apontou suas armas contra o proletariado nascente, como também todo um itinerário ideológico decadente e mistificador passou a dominar as diversas áreas do conhecimento humano, o qual concorre, direta ou indiretamente, para uma apologia da ordem do capital. Certos ideais iluministas — liberdade, igualdade, democracia — tornaram-se a letra morta das leis, prevalecendo o terror das ditaduras. O proletariado, portanto, é colocado objetivamente — isto é, mesmo que suas lideranças não tivessem plena consciência disso — na trincheira oposta, contra todo o ideário reacionário e irracionalista da burguesia. Como Rosa Luxemburgo afirmava em 1900, “o movimento operário socialista é, atualmente, o único sustentáculo da democracia, não existindo nenhum outro” e, por isso, “renunciar à luta pelo socialismo é renunciar simultaneamente ao movimento operário e à própria democracia”. Foi o movimento do proletariado em luta por sua emancipação, pela superação da sociedade capitalista — inclusive de sua forma política democrática burguesa — que constantemente emparedou as alternativas autocráticas que o capital impôs à própria democracia liberal burguesa. Não é coincidência que a propaganda da burguesia, desde o século XIX, tenha assumido a oposição entre comunismo e capitalismo como sendo uma oposição entre “ditadura socialista” e democracia liberal. Essa foi a interpretação majoritária dada à derrota do socialismo no século XX. Entretanto, como podemos ver, a cantilena da vitória do “mundo livre” capitalista dos anos 1990 e 2000 é negada a cada dia pela própria realidade. O capital é incapaz de suportar por muito tempo sua própria democracia. Novamente no plano mais restrito de nossa conjuntura, a questão sobre a pandemia — que, na verdade, diz respeito muito mais a problemas econômicos que tiveram como gatilho a crise sanitária — foi engolfada pela perspectiva da pequena burguesia progressista, que resumiu o problema a um mero preceito moral, a uma conduta individual de caráter dualista: ficar ou não em casa, usar ou não máscaras, seguir ou não às recomendações da OMS. Como resposta e sob a mesma lógica dual — mas do lado oposto —, Bolsonaro, não podendo recuar da defesa que fez da “imunidade de rebanho”, também colocou-se contra a vacina e fez tudo o que podia para evitá-la. Logo, o embate tomou a forma de ciência versus “negacionismo”. A ala esquerda das classes médias, que até então — influenciada pelo modismo universitário — brincava de dizer que a ciência é uma “invenção européia” que destruía os “diversos saberes”, assustou-se diante do monstro irracionalista que ajudou a criar. De repente, o progressismo pequeno burguês tomou para si uma defesa tardia e abstrata da ciência. E assim, diante dessa esquerda que abandonou a razão crítica e abraçou a face “progressista” do irracionalismo burguês — as tendências chamadas pós-modernas —, coube aos fanfarrões da velha pilantragem republicana, da estirpe de Renan Calheiros, se autoproclamarem defensores da “razão”, da “civilidade” e da “vida”. Sobre essa imbricada e visceral luta de interesses de classes, deita uma densa névoa que reduz o debate a termos duais, simplórios e falsamente opostos, como “ciência” versus “negacionismo”, “democracia” versus “ditadura”. O governo, gerente dessa barafunda que ajudou a criar, agora procura equilibrar-se entre os interesses das classes sociais, profundamente divergentes, os quais assumem um caráter ainda mais contraditório em uma conjuntura tão adversa. Enquanto isso, os liberais — principalmente os tais democratas da Rede Globo, da Folha e do Estadão — empurram goela abaixo da “opinião pública”, como se fosse um consenso, a mentira de que as reformas — contra os trabalhadores — e a “responsabilidade” fiscal, por meio do teto de gastos — austeridade contra os famintos —, são boas para todos. II. E assim foram se arrastando os meses. Sem um isolamento social relevante, as taxas de contaminação e de mortes pelo vírus atingiram cifras astronômicas. Mesmo nas fases mais agudas da pandemia, não houve nenhuma posição relevante em defesa de greves sanitárias, manutenção de empregos e salários ou esforço por parte das centrais sindicais para garantir as medidas de segurança. Dessa forma, as altas taxas de contaminação rapidamente se naturalizaram no cotidiano do povo. Em janeiro de 2021, a Coalizão Indústria publicou um manifesto pedindo por “Reforma Já”. A exigência é a redução do tal “Custo Brasil”, o que significaria uma desoneração tributária sobre a produção, a melhoria da infraestrutura do país, além de mais uma nova rodada de ataques aos direitos trabalhistas, mais centralmente sobre a Justiça do Trabalho, a qual, segundo o patronato, tem criado grande insegurança jurídica no mercado de trabalho. O ministro Paulo Guedes, buscando acalmar os ânimos da indústria, prometeu que não faria uma abertura radical do mercado interno — como seus chicago boys mais fervorosos alardeavam — sem antes proteger os industriais brasileiros. Para o deleite da moribunda indústria, o ministro cunhou a famosa frase: “somos liberais, mas não somos trouxas”. Em reunião com o ministro, o presidente da Coalizão, Marco Polo de Mello, foi bem claro ao dizer que a pauta central e urgente é a reforma tributária. Guedes prometeu que ela aconteceria. Com o abrandamento da segunda onda do vírus, o grande capital comemorou que os índices econômicos não foram tão catastróficos como imaginaram. Em julho de 2021, Marco Pollo diz que todos eram céticos em relação à famosa “recuperação em V” de Guedes, mas acredita que ela realmente veio. O capitalista rasgou elogios às medidas governamentais relacionadas ao crédito e ao “capital / trabalho”, o que significa que as leis de arrocho salarial — como a carteira verde-amarela e o plano emergencial — funcionaram para o patronato. O chefe industrial também declarou que acredita na dedicação do Congresso e do governo em realizar uma profunda reforma tributária e manter o teto de gastos. Ao que parece, industriais e governo retomaram sua lua-de-mel. No mesmo sentido, os bancos pareciam relativamente satisfeitos, apontando como central a reforma administrativa, as privatizações e o refreamento da dívida pública — ameaçada pelos gastos do governo durante a pandemia. Até a metade do ano de 2021, os banqueiros pareciam plenamente confiantes de que Guedes respeitaria o teto de gastos. Em relação à política propriamente dita, nos primeiros meses de 2021 Bolsonaro já havia tomado as rédeas do parlamento. Para tentar manter sua promessa de não lotear cargos e ministérios de seu governo, o presidente criou um “orçamento paralelo” para distribuir emendas adicionais àqueles que fossem fiéis ao governo. Foram despejados R$ 3 bilhões no parlamento através de listas que contém todo tipo de falcatrua. Para os gestores do capital, porém, essas cifras são “café pequeno”. Em julho foi nomeado para a Casa Civil, ministério fundamental de qualquer governo, um figurão da fisiologia parlamentar — e de quebra, um típico direitista apaixonado por Lula —, o senador Ciro Nogueira (PP-PI). Bolsonaro chancela, assim, sua simbiose definitiva com o chamado Centrão — aglomerado de partidos de direita sustentados pelo clientelismo — em troca de uma segura base de apoio no parlamento. A essa altura, as vozes liberais viam os santos de seu altar serem destruídos um a um. Primeiro — para esconder sua condescendência com a eleição do capitão — haviam dito que as instituições seriam uma barreira às aventuras golpistas. Mas a cada arrobo de Bolsonaro, as tais instituições respondiam com suas míseras notas de repúdio. A próxima aposta era na moderação dos militares. Ditos técnicos e responsáveis, os generais, entretanto, mostraram ter muito em comum com os interesses do presidente, cedendo cotidianamente aos seus caprichos. A última boia de salvação era Paulo Guedes. Porém, a defesa do ministro tem sido cada vez mais difícil depois da debandada de sua trupe de economistas liberais do governo e da comprovada incapacidade de acelerar as reformas exigidas pelo capital. Na sequência, a agitação de Bolsonaro para o segundo semestre de 2021 baseou-se na desconfiança das urnas eletrônicas. Com essa pauta, ele cava a possibilidade de questionar o resultado eleitoral de 2022, colocando também os ministros do STF, com destaque para Alexandre de Moraes, como alvo novamente. Mesmo com a iminente derrota do projeto de voto impresso, o sabujo Arthur Lira (PP-AL) cedeu à vontade do presidente e colocou a proposta em votação na Câmara. O ponto de Bolsonaro, aqui, é engrossar sua versão da história de que ele está de mãos atadas para fazer as mudanças que deseja, alimentando a paranóia de que há interesses misteriosos e escusos que querem manipular a eleição. Lira, como um dos maiores beneficiários do “orçamento paralelo”, além de agradar seu chefe, aproveitou para jogar no tabuleiro uma antiga proposta de mudança no sistema político. Com apoio dos jornalistas liberais, requentou a conversa mole de instalar no país um modelo semi-presidencialista ou parlamentarista. A burguesia parece sacar da cartola essa velha ideia sempre que vê seus interesses emperrados pelas disputas mesquinhas de congressistas e burocratas. Em primeiro lugar, a mudança neutralizaria o peso que tem o voto popular no presidente da República. A alteração evitaria que os chamados outsiders peguem o grande capital de surpresa nas eleições, como foi com Bolsonaro. Ao mesmo tempo, inviabilizaria candidatos que contam com a desconfiança de setores da burguesia, mas que possuem um apoio popular capaz de elegê-los, tal como é o caso da candidatura de Lula para 2022. Uma reforma desse nível também diminuiria de vez o número de partidos — tal como tem sido feito através das pequenas reformas eleitorais nos últimos anos —, centralizando a disputa e reduzindo o clientelismo interiorano, reminiscência de um período em que a gestão do Estado era, predominantemente, um pacto entre as frações industriais e agrárias da classe dominante. Tudo isso garantiria ao capital maior agilidade na aprovação de projetos no parlamento e um controle eleitoral ainda maior, principalmente sobre o chefe de governo. A proposta, porém, é sempre muito impopular e foi suplantada pelas urgências da conjuntura. Mas não ficaríamos surpresos se o assunto for retomado nos próximos anos, com toda a força, numa grande campanha dos jornalões, instituições patronais e institutos liberais. III. A proximidade do 7 de setembro elevou a temperatura. O STF manteve a pressão sobre Bolsonaro e seus filhos — tendo como alvo as óbvias bandidagens da família. O presidente então agita suas bases e suscita mais uma possibilidade golpista. A segurança de Bolsonaro está, justamente, no fato de Arthur Lira comandar a Câmara. Como foi bem pago pelo palácio do planalto, Lira, cinicamente, dizia não ver possibilidade de golpe. A Febraban e os setores de ponta da agroexportação, por sua vez, parecem ter sido as frações capitalistas mais incisivas em pedir a pacificação política, talvez por serem os que mais tinham algo a perder com a instabilidade das finanças estrangeiras. Já Paulo Skaf, presidente da Fiesp, articulou um manifesto pelo "equilíbrio entre os poderes”, o qual não citava nem mesmo o nome de Bolsonaro — o verdadeiro causador do caos. Como perfeito oportunista que é, Skaf, após conversar com Arthur Lira, adiou o lançamento para depois do dia 7, o que anulou a pressão do manifesto dos industriais paulistas sobre o presidente. Já a Coalizão Indústria e a Confederação Nacional das Indústrias mantiveram absoluto silêncio. As manifestações foram significativas, apesar de não terem atendido às expectativas de Bolsonaro. A pequena burguesia reacionária e o lumpesinato encheram as ruas de Brasília e de São Paulo, demonstrando grande hostilidade ao STF — eleito inimigo número um do presidente no momento. Quem conhece seus delírios por ordem, por segurança e contra o comunismo, sabe que o que a pequena-burguesia verdadeiramente deseja é liberdade para tornar o Brasil um inferno ainda pior. Pedindo por um golpe, a palavra de ordem de seu setor verde-amarelista foi “Liberdade!”. Liberdade para que a polícia militar trucide ainda mais meninos negros! Liberdade para estender a jornada de trabalho da sua meia-dúzia de funcionários, arrancar até a última gota de sangue! Mas dificilmente tal liberdade irá driblar sua falência. A pequena burguesia reacionária se agarra a Bolsonaro como tábua de salvação. Sem possibilidade de conseguir mais crédito, endividada e vendo o consumo decair no país, mesmo sendo enganada pelo presidente, não lhe resta outra saída política. A preocupação dos governadores em relação à insubordinação das polícias militares, bem como à presença de policiais nas manifestações, parecem atestar um relevante apoio a Bolsonaro dentro das corporações. Foi nítida também a tensão que tomou o STF e o Senado com as possíveis consequências do ato. Esse elemento é fundamental de se ter em conta. Mesmo que consideremos Bolsonaro um bravateiro, a preocupação entre os poderes da República não pode ser ignorada, pois é indício da real possibilidade de o presidente dispor de meios suficientes para fazer algum tipo de estrago. Figurões da política, como os senadores Omar Aziz (PSD-AM) e Humberto Costa (PT-PE) afirmam que, de fato, Bolsonaro buscava uma ruptura, mas algo frustrou seus planos no dia 7. O elemento que garantiria o poder da força física a Bolsonaro seriam os militares. Os generais, com exceção de Braga Netto, não estavam presentes nas manifestações, o que indica duas possibilidades. Ou buscaram manter — nessa corda bamba em que vivem — certa independência do capitão, ou ficaram na alcova, preparados para a retaguarda de um golpe tentado pelo seu chefe e a turba do verde-amarelismo. Entretanto, ultrapassar a sugestão dessas hipóteses seria mero exercício de adivinhação. Os porta-vozes do liberalismo, que contam com reacionários da estirpe de Vera Magalhães e Merval Pereira, subiram o tom contra o presidente. Eles criticam não apenas a gestão da pandemia e as ameaças golpistas, mas principalmente a lentidão da implementação do programa liberal. Toda semana anunciam um desembarque empresarial do governo. Mas tais escribas do capital parecem estar mais incomodados com Bolsonaro do que o próprio capital. A grande burguesia estava esperançosa com os últimos meses de “recuperação em V” da economia e conservava a expectativa de que as reformas administrativa e tributária viriam logo. Mas com a aproximação do fim de 2021 e sendo 2022 um ano eleitoral, a aprovação de tais reformas ainda neste mandato torna-se altamente questionável. Assim, por um lado, temos que o rompimento do silêncio histórico da Febraban acerca de eventos políticos — através de seu manifesto pela pacificação entre os poderes — parece corresponder muito mais a um ato de pressão dos banqueiros visando à efetivação das medidas econômicas — as quais a instabilidade criada de Bolsonaro ameaça — do que propriamente o medo ou repúdio a um golpe. Por outro, o silêncio conivente — excetuando algumas tímidas manifestações — dos industriais, só pode ser compreendido tendo em conta que estamos tratando de um setor hoje debilitado e historicamente dependente das políticas do governo em exercício. É verdade que a imagem imbecilizada de Bolsonaro parece incomodar grande parte da burguesia e que suas declarações trazem dificuldades — como nos negócios com o capitalismo “verde” europeu. Mas isso não quer dizer que o projeto bolsonarista seja de todo ruim para o grande capital. Descartando a figura do capitão, há muitos negócios que poderiam ser resolvidos numa dobradinha entre empresários e generais. Devemos, portanto, reter uma ideia: nunca a saída autocrática — mesmo que não seja através das manobras clássicas e cenográficas com tanques — está descartada para a burguesia brasileira. Se ela chegar à conclusão de que a forma política atual do Estado brasileiro atravanca e coloca em risco seus negócios, mesmo que não exista nenhuma ameaça revolucionária dos trabalhadores, ela estará disposta a dilapidar a nossa já precária estrutura institucional. A tolerância a tudo que Bolsonaro fez até aqui é sintomática. É cada vez mais evidente que seu governo ainda existe, mesmo com todo o caos e ineficiência, porque ele facilita — ou, ao menos, não atrapalha — o capital em seu objetivo de aumentar os rendimentos por meio da intensificação da exploração sobre os trabalhadores. Findadas as manifestações, na qual Bolsonaro dizia estar dando o “último aviso” ao STF, o presidente assumiu o silêncio. Dois dias depois, em um cavalo de pau, emitiu um comunicado oficial — escrito pelo cadáver político de Michel Temer — em que pede desculpas e promete paz. Muitos acreditam que uma mudança tão drástica decorre do medo que tomou Bolsonaro após não ter atingido seu objetivo de criar o caos completo com as manifestações. Tendo ou não o objetivo de causar uma ruptura institucional, tal movimento não fugiria do roteiro original do governo. Tanto Bolsonaro quanto o generalato — que têm planos diferentes, mas seguem se ajudando mutuamente — atuam por meio das chamadas “aproximações sucessivas”, citadas abertamente por Hamilton Mourão ainda em 2017. A manobra militar se dá a partir do lento avanço da tropa, testando as possibilidades, progredindo dois ou três passos e fazendo o menor recuo possível quando necessário. Usando as margens de manobra disponíveis, de modo que o alvo não perceba, a tropa ganha terreno a cada investida, sem nunca ter que recuar totalmente, até dominar o inimigo. Mas dificilmente poderíamos responder se haverá ou não uma tentativa de golpe no Brasil. Essa coalizão de vagabundos profissionais que constitui o governo tem muitos interesses imbricados, tudo em uma conjuntura interna e externa volátil e adversa. Os generais conquistaram um local de destaque que tanto sonhavam desde o fim de sua ditadura. Mas, ao mesmo tempo, vão se desgastando com o escarcéu que o governo causa. Se buscavam fortalecer seus vínculos com o empresariado, a administração desastrosa da pandemia e a leniência com a instabilidade gerada por Bolsonaro dificultam as coisas. O certo é que os gorilas fardados não parecem estar dispostos a abrir mão dos benefícios alcançados — como o aumento de seus vencimentos, do orçamento militar e do controle político sobre a Amazônia. A possível eleição de Lula em 2022 acirra ainda mais os ânimos, já que até generais não bolsonaristas sinalizam que não aceitariam tal resultado. Contamos também com um Congresso que não hesitaria em vender suas convicções democráticas por mais emendas parlamentares. No chamado Centrão não há nada que não possa ser comprado. O que pesa do outro lado da balança é a chegada do ano eleitoral de 2022, com uma provável derrota de Bolsonaro. Isso tende a precipitar um desembarque dos parlamentares do atual governo, mesmo que seja nos bastidores, para costurar uma aliança com candidatos mais competitivos. Mas é preciso atenção. Em um ano, muitas coisas acontecem. Em meio a esse caldeirão de desgraças, não podemos esquecer o papel do judiciário como protagonista da luta contra a “velha política”, o que tomou forma mais acabada com a Lava-Jato. É verdade que essa pauta foi capturada por Bolsonaro nas eleições de 2018 e que Moro se desgastou, tanto quando entrou, quanto quando saiu do governo. Não se pode, entretanto, dar como morta a sanha dos togados por dirigir a República, desejo que circula inclusive entre alguns ministros do STF. Por fim, o elemento Bolsonaro também é importante ser considerado. Sua situação é crítica e o que resguarda ele e sua família são, no fundo, os seus cargos eletivos. Há mais do que provas de seus crimes passados. É nítido também, desde o início, que ele planejou a tal “imunidade de rebanho" com um bando de médicos e empresários canalhas. O próprio Bolsonaro tem consciência dos riscos que corre e, por isso, declara que só há três destinos para ele: morrer, ser preso ou vencer. Sabemos que num contexto de derrota eleitoral, somado ao isolamento político que ele sempre se impôs, o destino mais provável seria a prisão. Entretanto, ele diz que a cadeia está fora de cogitação, o que nos leva a imaginar que na hora decisiva, após confirmada sua derrota eleitoral, ou qualquer outro evento que ameace a proteção que o cargo lhe dá, ele convocará sua base, a mesma dos atos do dia 7 — talvez acrescida de policiais insubordinados, milicianos e caçadores de javaporco —, para uma batalha campal. O principal de toda essa questão é que o golpe figura como hipótese na vida nacional. Sua menção já não espanta mais ninguém. Surgiram até mesmo justificativas legais para uma ruptura, tal como a ideia de que as Forças Armadas poderiam figurar como “poder moderador” baseadas no artigo 142 da Constituição de 1988 — como defende o iminente crápula Ives Gandra. O ambiente está contaminado, Bolsonaro declara a possibilidade semanalmente no seu cercadinho e as consciências mais simplórias vão se familiarizando com a ideia. Após três décadas do fim da última ditadura, há agora muito espaço e muitas possibilidades para que diversos atores possam articular, combinar, conspirar e até iniciar, discretamente, um golpe — que inclua ou não o próprio Bolsonaro. IV. O que realmente parece preocupar o capital e seus serviçais atualmente é o respeito ao teto de gastos. A grande burguesia exige que o governo honre seu compromisso em não desrespeitar a lei que ela tanto lutou para impor. A principal ameaça vem de um possível “bolsa família turbinado” e de mais uma rodada de auxílio temporário para as famílias atingidas pelo caos sanitário, medidas que Bolsonaro e o Congresso julgam fundamentais para suas reeleições. Afinal, a explosão do desemprego e da miséria elevaram a pressão sobre o governo e o parlamento. Somando também o auxílio financeiro do início da pandemia, o grande capital olha assustado para o “endividamento” do Estado. Paulo Guedes — para quem “fura teto” é um xingamento — vê sua credibilidade ainda mais questionada pelo jornalismo liberal, que o acusa de ceder às “pressões populistas” de Bolsonaro. Guedes ainda tenta, numa queda de braço, dizer que não há de onde tirar tal orçamento. Mas senadores, deputados, ministros e o presidente não desistiram. Há notícias de reuniões intermináveis entre Guedes, Bolsonaro e Lira na busca de saídas. Já foi sugerido até mesmo que as emendas parlamentares sejam a fonte de financiamentos de tais auxílios. Mas tendo o financiamento privado de campanha sido restringido, os parlamentares têm as emendas como principal via de manutenção do clientelismo eleitoral de suas bases estaduais. As contas andam apertadas até para os gestores políticos mais fiéis ao capital. Assim, o governo procura se equilibrar, novamente, entre dar respostas às camadas populares, cada vez mais miseráveis, e embromar os ricaços, e vice-versa. O que completa toda essa situação é o risco iminente de uma crise energética, o que, evidentemente, aumentaria os custos de produção, reduziria ainda mais o consumo e ameaçaria o perfeito funcionamento da produção nacional. Como afirmou recentemente Bolsonaro em um pronunciamento público, “nada é tão ruim que não possa piorar”. Em meio a tais contratempos, as forças políticas se preparam para as eleições de 2022. Entretanto, algumas tendências conjunturais apontam não existir um consenso da burguesia brasileira na escolha de um futuro representante dos seus interesses. Um elemento importante, que embaralhou o cenário eleitoral, foi o retorno de Lula à disputa do pleito de 2022. O ex-presidente, que aparece como favorito nas pesquisas, já indicou que quer reconstruir os caminhos do passado. Ele já está correndo o país, promovendo reuniões com os decadentes representantes políticos burgueses e setores empresariais. Nos bastidores, inicia sua jornada em busca do pacto social, ao mesmo tempo em que se desvincula das manifestações construídas pelos mais amplos setores da esquerda contra as políticas econômicas do governo e tenta esfriá-las. Os setores reformistas — aliando-se àqueles que há pouco eram tachados de “golpistas” e responsabilizados por causar uma “instabilidade democrática” após operarem o impeachment de Dilma — apostam todas suas fichas na constituição de uma “frente ampla democrática”, com o objetivo da retomada da (re)conciliação entre capital e trabalho. Nada de novo sob o sol. A velha tese democrático-popular segue sendo o caminho sagrado dos reformistas. Entretanto, foge à vista dos ideólogos petistas um aspecto importante: as condições que permitiram momentaneamente um aparente “pacto social” não existem mais. A crise cíclica do capitalismo, que parece acelerar em todas partes do globo, e o anseio dos setores econômicos brasileiros pela ampliação da taxa de lucro limita a possibilidade da aplicação de políticas econômicas adotadas em períodos anteriores. O grande capital não teme Lula como um radical, mas compreende que um governo do PT implica necessariamente em certas concessões às camadas populares e médias, como aumento dos salários e ampliação dos gastos públicos. É precisamente o que mantém Lula como candidato popular. Um novo governo petista viveria um momento econômico bem mais crítico e em um ambiente radicalizado por uma oposição de direita ainda mais selvagem. O capital levaria tal governo em rédeas bem mais curtas. As bases sociais populares que permitiram os quatro mandatos petistas — vítimas da própria estratégia que ajudaram a criar — mostram-se cada vez mais reduzidas e menos dispostas ao embate político para além das eleições. Através da democracia de cooptação, operou-se o esfacelamento dessa base social por meio da institucionalização dos movimentos sociais, da captura das lutas políticas e do deslocamento do movimento das ruas para a via institucional. Tudo isso se acirraria mais ainda com Lula concedendo menos políticas sociais e desgastando-se com seu último bastião eleitoral: o povão. Esse quadro indica que uma nova política de conciliação só poderia existir em patamares muito mais rebaixados que os anteriores, com muito mais ruídos e grandes chances de um desenlace desastroso do governo. Esses setores mantêm hoje um comportamento passivo diante o atual governo. Comparecem a atos de rua e pedem pelo impeachment — alternativa que parece totalmente descartada pela burguesia e pelo Congresso — apenas protocolarmente. É uma postura compreensível, pois para realizar suas ambições eleitoreiras não precisam derrubar o governo, mas esperar pacientemente seu desgaste. É necessário que Bolsonaro faça suas barbaridades para que, sob efeito comparativo, Lula retorne. Sem o estúpido capitão, o petista sabe que disputaria com algum tipo de candidato tucano dos velhos tempos. Seus votos dispersariam. Bolsonaro também sabe que a corrupção e o “comunismo destruidor da família” concentram-se na figura petista. Derrotá-la é sua única chance de vencer as eleições. Temos então um acordo realizado sem assinatura ou aperto de mãos. O PT lembra aquilo que Marx disse, em uma situação diferente: “um partido que não era apto nem para dominar nem para servir, nem para viver nem para morrer, nem para suportar a república nem para derrubá-la, nem para manter a constituição nem para joga-lá no lixo, nem para cooperar com presidente nem para romper com ele. De quem ele esperava a resolução de todas as contradições? Do calendário do curso dos acontecimentos”. No caso do PT, do calendário eleitoral. A direita, na busca por corresponder às expectativas da grande burguesia, tenta encabeçar sua própria alternativa, denominada como “terceira via”. O receio de amplos setores capitalistas em relação ao candidato petista choca-se com a instabilidade política — que dificulta a aplicação da agenda econômica — causada por Bolsonaro. Os jornalões, com seus incansáveis editoriais sobre a “terceira via”, apontam desesperadamente um novo candidato, todos impopulares. A aposta é em um candidato próprio, que chegue no segundo turno surfando nos resquícios do antipetismo, no apelo anticorrupção e no respeito às instituições. A tentativa é ultrapassar aquilo que o direitista cara-de-pau Diogo Mainardi classifica como enfrentamento entre o “ex-presidiário” e “futuro presidiário”. Distante das disputas dos bastidores, dos dramas palacianos, das discussões sobre os planos econômicos, o elemento que poderia definir essa conjuntura ainda não entrou em cena. A classe trabalhadora brasileira tenta sobreviver à carestia e ao desemprego, a jornadas de trabalhos mais intensas e extensas. Se a alternativa eleitoral é incapaz de resolver os verdadeiros dilemas do proletariado contra a exploração do capital, na atual conjuntura, a via eleitoral parece ser incapaz de resolver também os mais cotidianos dos problemas na vida dos trabalhadores. Diversos setores da esquerda já começaram a traçar suas táticas eleitorais, baseadas centralmente em uma frente ampla com a pequena burguesia — talvez até mesmo com o grande capital — subordinando os principais interesses do proletariado à genérica e impotente “pauta democrática”. A ideia de que deve-se unir “todos” contra Bolsonaro, ou os “progressistas” contra Bolsonaro, arvora-se no pânico de uma reeleição do capitão. Tais setores da esquerda não compreendem que sua afobação pouco auxilia na solução dos problemas. É preciso trabalho constante e paciente para que os interesses do proletariado — imediatos e mediatos — ao menos ressurjam como posições políticas. Como as eleições de 2018 provaram, o amor não pode vencer o ódio. Só os interesses materiais do proletariado podem colocá-lo em movimento. E, para tanto, é preciso rasgar os horizontes, romper com as alternativas em disputa. Os trabalhadores e sua vanguarda não podem construir a luta política que aponte para uma saída para além da ordem instituída sem que antes rompam com a superstição que os prendem ao passado. Da agitação em torno das necessidades mais imediatas ao vislumbre de uma revolução social há um longo e duro caminho, mas que é preciso ser trilhado.

  • Tudo pode acontecer, inclusive nada

    A condição inerentemente destrutiva na qual se ancora a garantia da reprodução e permanência da forma social capitalista se torna cada vez mais explícita na vida cotidiana. Porém, ao invés desta característica incontrolável e autodestrutiva tornar nítida a necessidade da supressão imediata deste sistema, o que se vê é a insistência dos seus reformadores para garantir-lhe uma sobrevida. Neste sentido, Rosa Luxemburgo já havia observado que “talvez se encontre um certo número de camaradas que pensem que uma discussão sobre o objetivo final é apenas uma discussão acadêmica. Eu sustento, ao contrário, que não existe para nós enquanto partido revolucionário, proletário, questão mais prática que a questão do objetivo final.” Em nosso caso específico, na dramática conjuntura nacional que vivemos, devemos observar inicialmente que o sentido mais geral do caminho trilhado pelo Brasil nos últimos anos – independentemente da coloração partidária que ocupe a cadeira de presidente – é destruir as condições mais fundamentais da vida da população, como a possibilidade de se aposentar com uma renda mínima, o direito à saúde básica e à educação superior. A burguesia – mesmo que relativamente perdida nas brigas fratricidas entre as frações de sua própria classe – é quem irá continuar no governo independentemente de quem seja o manobrista – ou o timoneiro – no Palácio do Planalto. Ela tentará o velho e sabido modus operandi: “Tudo vai mudar, para que nada mude”. Para isso, precisará manter os trabalhadores afastados de toda decisão política de modo decisivo [1]. As formas com que isso se dá não são novas e compõem um amplo cardápio favorável à acumulação capitalista nas distintas situações conjunturais do país. Por um lado, sabemos que a Lei de Terras de 1850 – junto da abolição da escravidão em 1888 –, a edificação do sindicalismo estatista do getulismo e a transição lenta, gradual e segura da ditadura militar estão no rol de medidas “legais” para manter as classes populares fora das decisões centrais do país. Por outra parte, temos a proclamação da República em 1889 – um ato da cúpula militar –, a modernizante e conciliadora revolução de 1930 – e o repressivo Estado Novo que resulta disso –, bem como um ciclo de tentativas de golpes militares, iniciado nos anos 1940, que finalmente se efetiva em 1964 – implementando a sanguinária ditadura dos generais –, como alternativas “de força” da classe dominante. Engana-se aquele que imagina que a abertura democrática de 1985 – e a Constituição de 1988 – tenha resolvido tal problema. No essencial, as grandes questões da massa trabalhadora brasileira foram colocadas de lado ou apenas tangenciadas através de relativas melhoras. Não queremos, entretanto, induzir o leitor a imaginar que cremos ser possível alcançar mudanças profundas sob a vigência do modo de produção capitalista. Não acreditamos que seja possível, a essa altura da história da sociedade burguesa, democratizar a democracia. Devemos deixar claro que a tendência geral do modo de produção capitalista, principalmente após a tomada definitiva do poder do Estado pela burguesia na Europa do século XIX, é a conservação a todo custo de sua existência enquanto classe dominante, o que implica em uma repressão historicamente oscilante contra as massas; ou seja, a manutenção da ordem do capital. Evidentemente, essa conservação do poder político e das condições da reprodução capitalista se dá de maneira diferente nas diferentes formações sociais. Isso implica, obviamente, que na chamada periferia capitalista os padrões aproximam-se diariamente da barbárie. Entretanto, voltando às questões mais urgentes, o drama brasileiro é catastrófico até se compararmos com a situação de outros países latinoamericanos. Nos últimos anos, as principais lideranças populares e proletárias do Brasil não escondem sua indigência intelectual e sua covardia política. Os líderes e partidos do nosso país são tão estreitos que até o estreito horizonte do Partido Comunista chileno – envolvido no recente processo de uma nova Constituição do país – e do grupo político de Evo Morales – que acaba de lidar com um golpe na Bolívia – parece, para os incautos, verdadeiramente radical. Conforme Safatle, em seu texto recentemente publicado, enquanto o “Chile discute a implantação do Estado Paritário e do estado Plurinacional, Berlim luta por aprovar uma lei que tabela e diminui o preço dos aluguéis, a França discute a criação de um salário máximo e de uma limitação da diferença salarial no interior das empresas (como forma de forçar subir os menores salários), os Estados Unidos, através de Bernie Sanders, discutiram a implementação de uma cota obrigatória de trabalhadoras e trabalhadores no conselho de gestão de todas as empresas”, as décadas de governo petista resultaram num completo recuo que qualquer debate. O petismo deixou então de ser um reformismo até mesmo para as asseadas e comportadas social-democracias europeias e norte-americana; não à toa, a principal liderança da classe trabalhadora brasileira, o PT e sua burocracia sindical, sequer colocou em pauta nos anos que esteve no governo a discussão da redução da jornada de trabalho de 44 horas semanais para 40 horas semanais – isso para não mencionar seu acovardamento na pauta da reforma agrária, rifada pelo governo petista mesmo sendo uma demanda tão recuada, já que era baseada no horizonte da pequena propriedade rural. É sintomático que a declaração de Lula – um católico de carteirinha – de que o aborto é uma questão de saúde pública e assim deve ser tratada, tenha gerado uma gritaria geral entre os progressistas. Afirmam que o petista cometeu um “erro estratégico”, pois a sociedade brasileira é “conservadora” demais para pautar isso. Portanto, os temas “delicados” deveriam ser postos de lado (mas quando eles foram realmente colocados em pauta?). Como ignorar um assunto que atinge diariamente a vida das mulheres, das famílias pobres? E o que é essa tal “sociedade brasileira” neste caso? O exemplo do aborto é, entre tantos, sintomático para apontar, como o petismo/lulismo, é parte de nossos problemas. Afinal, mesmo com tantos anos de governos ditos progressistas, nunca houve no país um real debate público, de modo amplo, com a sociedade civil acerca do tema. A quem serve uma esquerda – ou um progressismo – que sempre interdita o debate e direciona todas as forças em direção a uma plataforma conservadora sob o argumento de que “é necessário nesse momento”? Essa é uma pergunta fundamental para quem sabe que, desde sempre, o Brasil se mostra como um país da contrarrevolução permanente – como diria Florestan Fernandes – isto é, um país onde impera a capacidade de gestar acordos entre as frações da burguesia que afastem a possibilidade de verdadeiras incorporações políticas populares! Nossa avaliação corrobora as palavras de Mauro Iasi, em texto também recentemente publicado, de que “No fundo, o “Fora Bolsonaro” e o “Volta Lula” não respondem categoricamente essas questões, por mais que o “Fora Bolsonaro” una a todos deste lado da fratura, não pode significar por si mesmo a reversão da reforma trabalhista, dos ataques à previdência e a subalternidade em relação aos ditames do capital financeiro, a prioridade ao agronegócio e a sacrossanta lei de responsabilidade fiscal e irresponsabilidade social, uma vez que os governos anteriores ao golpe de 2016 já caminhavam nesta direção”. A ausência de um programa que minimamente aponte para as questões fundamentais dos trabalhadores brasileiros tenta ser justificado também pelo velho mantra da eterna e desfavorável correlação de forças. Esta tese se equivoca principalmente em dois sentidos: 1) Não compreende a forma completa que se encontra o capitalismo brasileiro, tal como o nível maduro das condições objetivas para o seu declínio e, desta forma, ignora – até mesmo repele – a construção de organismos de poder autônomos e independentes da classe trabalhadora que permitam um salto qualitativo no desenvolvimento das condições subjetivas. 2) Parte do princípio que esta correlação só se modifica por meio do controle institucional do estado burguês, realizando “por dentro” as “reformas de baixa intensidade” que preparem um melhor terreno onde se avance a consciência da classe e se possa implementar as assim chamadas “reformas estruturais”. A questão, porém, fica evidente: quando foram tais reformas sequer propostas? Desta forma, a capitulação postulada pela terceirização da vida política e econômica do país, agora em nome do medo do suposto fascismo, tem corroído a capacidade de imaginar os futuros possíveis para nós. Agora, objetivamente, em cujo cenário completamente grotesco da vida social brasileira poderia se esperar no mínimo a revogação das contrarreformas trabalhistas, da PEC do teto de gastos, etc., estas pautas se tornam anseios de realização “eventual”. Mas, nem sua eventualidade é factível. Uma das bases mais evidentes do imaginário da democracia seria o da possibilidade de nos submetermos à soberania popular sem que as decisões equivocadas feitas no passado, nem que as instituições outrora devastadoras, possam ser legitimadas no presente. O apego à defesa abstrata da democracia segue a direção do que nunca se teve no Brasil: a soberania popular. De fato, defender o que se teve apenas como “ideologia de segundo grau” é defender a própria condição de que tudo que “está aí” permaneça, ou que nada mude. Queremos, portanto, reafirmar que os verdadeiros interesses da classe trabalhadora e das camadas oprimidas e perseguidas da sociedade brasileira estão completamente alijados do processo político e, principalmente, do processo eleitoral vindouro. As lideranças, detentoras da chamada viabilidade eleitoral, que compõem a miserável esquerda de nossos dias encontram-se completamente enredadas em sua cínica missão de se elegerem a qualquer custo, ou, no melhor dos casos, naquilo que o velho Marx chamou de cretinismo parlamentar, uma “doença peculiar” que “que prende os infectados dentro de um mundo imaginário e os priva de todo o senso, de toda a memória, de todo o entendimento para a crueza do mundo exterior” (MARX, 2011, p. 107). Lula, em entrevista para a revista norte-americana Time, já disse que seu programa de governo – incluindo o fatiamento de cargos para a canalha que irá compor sua base aliada – deve ficar para depois da vitória eleitoral. Além de não firmar o compromisso de revogar a reforma trabalhista – instrumento do capital que pretende facilitar o arrocho salarial sobre a classe trabalhadora brasileira – e das várias medidas de garroteamento do orçamento público, Lula também não faz menção de como encontraria força social para pôr abaixo o estado de coisas que flagela hoje a população brasileira. Se frações fundamentais da burguesia lutaram para impor seus interesses – inclusive derrubando Dilma do cargo –, como Lula pretende fazer frente a tudo isso sem força social (material e concreta)? Aqui também devemos incluir o candidato Ciro Gomes – trabalhista tardio, sem trabalhadores ao seu lado, um pseudodesenvolvimentista feroz de uma burguesia atroz. Como Lula e Ciro pretendem enfrentar as classes dominantes e colocá-las sob a peia do Estado? Suas respostas não poderiam ser mais cretinas: através de acordões com a bandidagem parlamentar. Evidentemente, não mencionam que hoje temos um chefe do legislativo cada vez mais forte, dono de imensos volumes de verbas do orçamento e que já faz circular, a boca miúda, a intenção de implementar um semipresidencialismo – o que fere frontalmente a autonomia dos atuais poderes republicanos. Se somarmos a isso a sede oportunistas dos militares – que dificilmente sairão por boa vontade do poder do Estado –, temos uma tempestade perfeita. Não esqueçamos que, antes do golpe de 1964, a solução proposta pelos generais em 1961 – na posse de João Goulart –, e aceita pelos covardes do legislativo, foi a criação de um parlamentarismo para controlar o poder do novo presidente. Ora, não estamos propriamente interessados em quem você votará e em que turno da eleição fará isso. O que desejamos, na verdade, é chamar atenção para o fato de que as eleições de 2022, mais do que nunca, são incapazes de mudar substantiva e definitivamente a vida da imensa parcela da população brasileira. Os atores mais viáveis da ala esquerda dessas eleições pretendem ganhar o pleito a golpes de frases de marqueteiros, reforçando ainda mais o conteúdo manipulatório que a política ganha no cotidiano da sociedade burguesa. Verdadeiras mudanças, que só podem ser alcançadas com o embate aberto, sincero e verdadeiro sobre os interesses que envolvem a luta de classes, estão passando ao largo dos debates. O provável vencedor, Lula, parece não contar com o dia de amanhã. Parece confiar demais em sua capacidade de improvisar. Todavia, na vida política, tudo pode acontecer – inclusive nada. O acontecimento do novo, que ultrapasse a torpeza da imaginação limitada dos críticos do presente, requer meios para se realizar aquilo que ainda até hoje não foi. Caso seja esse o posicionamento daquele que se afirma à esquerda, então que se preze um pouco da coerência. Não se pode esperar de algo ou de alguém aquilo que nunca se propôs a ser ou fazer. Entretanto, o compromisso de um governo que ainda não existe, nos moldes vigentes, é que, se vier a existir, já nascerá morto. NOTAS 1. Decisão, aliás, como a que, quando em 1964 as disputas se acirraram enquanto o clima da Guerra Fria atingia diretamente os âmagos da sociedade brasileira, o presidente João Goulart teve ao tocar em questões que, primariamente, seriam da ordem institucional em sentido benéfico para uma camada desfavorecida da população (as chamadas “reformas de base”). Sabemos que setores da burguesia apoiados pelo capital estrangeiro, temendo que a situação governamental no país desse uma guinada “à esquerda”, isto é, passasse a não prover somente o bem para a burguesia, mas que daria mais espaço para a classe trabalhadora e seus anseios, deram um golpe de Estado e instauraram uma Ditadura Militar, que teve bases no capital internacional e na violência armada generalizada pelo Estado.

  • A teologia lulista e a profecia dos desesperados

    Tem-se visto nas últimas semanas diversas movimentações eleitorais que trazem consigo um aspecto cômico – camuflar seu caráter trágico. A de maior repercussão é a declaração de alckmin, que afirma a harmonia entre lula e chuchu. O desespero eleitoreiro de um partido que sequer tem proposta de resolução para os problemas mais imediatos (desemprego, inflação e as contrarreformas) dilui as pretensões idealistas daqueles que já tinham à sua frente um fato: o PT, aparentemente a única saída popular dita à esquerda, já abandonou há muito o campo progressista. Mas estas articulações políticas de caráter duvidoso - seja por muitos denominada demagogia ou por outros tantos de populismo - não são novidade; a busca pela conciliação das tensões sociais em direção a uma estabilidade, para que a relação entre capital e trabalho se reproduza com paz e tranquilidade, é própria de uma prática política que é progressista apenas na palavra, mas que, em seu conteúdo, há tempos já abandonou até mesmo o que resta de radicalidade no progressismo como garantia da manutenção da ordem. Assim, os dilemas presentes nas articulações políticas, sempre requentados e com sabor cada vez mais rançoso, encontram respaldo ainda que sejam apontadas há tempos na análise marxiana: “E, assim como na vida privada se costuma diferenciar entre o que uma pessoa pensa e diz de si mesma e o que ela realmente é e faz, nas lutas históricas deve-se diferenciar tanto mais as fraseologias e ilusões nutridas pelos partidos do seu verdadeiro organismo e dos seus reais interesses, deve-se diferenciar as suas concepções da sua realidade.” [1] Ora, Lula-paz-e-amor, assim como todos os pacifistas, moraliza seu discurso, contrapõe sua bondade à vileza bolsonarista, a gentileza ao ódio, a verdade à falsidade; Ora, conhecereis a verdade (a real verdade, não a falsa profecia bolsonarista), e a verdade vos libertará! Regularize seu título, defendam o Bem que ainda resta em nossa sociedade! Para nós, o debate disseminado não é a interação entre as diferentes classes e diferentes setores das classes, [2] mediado pela especificidade de nossa época miserável, material e ideologicamente; nos parece que para os bons democratas do Partido Lulista, para alçar a vitória contra o Mal, “não teriam necessidade de verificar, na iminência de uma luta, os interesses e posicionamentos das diferentes classes. Não teriam necessidade de sopesar com todo cuidado os seus próprios meios. A única coisa que precisariam fazer era dar o sinal para que o povo se lançasse sobre os opressores com todos os seus inesgotáveis recursos.” (MARX, 2011, pp. 67-68). [3] Para nós, o debate teológico toma corpo, seja nos termos imanentes, como defesa de uma fraseologia por uma hermenêutica constitucional progressista (que traz consigo inevitavelmente a imputação de uma impotente universalização da própria moralidade do intérprete do texto), ou como apelo aos surdos gritos de direitos humanos; ou, em um campo ainda mais reacionário, no embate acerca da leitura mais ou menos correta dos evangelhos para tensionar um setor dos mais conservadores – e em constante crescimento – da nossa sociedade: os neopentecostais. Para isso, nosso candidato não poupa em suas falas tensionar o discurso conservador – que elegera há quase quatro anos seu antínoma – com um discurso, ainda teológico, mas com ares progressistas, de amor. Seus partidários abraçam a visão humanista e pacifista de Jesus Cristo, não o que levara ao chão o templo dos fariseus, mas o que mostra a outra face; seus partidários vibram com o grito eloquente de “o amor vencerá o ódio!” – afinal, o amor é humano, o amor é universal, enfim, o amor é cristão! E, assim como os bons democratas, seus apoiadores progressistas abdicam de analisar as relações de força por trás desse amor abstrato e vazio, demiurgo da miséria, material e espiritual, que se enfrenta nesta crise de nossos tempos. Ora, abdicar da análise de conjuntura é caminhar no escuro, confiando em deus e na fé que os inimigos da humanidade serão julgados no tribunal da História. Abdicar da análise de conjuntura é perder mesmo em caso de vitória – afinal, nem quem ganhar nem quem perder vai ganhar ou perder; no fim todos perderemos. Se as condições de nossa atuação no mundo permanecem-nos alheias, se é preciso confiar em uma entidade redentora para alcançar os cumes luminosos frente ao ponto do caminho em que trilhamos enquanto sociedade, é porque não vencemos, e sequer haverá perspectiva enquanto esta fé cega, motivada pelo desespero diante da miséria real, for o motor da atuação política. Reconhecer a situação em que se encontra e as forças por trás desta postura, possibilita a realização do que se propõe, e reconhecer a derrota permite a reorganização das forças para atuar de maneira objetivamente efetiva diante da realidade – assim, transformando a crítica negativa em crítica positiva. Do contrário, repetir-se-á a mesma fórmula falida dos democratas de quase dois séculos atrás: Mas quando, no momento da ação concreta, os seus interesses se revelam desinteressantes e o seu poder se revela impotente, atribuem esse fato ou a sofistas perniciosos que dividem o povo indivisível em diversas frentes hostis ou ao exército que estava por demais abestalhado e ofuscado para compreender os fins puros da democracia como a melhor coisa para si mesmo, ou tudo falhou em algum detalhe de execução ou então algum imprevisto pôs a perder essa rodada do jogo. Como quer que seja, o democrata sai da derrota mais vergonhosa tão imaculado quanto era inocente ao nela entrar, agora renovado em sua convicção de que ele deverá triunfar, não de tal modo que ele próprio e o seu partido tenham de renunciar ao seu velho ponto de vista, mas, ao contrário, de tal modo que as condições amadureçam no sentido por ele pretendido. (MARX, 2011, p. 68) Ora, repetir-se-á os mesmos erros do segundo governo Dilma: aliança com setores conservadores para a garantia do sucesso eleitoreiro, ingovernabilidade e, ao fim, após sua derrota, a certeza abstrata de estar no lado certo da História; e de que, por isso, a bênção espiritual agraciará a consciência daqueles que, ao contrário dos vis, deitarão com a cabeça leve e terão uma boa noite de sono. Por isso é que disputar teologicamente uma visão de mundo, e não as condições materiais, é se colocar em um terreno infértil para a colheita dos frutos previamente idealizados. Acreditar na solução pros antagonismos estabelecidos materialmente em um conceito pretensamente universal, e disputar o campo transcendental é precisamente, ao tentar trazer fiéis à sua posição, aderir à reação. Não se pode esquecer que, mesmo enquanto protesto contra a miséria real – como é visto idilicamente na doutrina teológica da libertação morta e enterrada na América Latina – a religião ainda é expressão da própria miséria real; é o reconhecimento da ausência de controle sobre os meios de produção e transformação de sua vida e, além, da imutabilidade desta condição, de que somos reféns do mundo e que nos resta aguardar o doce alívio da morte e a recompensa no plano superior da existência. Mas quanta confusão entre política e religião! Impossível aqui se desenvolver de outra forma: como tratar a posição partidária que centra suas forças na imagem de um profeta que traz como central não a relação que dá nome à sua organização, mas simplesmente ao seu reflexo?; como analisar o Partido Lulista de outra forma que não essa, se os seus discursos são incapazes de ir além do amor abstrato ou da carestia desesperada? Daí entende-se o porquê da impotente luta pela aliança dos cristãos conservadores. Quanto mais miseráveis estamos, mais fraco é o suspiro da criatura mais oprimida e, portanto, maior o apelo à religião. E quanto mais depende-se da religião, mais distante se está de alcançar os objetivos progressistas (supostamente) propostos. E, reiterando o dito a princípio, ao se abandonar um programa, e consequentemente um projeto de país (não que o do PT fosse dos mais potentes), realmente, é preciso rogar a deus, porque já se abandonou a concepção de que a humanidade é capaz de solucionar os dilemas por ela própria criados; que ao atuar diante da realidade nós a transformamos e nos transformamos. A historicidade do mundo e da humanidade foi jogada às traças de fato. O mundo se torna devasso e miserável, nos tornamos essencialmente egoístas, vis e mesquinhos, e nosso destino passa a ser nos cobrir com a manta de Santo Antônio: quando a moléstia aperta, alguém passa frio. Esse esforço de Sísifo cada vez mais presente na decadente sociedade burguesa traz, por essas camadas pretensamente progressistas (e nunca nos esqueçamos de que aquilo que algo diz de si mesmo não necessariamente corresponde à sua realidade), certo romantismo de setores de apoio a Lula diante de um impotente renascimento da teologia da libertação frente à força da teologia da prosperidade; o messianismo dos desesperados ignora que são determinadas condições materiais que permitem o surgimento de determinadas vertentes teológicas. Essas, por sua vez, trarão, no limite, uma determinada postura específica dos sujeitos religiosos diante da realidade que os rodeia, ainda possuindo, por mais aparentemente revolucionária que seja, um caráter reacionário ao tratar o mundo material como subsumido hierarquicamente a um hipotético mundo transcendental, eterno e em unidade a deus. A teologia da libertação morreu, e foi substituída pela prosperidade sonhada pelos contribuintes da burocracia transcendental; os banqueiros de deus ganharam força com a teologia da prosperidade à época nova, e o sonho dos oprimidos pela compra de assentos no céu, ao invés da busca pela construção coletiva do paraíso na terra havia sido percebido pelo governo petista já nos primeiros mandatos, que tiveram papel ativo na formação desta nova forma de prática política, hoje, hegemônica; ora, dos grupos responsáveis pelo impeachment no congresso, a bancada da Bíblia se mostrou uma das mais visíveis com os fervorosos e hipócritas discursos em defesa de Deus, da Moral e da Família. E, assim como César, que cegado pela arrogância não percebeu a conspiração de seus traidores, o partido lulista não viu a lâmina do punhal que o derrubou. Apesar das duras críticas, no entanto, as linhas aqui escritas não se direcionam imediatamente ao candidato representante do Bem, mas a seus cegos partidários, que compram a fraseologia vazia do amor, ou da redenção messiânica dos oprimidos. Nesse sentido, Lula está de mãos atadas – condição criada por seu próprio partido; hoje, o partido lulista não detém o mínimo de controle da concretização do que diz pretender efetuar durante o governo. Ele depende de apoio de setores reacionários da sociedade – aqui, em específico, os evangélicos -- justamente pelo Partido dos Trabalhadores ter – pasmem –, “abandonado” a pauta do trabalho – senão em seus emocionados e carismáticos discursos. Assim, entrega-se o prometido por quem brada ser o profeta a reconciliar capital e trabalho no Brasil: lucros máximos ao capital, e enfraquecimento das classes trabalhadoras que, desesperadas com a perspectiva de futuro, trazendo às mentes a visão nostálgica de um breve e recente passado que não há mais de voltar, apertarão treze com o coração sufocado. Perdemos, e prosseguiremos perdendo, enquanto tomarmos nossas derrotas como conquistas e nos recusarmos a ousar transpassar os limites das impotentes reformas burguesas. NOTAS cf. MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (tradução de Nélio Schneider). São Paulo, Boitempo, 2011, pp. 60-61 Aqui, o debate se esvai de análise de conjuntura. A atuação política conciliatória do Partido Lulista não depende de análise de conjuntura! Ele já carrega consigo toda a positividade do mundo! Essa posição petista por vezes se assemelha à crítica de Marx à Montanha, que traz em sua tendência democrática o elemento universal da sociedade burguesa: “Os democratas admitem que o seu confronto é com uma classe privilegiada, mas pensam que eles é que constituem o povo junto com todo o entorno restante da nação, que eles representam o direito do povo, que o seu interesse é o interesse do povo. Por conseguinte, não teriam necessidade de verificar, na iminência de uma luta, os interesses e posicionamentos das diferentes classes. Não teriam necessidade de sopesar com todo cuidado os seus próprios meios. A única coisa que precisariam fazer era dar o sinal para que o povo se lançasse sobre os opressores com todos os seus inesgotáveis recursos.” (MARX, 2011, pp. 67-68). cf. MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (tradução de Nélio Schneider). São Paulo: Boitempo, 2011, pp. 67-68.

  • Dois mundos

    por Vladimir Ilitch Lênin Tradução: Pedro Badô Publicado originalmente em novembro de 1910 no Sotsial-Demokrat, nº18, Dois mundos [Два мира, Dva mira] é um texto inédito em língua portuguesa. A publicação da presente tradução dá-se pela importância que reputamos a este artigo, no qual Lênin analisa cuidadosamente a situação da Alemanha das primeiras décadas do século XX, a sua peculiar condição política, e social, a qual envolvia uma estável legalidade constitucional, uma ampla liberdade conquistada pelo movimento operário alemão, mas, ao mesmo tempo, a iminente possibilidade de uma gigantesca revolução proletária que, inescapavelmente, deveria arrasar com toda ordem jurídica. Como afirma o próprio autor, a “característica principal desta peculiar situação pré-revolucionária consiste no fato de que a próxima revolução deve, inevitavelmente, ser incomparavelmente mais profunda, mais radical, atraindo massas muito mais amplas para uma luta mais difícil, obstinada e prolongada do que todas as revoluções anteriores”. A presente publicação, é verdade, não é mais que uma tradução de caráter um tanto provisório. Mas nossa intenção ao realizá-la tem como objetivo principal divulgar um relevante texto de Lênin ao qual o leitor lusófono ainda não teve acesso em sua língua materna. Portanto, não se trata de uma tradução definitiva. Cabe mencionar ainda que tivemos como base os textos de Lênin em espanhol [Obras completas, Tomo XVI, Madrid: Akal, 1977, p.303-311] e em inglês [Collected Works, Vol. 16, Moscow: Progress Publishers, 1974, p. 305-313], cotejando e buscando esclarecer eventuais inconsistência, na medida do possível, através do texto original em língua russa [disponível em: https://leninism.su/works/58-tom-20/2608-dva-mira-20.html]. Desejamos a todos uma boa leitura! Todos os jornais têm falado muito sobre o Congresso de Magdeburgo do Partido social-democrata alemão e os principais acontecimentos deste Congresso, todas as vicissitudes da luta, são suficientemente conhecidas [1]. A face aparente da luta entre revisionistas e ortodoxos, os episódios dramáticos do Congresso ocuparam demasiadamente a atenção dos leitores, em detrimento do esclarecimento dos princípios envolvidos nessa luta, das raízes ideológicas e políticas da divergência. No entanto, os debates em Magdeburgo – principalmente sobre a questão da votação favorável ao orçamento pelos de Baden [badenistas]* – fornecem um material extremamente interessante para caracterizar os dois mundos de ideias e as duas tendências de classe dentro do Partido Operário Social-Democrata da Alemanha. A votação do orçamento é apenas uma das manifestações desta divisão em dois mundos, uma divisão tão profunda que certamente se manifestará em ocasiões muito mais sérias, muito mais profundas e importantes. Agora, quando, como todos podem ver, a grande tempestade revolucionária se aproxima na Alemanha, os debates de Magdeburgo devem ser vistos como uma pequena revista de forças de uma pequena fração do exército (pois a questão da votação do orçamento é apenas uma pequena parte dos problemas fundamentais da tática social-democrata) antes do início da campanha. O que esta revista mostrou sobre como os diferentes setores do exército proletário entendem as tarefas que os confrontam? O que esta revista diz sobre como essas diferentes seções do exército se comportarão quando chegar a hora? Estas são as questões que pretendemos abordar. Começaremos com um pequeno confronto de opiniões (à primeira vista). O líder dos revisionistas, Frank, enfatizou com insistência, como todos os badenistas, que embora o ministro von Bodman tenha inicialmente negado a “igualdade de direitos” dos sociais-democratas frente aos outros partidos – burgueses –, ele posteriormente retratou este “insulto”. Bebel, em seu relatório, deu a seguinte resposta sobre este ponto: “ [...] Se o ministro de um Estado moderno, um representante do regime estatal e da ordem social existentes – e a finalidade do Estado moderno, como instituição política, é defender e sustentar o regime estatal e a ordem social existentes contra todos os ataques do campo social-democrata, defendendo-o usando até mesmo a violência se necessário -, declara que não reconhece a igualdade de direitos dos social-democratas, então, de seu ponto de vista, ele tem toda razão". Frank interrompeu Bebel com o grito: “Inacreditável!” Bebel continuou respondendo-lhe: “Acho muito natural”. Frank novamente exclamou: "Inacreditável!" Por que Frank ficou tão indignado? Porque está totalmente imbuído de fé na “legalidade” burguesa, na “igualdade de direitos” burguesa, sem compreender os limites históricos desta legalidade, sem compreender que toda esta legalidade deve, inevitavelmente, se espatifar em caquinhos, quando a questão fundamental e principal for a preservação da propriedade burguesa. Frank está completamente impregnado de ilusões constitucionais [конституционными иллюзиями, konstitutsionnymi illyuziyami] pequeno-burguesas; portanto, ele não entende que as ordenações [sistemas, порядков, poryadkov] constitucionais são convenções [условности, uslovnosti] históricas, mesmo em um país como a Alemanha; ele acredita no valor absoluto, no poder absoluto da constituição burguesa (ou melhor, burguesa-feudal) na Alemanha, e sente-se sinceramente ofendido quando um ministro constitucional não quer reconhecer sua “igualdade”, de Frank, um parlamentar, um homem que age em estrita conformidade com a lei. Deleitando-se com essa legalidade, Frank chega a esquecer a intransigência implacável da burguesia para com o proletariado e, sem perceber, adota a posição daqueles que consideram como eterna essa legalidade burguesa, que consideram que o socialismo se encaixa nos marcos desta legalidade. Bebel traz a questão dessas ilusões constitucionais, próprias à democracia burguesa, para o solo real [реальную почву, real'nuyu pochvu] da luta de classes. É possível sentir-se “ofendido” porque a nós, inimigos de toda a ordem burguesa, não é reconhecida a igualdade com base na lei burguesa por um defensor desta ordem? Afinal, a simples suposição de que isso poderia me ofender, mostra a fragilidade de minhas convicções não socialistas! E Bebel tentou explicar a Frank as visões social-democratas com exemplos concretos. Não poderíamos ficar “ofendidos”, disse Bebel a Frank, pela Lei Antissocialista**; estávamos cheios de raiva e ódio, “e se pudéssemos naquela época, teríamos nos lançado à batalha, como desejávamos no fundo de nossas almas, teríamos estilhaçado em caquinhos tudo o que estava em nosso caminho” (aqui versão taquigráfica registra altos gritos de aprovação). “Seriamos traidores de nossa causa se não o tivéssemos feito” (Exatamente!). “Mas não estava em nosso poder.” Me ofendo que um ministro constitucional não reconheça a igualdade de direitos dos socialistas, argumenta Frank. Não se ofenda, diz Bebel, porque sua igualdade foi negada por um homem que, não faz muito tempo, estava te estrangulando, pisoteanto todos os “princípios”, cujo dever era estrangular você em defesa da ordem burguesa e que te estrangulará amanhã (Bebel não disse isso, mas ele insinuou claramente; explicaremos no lugar apropriado porque Bebel se limita tão cautelosamente a insinuações). Seriamos traidores se, tendo oportunidade, não tivéssemos estrangulado esses inimigos do proletariado. Dois mundos de ideias: de um lado, do ponto de vista da luta de classes proletária, que em certos períodos históricos pode prosseguir [идти, idti] sobre o solo [почве, pochve] da legalidade burguesa, mas que conduz inevitavelmente a um desenlace, a uma luta direta, ao dilema: “estilhaçar em caquinhos” [разбить вдребезги, razbit' vdrebezgi] o estado burguês, ou ser esmagado e estrangulado. Por outro lado, do ponto de vista do reformista, do pequeno burguês que não vê a floresta atrás das árvores, que não vê a feroz luta de classes por trás do ouropel [мишурой, mishuroy]*** da legalidade constitucional e que, no rincão de algum pequeno país, se esquece das grandes questões históricas do nosso tempo. Os reformistas se imaginam políticos realistas, pessoas de trabalho positivo [положительной работы, polozhitel'noy raboty], estadistas. Aos senhores da sociedade burguesa, convém incentivar essas ilusões infantis entre o proletariado, mas os social-democratas devem destruí-las sem piedade. Palavras sobre igualdade são “frases sem sentido”, disse Bebel. “Quem consegue fisgar uma facção socialista inteira usando essas frases de isca é um estadista”, disse Bebel, em meio ao riso geral do Congresso do Partido, “mas aqueles que se deixam fisgar são qualquer coisa, menos estadistas”. Isso atinge em cheio todo tipo de oportunistas do movimento socialista que se deixam fisgar pelos nacional-liberais na Alemanha e pelos kadets**** na Rússia. “Os negadores”, disse Bebel, “muitas vezes alcançaram muito mais do que aqueles que defendem o chamado trabalho positivo. A crítica aguda, a oposição aguda sempre cai em terreno fértil se essa crítica for justa, e a nossa, inquestionavelmente, é justa.” As frases oportunistas sobre o trabalho positivo, em muitos casos, significam trabalhar para os liberais, em geral, significam trabalhar para os outros, para quem detêm o poder nas mãos, para quem define o rumo de determinado Estado, sociedade, comunidade. E Bebel apresentou essa conclusão com franqueza, declarando que “em nosso partido não são poucos nacional-liberais desse tipo, que seguem uma política nacional-liberal”. Como exemplo, ele mencionou Bloch, o conhecido editor da chamada (nas palavras de Bebel, a assim chamada) “Revista Mensal Socialista” (Sozialistisehe Monatshefte) [2]. “Os nacional-liberais não têm lugar em nosso partido”, declarou Babel sem rodeios, para a aprovação geral do Congresso. Veja a lista de colaboradores da “Revista Mensal Socialista”. Todos os representantes do oportunismo internacional estão lá. E todos elogios lhes parecem insuficiente para se referir à ação de nossos liquidacionistas. Aqui não há dois mundos de ideias? Sendo que o próprio líder da social-democracia alemã declara que o editor desta revista é um nacional-liberal? Os oportunistas de todo o mundo inclinam-se à política de um bloco com os liberais, seja proclamando-a e implementando-a direta e abertamente, seja defendendo ou justificando acordos eleitorais com os liberais, apoiando suas palavras de ordem, etc. Bebel expôs repetidamente a falácia, a pura falsidade dessa política, e, podemos dizer sem exagero, que todo social-democrata deveria conhecer e lembrar suas palavras. “Se eu, como social-democrata, fizer uma aliança com os partidos burgueses, pode-se apostar mil para um que não serão os social-democratas que ganharão, mas sim os partidos burgueses. Nós seremos os perdedores. É uma lei política que, onde quer que a direita e a esquerda se aliem, a esquerda perde, a direita ganha… Se eu entrar em uma aliança política com um partido que seja fundamentalmente hostil a mim, devo necessariamente adaptar minha tática, isto é, meus métodos de luta, para não quebrar essa aliança. Então, não poderei mais criticar impiedosamente, não poderei lutar por princípios, porque isso ofenderia meus aliados; serei obrigado a ficar calado, a esconder muitas coisas, a justificar o injustificável , a encobrir assuntos que não podem ser encobertos.” O oportunismo é oportunismo precisamente porque sacrifica os interesses fundamentais do movimento em detrimento de ganhos momentâneos ou de considerações baseadas nos cálculos mais míopes e superficiais. Frank pateticamente declarou em Magdeburgo que os ministros de Baden “querem que nós, social-democratas, trabalhemos conjuntamente com eles”! Não devemos olhar para cima, mas para baixo – dissemos durante a revolução aos nossos oportunistas, que repetidamente deixaram-se levar por várias perspectivas apresentadas pelos kadets. Bebel, com os Franks reunidos à sua frente, disse em seu discurso final em Magdeburgo: “Não está claro às massas que existem social-democratas que, com seu voto de confiança, apóiam um governo que as massas estariam dispostas a eliminar completamente. Muitas vezes tenho a impressão de que uma parte de nossos líderes deixou de entender o sofrimento e a calamidade das massas (aplausos estrondosos), de que a condição das massas tornou-se estranha para eles”. E, “em toda a Alemanha, um enorme ressentimento se acumulou entre as massas”. “Estamos vivendo um tempo”, disse Bebel em outra parte de seu discurso, “em que compromissos podres são especialmente inadmissíveis. As contradições de classe não estão diminuindo, mas ficando mais agudas. Estamos no limiar de tempos muito, muito graves. O que vai acontecer depois das próximas eleições? Vamos esperar e ver. Se chegar ao ponto de eclodir uma guerra europeia em 1912, você verá o que nos espera, onde teremos que nos posicionar. Provavelmente não será onde os badenitas estão hoje.” Enquanto alguns, presunçosamente, se contentam tranquilamente com o estado de coisas que se tornou habitual na Alemanha, o próprio Bebel volta toda a sua atenção para a inevitável mudança que se aproxima e chama a atenção do Partido para isso. “Todas as nossas experiências até agora foram escaramuças em postos avançados, meras ninharias”, disse Bebel em seu discurso final. A luta principal está por vir. E do ponto de vista dessa luta principal, toda a tática dos oportunistas é o cúmulo da covardia e da miopia. Bebel limita-se a alusões sobre a luta que se aproxima. Ele nunca fala diretamente sobre a revolução que está iminente na Alemanha, embora essa seja, sem dúvida, a ideia que tenha em mente – todas as suas referências ao agravamento das contradições, à dificuldade das reformas na Prússia, à posição desesperada do governo e das classes dominantes, ao crescimento da ira entre as massas populares, ao perigo de uma guerra europeia, à intensificação da opressão econômica como resultado dos altos custos de vida, à fusão dos capitalistas em trusts e cartéis, etc., etc., tendem claramente ao objetivo de abrir os olhos do Partido e das massas para a inevitabilidade de uma luta revolucionária. Por que Bebel é tão cauteloso? Por que ele se limita a alusões? Porque a revolução que amadurece na Alemanha encontra uma situação política especial e peculiar que não se assemelha a outros períodos pré-revolucionários em outros países e, por isso, exige dos líderes do proletariado a solução de um problema um tanto novo. A característica principal desta peculiar situação pré-revolucionária consiste no fato de que a próxima revolução deve, inevitavelmente, ser incomparavelmente mais profunda, mais radical, atraindo massas muito mais amplas para uma luta mais difícil, obstinada e prolongada do que todas as revoluções anteriores. Mas, ao mesmo tempo, esta situação pré-revolucionária é marcada (em comparação com o passado) por uma maior vigência da legalidade, que se tornou um obstáculo para aqueles que introduziram essa legalidade. Aí está a peculiaridade da situação, aí está a dificuldade e a novidade do problema. Por uma ironia da história, as classes dominantes da Alemanha, que criaram o Estado mais poderoso de toda a segunda metade do século XIX, que consolidaram condições para o mais rápido progresso capitalista e condições para a mais estável legalidade constitucional, estão agora, inequivocamente, chegando a um ponto em que essa legalidade, a sua legalidade, terá que ser quebrada, para que a dominação da burguesia possa ser preservada. Por cerca de meio século, o Partido Operário Social-Democrata Alemão utilizou [использовала, ispol'zovala] exemplarmente a legalidade burguesa, criando as melhores organizações proletárias, uma imprensa magnífica e elevando ao mais alto nível (que é possível sob o capitalismo) a consciência e a coesão da vanguarda proletária socialista. Agora se aproxima o tempo em que este período de meio século da história alemã deve ser, por razões objetivas, substituído por um outro período. A época de utilização [использования, ispol'zovaniya] da legalidade criada pela burguesia está sendo substituída por uma época das tremendas batalhas revolucionárias, e essas batalhas, em essência, serão a destruição de toda legalidade burguesa, de todo o sistema burguês, enquanto que, na sua forma, deve começar (e está começando) com as tentativas desesperadas da burguesia de livrar-se da legalidade que ela criou e que tornou-se insuportável para si mesma! “Atirem primeiro, senhores burgueses!” – com essas palavras, ditas em 1894, Engels expressou a peculiaridade da posição e a peculiaridade dos problemas táticos do proletariado revolucionário [3]. O proletariado socialista não esquecerá nem por um momento que se depara, que inevitavelmente se confronta, com uma luta revolucionária de massas que arrasará com toda e qualquer legalidade da agonizante sociedade burguesa. Mas, ao mesmo tempo, um partido que utilizou magnificamente meio século de legalidade burguesa contra a burguesia, não tem a menor razão para renunciar a essas conveniências na luta, a essa vantagem na batalha proporcionada pelo fato de o inimigo estar preso no emaranhado de sua própria legalidade, de que o inimigo é compelido a “atirar primeiro”, é compelido a despedaçar sua própria legalidade. Aí reside a peculiaridade da situação pré-revolucionária na Alemanha moderna. É por isso que o velho Bebel é tão cauteloso, concentrando toda a sua atenção na grande luta que está por vir, lançando toda a força de seu enorme talento, sua experiência e autoridade contra os oportunistas míopes e covardes que não entendem essa luta, que não estão aptos para liderá-la, que durante a revolução, provavelmente, passarão de dirigentes para dirigidos ou até mesmo descartados. Em Magdeburgo, esses líderes foram repreendidos, censurados, receberam um ultimato oficial como representantes de tudo aquilo que é ineficaz e que se acumulou no grande exército revolucionário, de tudo o que é fraco, infectado pela legalidade burguesa e estupefato por uma reverente admiração dessa legalidade, diante de todas as limitações de uma das épocas da escravidão, ou seja, de uma das eras da dominação burguesa. Ao condenar os oportunistas, ameaçando-os com a expulsão, o proletariado alemão exprimiu assim a sua condenação de todos os elementos da sua poderosa organização que personificam a estagnação, a incerteza, a fraqueza e a incapacidade de romper com a psicologia da moribunda sociedade burguesa. Ao condenar os maus revolucionários em suas próprias fileiras, a classe de vanguarda realizou uma das últimas revistas de suas forças antes de entrar no caminho da revolução social. * * * Enquanto a atenção de todos os social-democratas revolucionários de todo o mundo concentrava-se em ver como os operários alemães se preparavam para a luta, escolhendo o momento para agir, observando atentamente o inimigo e se purgando das fraquezas do oportunismo, os oportunistas em todo o mundo se regozijavam com as divergências surgidas entre Luxemburgo e Kautsky a respeito da avaliação da situação atual, sobre a questão de saber se um desses momentos decisivos, como o 9 de janeiro na revolução russa, estava para acontecer agora ou ainda não, neste minuto ou no próximo. Os oportunistas se deleitaram, procuraram tornar essas divergências, que não eram de suma importância, em temas candentes nas colunas do Socialist Monthly, Golos Sotsial-Demokrata (Martínov), Zhizn, Vozrozhdenie e jornais liquidacionistas semelhantes e o Neue Zeit (Mártov) [4] . A mesquinhez desses métodos dos oportunistas em todos os países ficou indelevelmente registrada em Magdeburgo, onde as divergências entre os social-democratas revolucionários da Alemanha não desempenharam nenhum papel apreciável. Os oportunistas, porém, se vangloriaram cedo demais. O Congresso de Magdeburgo adotou a primeira parte da resolução proposta por Rosa Luxemburgo, na qual há referência direta à greve de massas como meio de luta. Notas: 1. Congresso de Magdeburgo do Partido Social-Democrata da Alemanha: foi realizado entre 18 e 24 de setembro de 1910. Seus trabalhos tiveram como foco dois problemas: 1) a violação da disciplina partidária pelos deputados social-democratas do Landtag (parlamento) de Baden e 2) a luta pelo sufrágio universal da Prússia. Quanto ao primeiro problema, o essencial era o seguinte: o grupo social-democrata do Landtag de Baden votou favoravelmente ao orçamento do governo, contrariando as resoluções dos Parteitag (congressos partidários) precedentes, as quais proibiam aos deputados social-democratas votarem a favor do orçamento do governo burguês. Por maioria de votos (289 contra 80), o Congresso condenou a tática oportunista dos social-democratas de Baden, os quais declararam que, a partir de então, davam a si o direito de não acatar as decisões dos congressos. Em resposta a essa declaração, a maioria do Congresso aprovou uma resolução especial que expulsava imediatamente do partido aqueles que violaram as decisões do Parteitag a respeito da votação do orçamento. Em protesto a essa resolução, os deputados de Baden abandonaram de maneira ostensiva o Congresso. Quanto ao debate sobre a luta pelo sufrágio universal na Prússia, este foi a continuação da polêmica que mantinham, por um lado, a ala esquerda da social-democracia alemã – encabezada por Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht, Clara Zetkin, entre outros – e, de outro lado, os centristas – encabezados por Karl Kautsky. Na primavera de 1910, o culminar do movimento de massas pela implementação do sufrágio universal na Prússia impôs ao Partido Social-Democrata alemão a necessidade de determinar a tática da luta e a possibilidade de declarar uma greve de massas. Rosa Luxemburgo defendia uma tática ofensiva do proletariado por considerá-lo suficientemente maduro para passar à greve política de massas. Kautsky manifestou-se contrário a essa tática e propôs que, em lugar de lidar com o desenvolvimento do movimento de massas, se incentivasse a participação na campanha eleitoral para o Reichstag e a atividade parlamentar do partido. O Congresso aprovou um complemento à resolução da Direção do partido, apresentada por Rosa Luxemburgo, sobre o reconhecimento da greve política geral como meio de luta pela reforma eleitoral na Prússia. (Nota da edição espanhola). * badenistas: deputados social-democratas do parlamento de Baden. (Nota do tradutor). ** a Lei Antissocialista foi editada na Alemanha em 1878 e proibiu os partidos sociais-democratas, as organizações operárias de massas, bem como a imprensa operária. Apenas com a investida do movimento de massas e do movimento operário, cada vez mais forte, contra o governo alemão, a lei contra os socialistas foi abolida em 1890. (Nota do tradutor). *** ouropel é uma liga metálica de cobre, de cor amarela, que imita ouro, designando em sentido figurado e pejorativo aquilo que tem brilho falso, esplendor aparente, que tem grande eloquência, uma pomposidade que disfarça pobreza de ideias. (Nota do tradutor) **** kadets, ou cadetes, é designação para os integrantes do Partido da Liberdade do Povo, também chamado Partido Constitucional-Democrata (K.D.), formado na Rússia em outubro de 1905. Tratava-se do principal partido da burguesia monárquica liberal e, posteriormente, da burguesia imperialista russa. Seu programa partidário passava pela transformação do czarismo em uma monarquia constitucional. 2. Sozialistisehe Monatshefte foi o órgão principal dos oportunistas alemães e um dos porta-vozes do revisionismo internacional. Foi publicado em Berlim entre 1897 e 1933. Durante a Primeira Guerra adotou uma posição social-chauvinista. (Nota da edição espanhola). 3. Conferir o texto de F. Engels O socialismo na Alemanha, publicado em 1891. Posteriormente, em 1895, o próprio Engels repetiu esses termos em um prefácio a A luta de classes na França de 1848 a 1850 de Marx. (Nota da edição espanhola). 4. No Neue Zeit, o camarada Karski deu uma resposta enfática a Mártov. (Nota do autor).

  • A indústria cultural no século XXI: sobre a atualidade da concepção de Adorno e Horkheimer

    Original KULTURINDUSTRIE IM 21. JAHRHUNDERT. Zur Aktualität des Konzepts von Adorno und Horkheimer in revista EXIT! Krise und Kritik der Warengesellschaft, 9 (03/2012) [EXIT! Crise e Crítica da Sociedade da Mercadoria, nº 9 (03/2012)], ISBN 978-3-89502-333-0, 200 p., 13 Euro, Editora: Horlemann Verlag, Heynstr. 28, 13187 Berlin, Deutschland.Tradução de Boaventura Antunes (03/2013). Disponível também em obeco-online Nota prévia: o presente ensaio é a versão escrita e alargada de uma comunicação apresentada em 21 de Novembro de 2010 na Alliance Française em São Paulo no âmbito de uma série de conferências subordinadas ao tema “A Indústria Cultural no Século XXI”. Há textos que já estão envelhecidos quando veem a luz do dia. E há textos que mesmo com cem anos de idade se apresentam frescos e emocionantes. O livro A Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer, onde se inclui o célebre capítulo sobre a Indústria Cultural, teve a primeira edição em 1944. Poder-se-á ainda falar tanto tempo depois da atualidade das ideias aí formuladas? Para o pensamento pós-moderno em sentido lato a resposta é clara: não. Este ponto de vista tornado dominante nas últimas décadas gosta de acusar o conceito de indústria cultural de ser portador de um “pessimismo cultural” conservador. Que mal poderá haver na industrialização da cultura? Não se encontrarão aí potenciais de liberdade e progresso que podem ser utilizados por todos os seres humanos? A esquerda cultural e pop pós-moderna, na sua experiência mediática para não dizer esnobismo midiático, julgou-se para lá do pensamento “fora de moda” da teoria crítica. Com isso, no entanto, apenas demonstrou o seu próprio caráter de simples fenómeno de moda. Entretanto, a indústria pop pós-moderna já está um pouco entristecida nos anos e os seus velhos protagonistas ganharam uma aura já quase de avô. De repente eles mesmos correm o risco de se tornarem conservadores em relação ao seu próprio métier de juventude cultural profissional. É precisamente nesta situação que é de todo o interesse voltar a ver com outros olhos o conceito crítico de indústria cultural e as acusações pós-modernas contra ele lançadas. Da crítica aparente da burguesia intelectual ao culto pós-moderno da superficialidade Para começar será preciso esclarecer o que se deve entender por “pessimismo cultural”. No modo de expressão pós-moderno, que em todo o caso prefere proceder associativamente, a simples classificação denunciatória já parece falar por si mesma, sem precisar de mais fundamentação. Aqui se infiltra de algum modo a referência pejorativa à postura de “burguesia cultural” na argumentação depreciativa, argumentação essa que permanece igualmente associativa e indeterminada. Na realidade a “burguesia cultural”, a que corresponde a estrita diferença entre cultura de entretenimento e cultura séria, é um fenómeno bem especificamente alemão. A literatura, a música etc. “sérias” ou de “alto nível cultural” não devem ser manchadas por um “entretenimento” entendido como fundamentalmente baixo, tal como o ensino e a investigação académicas não devem ser manchadas por uma “ciência popular” aferida pelo entendimento comum. Se a burguesia cultural clássica, sobretudo na Alemanha, torce o nariz à superficialidade da moderna cultura comercial, isso não passa de um gesto vazio. Pois tal crítica permanece ela própria superficial, uma vez que a sua preocupação é toda ela para os modos exteriores de exposição, enquanto o conteúdo social e o núcleo político-econômico de tais produções têm de ser ocultados e permanecem amplamente irrefletidos. Esta espécie de “pessimismo cultural” é uma forma de reação puramente intercapitalista. Quanto mais se invoca abstratamente uma “essência interna” indeterminada e mistificada da alta cultura iluminista burguesa, tanto mais irrelevante se apresenta a cruzada da burguesia cultural contra a indústria cultural. Atrás disso esconde-se um penoso estado de coisas. O entretenimento frívolo e a simplificação popular não passam do reverso do carácter carregado ideologicamente em alto grau das próprias ciência e arte burguesas “sérias” que assim se torna reconhecível. O facto de estas não serem compradas apenas porque já antes tinham sido compradas pelo Estado para efeitos de representação mostra a origem comum em que o dinheiro se valida no Estado e o Estado no dinheiro. É verdadeiramente a involuntária revelação deste contexto que não agrada aos críticos da cultura da burguesia cultural na industrialização da cultura, pois com isso a sua própria vida fica exposta. Para os restos hoje miseráveis e do ponto de vista capitalista precarizados dos bajuladores burgueses da alta cultura está completamente rompida a distância para a superficialidade cultural, pelo que a sua atitude só pode ser entendida como sátira real. É verdade que não se pode absolver sem mais Adorno e Horkheimer do patriotismo do milieu da “burguesia cultural”. Este, no entanto, encontra-se mais no modo de exposição do que no conteúdo crítico. Se a “crítica da crítica” pós-moderna insiste sobretudo no primeiro, então ela mais uma vez diz mais sobre si mesma do que sobre o objeto que põe de lado. De fato, para o culturalismo pós-moderno, são sempre mais importantes os trapinhos, os acessórios, o “styling” e a atitude do que aquilo que neles se exprime. A inverdade crítica, e ela própria superficial da burguesia cultural, à superficialidade, vira-se num culto pós-moderno afirmativo da superficialidade. A aparência imediata ter-se-ia emancipado da sua essência. Ao que corresponde o modo de pensar positivista que submete os conteúdos a um método formal vazio e os condena à indiferença. A feira explícita da exterioridade, de que a crítica cultural conservadora e a nebulosa invocação de uma “interioridade” constitui uma mera inversão, naturalmente não é nada de novo. Ela regressa periodicamente, ainda que na pós-modernidade tenha experimentado por assim dizer a sua apoteose de capitalismo tardio e de capitalismo de crise. Heinrich Heine, no seu ensaio crítico sobre A Escola Romântica (1833), tem em mira de certa maneira uma atitude e um modo de proceder semelhantes para caracterizar o processo de autodissolução do romantismo: “Entre os imitadores de Fouqué tal como entre os imitadores de Walter Scott formou-se tristemente o costume de descrever apenas a manifestação exterior e o traje em vez de a natureza interna das pessoas e das coisas. Este gênero rasteiro e modo leve grassa atualmente tanto na Alemanha como na Inglaterra e em França. Mesmo se as descrições já não enaltecem o tempo da cavalaria, mas dizem respeito às nossas condições modernas, mesmo assim mantém-se o estilo antigo de ver apenas o acidental do fenómeno em vez de a sua essência. Os nossos novos romancistas, em vez de conhecimento das pessoas exprimem apenas conhecimento do vestuário, baseando-se talvez no mote: o hábito faz o monge”. Já foi dito muitas vezes e não foi só do lado conservador que a redução dos objetos à sua fenomenologia e decididamente à sua fachada, tal como o formalismo tanto estético como epistémico, constituem marcas ineludíveis de esgotamento cultural e social e de processos de dissolução; seja de uma formação social, de uma época, de um padrão cultural ou de uma determinada escola. A respeito de nosso objeto, trata-se não apenas do modelo em fim de linha da pós-modernidade, mas é esta que já constitui como tal e no seu conjunto o modelo em fim de linha da modernidade capitalista sob todos os pontos de vista. O baile de máscaras pós-moderno não representa senão uma festa de classe média em tempo de peste, nem sequer particularmente frívola, mas sim, aborrecida. De resto uma metáfora com que Roswitha Scholz caracterizou já nos anos noventa o carnaval histórico da pós-modernidade como fuga condenada ao fracasso para o palácio de cristal do capitalismo de cassino. Isso até hoje pouco mudou na consciência ideológica do caráter social pós-moderno apesar dos violentos surtos da crise. Quanto mais se invoca a “criatividade”, mais surge ininterruptamente a apresentação do acidental e do exterior. Não é a criação de algo novo que se exprime com emoção contra a determinação da essência, mas sim a fuga perante a essência negativa e completamente miserável da realidade da própria existência. A hipóstase da capa exterior cultural e metodológica encobre precisamente a causa central da indiferenciação, ou seja, a forma social geral e sobreposta como conteúdo substancial, à qual também a indústria cultural já pertence sempre. O que é “burguês” em sentido próprio na esfera cultural dominante não é um gesto conservador da “cultura” da associação de filólogos, mas o caráter de mercadoria dos seus produtos, que integra estes no reino do “trabalho abstrato” e a si mesmo se degrada em elemento abstrato na metamorfose do capital, como um móvel de design ou comida de design. Os protagonistas podem aqui ignorar reciprocamente o carácter de entretenimento ou sério. Ironicamente, a burguesia cultural clássica e as suas atuais figuras decadentes não se ilude de modo diferente do pós-modernismo que surfa nos meios de comunicação quanto à essência negativa da cultura capitalista. Ambos refletem apenas diferentes estágios do desenvolvimento capitalista do mesmo modo afirmativo. O pessimismo cultural é conservador e a formação positiva pós-moderna da indústria cultural é apenas pseudo-“progressista” no mesmo continuum capitalista não transcendido por nenhum dos lados. Por isso, a diferença se encontra apenas relativamente às embalagens ou aos penteados, enquanto a determinação categorial idêntica permanece escondida e não se consegue sentir o ridículo comum. Quando riem uns dos outros riem sempre apenas de si mesmos. Crítica cultural elitista ou emancipatória? O pessimismo cultural conservador é elitista até aos ossos e só a partir deste ponto de vista é pseudo-crítico da produção intelectual em série. A cultura há de supostamente morrer com o ocidente porque já não está reservada às classes superiores “cultas” mas assume o carácter de uma cultura de massas. A crítica da frivolidade, da superficialidade e da vulgaridade da indústria cultural reconduz-se assim diretamente ao fato de ser produzida para a grande maioria, incluindo as camadas sociais inferiores consideradas como que “por natureza” intelectualmente menores. Devia concederes-lhes com gosto uma espécie de divertimento ingénuo, de modo a terem o seu prazer inofensivo e evitarem maus pensamentos, desde que a alta cultura elitista mantivesse o seu caráter exclusivo e a coisa ficasse entre nós. Na indústria cultural, pelo contrário, sente-se como ameaçador que ela nivele as pretensões, ultrapasse as fronteiras sociais e desmascare como um disparate a aura de zelo cultural da antiga burguesia, uma vez que essa há muito perdeu a sua base histórica que só ideologicamente continua presente. Não é por acaso que Adorno e Horkheimer troçam dos “amigos da educação” que “idealizam como orgânico o passado pré-capitalista” imponentemente patriarcal. Por isso a cultura de massas industrial e comercializada não fica sujeita ao veredicto conservador por ser “o esclarecimento como mistificação das massas” (como diz o subtítulo do capítulo da Indústria Cultural), mas sim porque torna reconhecível a falsidade reacionária do auto-incensamento bucólico e imitador dos clássicos da consciência de professor efetivo que gostaria de refrescar a sua própria estupidez social na canonizada “nobre simplicidade e silenciosa grandeza” (Winckelmann) de heranças culturais irreais. Inversamente os profetas pop pós-modernos rejubilam exatamente com a mesma massificação industrial como se ela fosse per se valiosamente emancipatória. A cultura de massas já seria sempre boa, independentemente do conteúdo e da forma, e seja ela uma cultura autónoma das próprias massas ou uma cultura que obedece a imperativos heterônomos e perfeitamente independentes destinados à consciência estragada das massas. Uma afirmação mais ou menos do mesmo modo que para a ideologia do movimento de esquerda (de resto completamente marcada em termos pós-modernos) qualquer movimento de massas em si já tem de ser essencialmente “autêntico” seja qual o sentido em que se movimenta. A indústria cultural, independentemente da sua forma de mercadoria e de capital, enquanto acessibilidade geral e afirmação de massas, é considerada como momento de libertação no capitalismo de facto já não grandemente tematizado. Esta atitude aponta, no entanto, apenas para o brutal interesse próprio de uma determinada personagem na comercialização, nomeadamente como designer secundário acadêmico e publicista. Essa é a verdadeira razão porque ela gostaria de colar à teoria crítica o pessimismo cultural elitista conservador como qualidade determinante. Ora, o conceito negativo de indústria cultural em Adorno e Horkheimer quer dizer exatamente o contrário: não é a acessibilidade para todos que é objeto de crítica, mas sim que a indústria cultural, como eles dizem, “representa o mais sensível instrumento de controle social”. Trata-se, portanto, do conteúdo estruturalmente alienado e objetivamente autoritário da cultura de massas capitalista e não do seu alcance para lá das elites. Este conteúdo segundo Adorno e Horkheimer é “barbárie estética” porque processa a “moral degradada dos livros infantis de ontem” a fim de disponibilizar para os desaforos sociais os indivíduos cada vez mais infantilizados. A antítese da indústria cultural seria uma cultura para todos que se opusesse à coerção da mera repetição e internalização do princípio dominante; portanto nem uma cultura para poucos, que se mantém como mero ornamento desse princípio, nem uma cultura compensatória de terapia ocupacional democrática, que não passa de um mecanismo de controle híbrido. É justamente este carácter essencial da indústria cultural na forma da mercadoria que os ideólogos pop pós-modernos não querem reconhecer, embriagando-se pelo contrário nela. A crítica, se é que ela ainda surge, reduz-se a uma mera diferenciação interna que confere arbitrariamente um estatuto de culto pseudo-emancipatório a determinadas tendências de massas da indústria cultural, como se a compra e consumo dos respectivos produtos contrariasse o controle social de modo puramente imanente, enquanto outras produções são rejeitadas com fundamentação igualmente superficial. Reducionismo tecnológico Outro aspecto da crítica cultural genuinamente conservadora consiste no seu reducionismo tecnológico, que corresponde à atitude elitista de burguesia cultural. A cultura também estaria condenada à decadência supostamente porque a sua massificação exigiria simultaneamente uma mecanização tecnológica. É justamente contra esta interpretação que protestam Adorno e Horkheimer logo no início do capítulo da Indústria Cultural. Aí se diz: “Os interessados adoram explicar a indústria cultural em termos tecnológicos. A participação de milhões em tal indústria imporia métodos de reprodução que, por seu turno, fazem com que inevitavelmente, em numerosos locais, necessidades iguais sejam satisfeitas com produtos estandardizados. Ora isso não deve ser atribuído a uma lei de desenvolvimento da técnica enquanto tal, mas sim à sua função na economia contemporânea”. Para os dois autores esta função é dupla: o controle social é eficaz como efeito colateral justamente porque a cultura foi transformada num objeto imediato da produção para o puro lucro. Ou, expresso em termos de filosofia social nas palavras de Adorno e Horkheimer: “Tudo só tem valor na medida em que se pode trocá-lo, não na medida em que é algo em si mesmo”. Sob o totalitarismo da economia isto é válido tanto para o mais simples objeto de uso material como para os bens da produção cultural capitalizada. Tal como um casaco socialmente não é um casaco e o leite não é leite, mas ambos aparecem igualmente como objetivação de “trabalho abstrato” e portanto como quantidade abstrata de preço, assim também a qualidade sensível e estética de bens culturais musicais ou literários e teóricos é degradada pela sua forma abstrata de valor e de certa maneira morta, porque esta apenas proporciona ao produto o acesso à “validade” e à participação na massa de substância social do valor, permanecendo o conteúdo específico para si indiferente. Em todo o caso, poder-se-á anotar a formulação de Adorno e Horkheimer que não se trata aqui do processo de uma mera “troca”. Pois a circulação representa apenas a esfera de “realização” da “riqueza abstrata” como fim em si mesmo (Marx), ou seja, o regresso da substância do valor representada no corpo das mercadorias à forma do dinheiro que lhe é “própria”. É em primeiro lugar desta objetividade económica fetichista, com a sua permanente mudança de forma interna a que o objeto real permanece exterior, que deriva a estandardização mecânica e o nivelamento dos conteúdos, e não de uma exigência puramente tecnológica. A crítica cultural conservadora insiste no processo tecnológico de produção em massa justamente porque gostaria de manter fora da linha de tiro a essência negativa da forma social de mercadoria. O pós-modernismo agudiza mesmo essa ignorância, uma vez que já nem sequer recusa a crítica da determinação social da forma, mas declara-a desde logo impossível epistémica e logicamente. A oposição à retórica de decadência dos conservadores consiste então novamente numa mera inversão da sua redução tecnológica. Seria justamente a tecnologia como tal que desenvolveria efeitos benéficos independentemente da sua forma capitalista (ou mesmo tornados gentilmente possíveis apenas por esta). A crença pós-moderna inversa na libertação cultural através da tecnologia sucumbe também ao mesmo mal-entendido. Pessimismo cultural conservador e otimismo cultural pós-moderno constituem na sua limitação tecnológica as duas faces da mesma medalha. Ambas escondem igualmente a dominação da “riqueza abstrata” capitalista sobre os conteúdos e as formas de exposição dos bens culturais. Em todo o caso, a tecnologia da indústria cultural não está imune à forma económica do fetiche do capital nem à função de controle social a ela associada. Ela não é de modo nenhum neutra na sua forma de manifestação concreta, à semelhança dos meios técnicos de produção nas outras indústrias capitalistas. Mas não se deve confundir causa com efeito. É a forma e a estrutura da tecnologia que obedece aos imperativos da relação social e não o contrário. Os aparelhos estão geneticamente impregnados pela forma social. O desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo é sempre simultaneamente um desenvolvimento de forças destrutivas. Isto é válido não apenas num sentido superficial e particular, por exemplo para a industrialização da guerra, com a bomba atómica como ponto culminante da técnica e última ratio dos progressos democráticos. Também a linha de montagem não representa um aumento puro e neutro da produtividade, pelo contrário, na sua determinação concreta pertence igualmente à miséria do trabalho abstrato a que os produtores estão subjugados. A indústria cultural não é exceção nesta identidade entre produtividade abstrata e destruição. O momento destrutivo do fim em si mesmo económico fetichista atinge, modela e violenta de múltiplos modos para lá da correspondente orientação das técnicas de produção também os conteúdos culturais. Tal como no caso das mercadorias para as necessidades do dia-a-dia, não se trata do conteúdo da necessidade, mas sim da sua adaptação também técnica ao conteúdo da valorização. A inversão capitalista entre meio e fim, entre concreto e abstrato apresenta-se de modo específico na produção de bens culturais. De fato pode entender-se isto também como inversão entre técnica de produção e conteúdo ou entre inovação técnica e conteúdo: não é um conteúdo que procura para si uma técnica adequada, pelo contrário, qualquer conteúdo é adaptado a uma técnica rentável e a “criatividade” reduz-se exatamente a isso. Mas também esta relação não deriva de qualquer relação independente de técnica e conteúdo, mas sim do facto de ambas serem forçadas à cama de Procrustes do imperativo do valor. Adorno e Horkheimer escrevem a este respeito: “A indústria cultural se desenvolveu com a primazia dos efeitos, dos detalhes técnicos sobre a obra, que outrora trazia a ideia e com essa foi liquidada”. Deste modo se inverte a relação entre conteúdo e modo de representação. Na indústria cultural este último parece autonomizar-se, como se mostra de seguida: “O fato de que suas inovações características não passam de aperfeiçoamentos da produção em massa não é exterior ao sistema. É com razão que o interesse de inúmeros consumidores se prende à técnica, não aos conteúdos teimosamente repetidos, ocos e já em parte abandonados”. Tal como na produção o que está em causa é apenas o aumento das vendas, também no consumo consequentemente o que está em causa é apenas a função técnica de brinquedo igualmente indiferente ao conteúdo. Mas se os “detalhes técnicos” já não são expressão da ideia do conteúdo, dominando pelo contrário acima do conteúdo e “liquidando” a ideia, esta tendência irresistível é ela própria por sua vez devida à forma geral de mercadoria tanto do meio de produção como também dos produtos. A formulação aponta justamente para o facto de que a técnica dos meros efeitos não existe por acaso, mas é expressão daquele totalitarismo económico que nos tempos pós-modernos ainda se agravou enormemente em comparação com meados do século passado. A publicidade como percepção cultural do mundo e de si mesmo O efeito tecnológico tem o seu modelo na publicidade omnipresente, na estética das mercadorias do mercado mundial. A ideia de conteúdo não possui qualquer existência própria; ela está à partida ao serviço de uma coisa que lhe é exterior e por isso ela é também casual, tornada irreal de modo formalista e abafada no mero efeito. É justamente para esta dimensão da estética das mercadorias que Adorno e Horkheimer apontam já em 1944, na fase final da totalização do design publicitário no mundo da vida: “A cultura é uma mercadoria paradoxal. Ela está tão completamente submetida à lei da troca que não é mais trocada. Ela se confunde tão cegamente com o uso que não se pode mais usá-la. É por isso que ela se funde com a publicidade.… A publicidade é seu elixir da vida. (O seu) produto … acaba por coincidir com a publicidade de que precisa por ser intragável”. De notar aqui, como já se assinalou, a redução notória que ocorre em Adorno e Horkheimer à chamada “troca” que representa uma truncagem na economia, pois no sistema do “trabalho abstrato” reacoplado a si mesmo não pode falar-se de “troca” em sentido próprio. Apenas a uma observação superficial a forma dinheiro corresponde a uma “relação de troca” externa, sendo que essencialmente faz parte do fim em si autonomizado da “riqueza abstrata” como auto-relação interna do capital. Abstraindo disso, é justamente apenas perante este pano de fundo que aquela autonomização secundária da publicidade se torna possível e acaba por se tornar uma necessidade que imprime o seu selo em toda a produção cultural, como se diz no capítulo da Indústria Cultural: “A publicidade converte-se na arte pura e simples com a qual Goebbels a identificou premonitoriamente”. Deste modo “uma olhadela rápida mal consegue distinguir texto e imagem publicitários da parte redacional”. A atividade artística é tão pouco livre como na idade média cristã, pois tal como então qualquer representação tinha de repetir sempre a mesma constituição religiosa, também agora ela se transforma sempre na mesma publicidade, justamente na sua aparentemente fortuita “multiplicidade” e contingência, publicidade que a si mesma se recomenda e aprecia na figura de automóveis, bebidas energéticas, telemóveis ou bonés de basebol. Representar o mundo na forma autonomizada da publicidade significa só conseguir percebê-lo na forma da mercadoria autonomizada. Isto afeta também a autopercepção e as relações sociais dos indivíduos. Até na intimidade, que já não existe, nasce uma distância mediatizada que tem como pressuposto uma completa ausência de distância em relação aos imperativos sociais. Já não existe qualquer espaço de tranquilidade social não sobrecarregado com as exigências da dominação. O modelo de identidade posto em movimento tem de se apresentar sempre e em toda a parte à sentença das “tabelas de opinião” no eterno carnaval da subjetividade como uma marca de cerveja ou de perfume. O capital humano ambulante precisa dos produtos da indústria cultural em sentido lato não tanto para uso, mas mais como sujeito para a teimosa “auto-representação” em que os portadores do traje estão secretamente convencidos da sua falta de valor. Os atores para si mesmos nem sequer quando estão sozinhos podem abandonar o seu papel. A máscara de carácter secundário da indústria cultural do autovendedor precário está colada à pele. Dá a impressão quase ameaçadoramente que também neste aspecto se pode percorrer a complementaridade polar de pessimismo cultural conservador e optimismo cultural pós-moderno crente no progresso. Mais uma vez os suportes da reflexão da burguesia cultural troçam da publicidade apenas porque gostariam de conseguir uma barreira ideológica contra a infiltração do econômico vulgar na esfera elitista da arte. Eles barram o efeito sem conteúdo apenas para conseguir parar a comercialização de pretensos “bens mais sagrados” sem quererem tocar minimamente no capitalismo. Assim, a publicidade vulgar não deve poder ser reconhecida como a face que sorri trocista no espelho à refinada arte burguesa. Nesse aspecto, tal como em qualquer outro, a forma social da relação fetichista devorou o conteúdo. O que resta também na arte oficial para os círculos superiores, que já só consegue ser elitista no preço em dinheiro, é a comum autovenda pelos artistas de salão que são “vanguardistas” ao máximo quando com vergonha viram os quadros para a parede e escurecem os textos. E mais uma vez o pós-modernismo apenas vira a crítica aparente do pessimismo cultural e proclama a publicidade como libertação da arte do toque de museu de um classicismo de mestre-escola. O caráter auto-represivo das mônadas da auto-representação alimentadas pelo complexo totalitário da indústria cultural é tão escondido aqui como no caso da contraparte conservadora. A distância hipocritamente assumida da consciência de burguesia cultural em relação à literal comunidade de publicidade universal e autopublicidade vira-se, no entanto, na divisa pós-modernista “estar presente é tudo”. Não só a proximidade formal, mas também a conexão interna entre propaganda populista e publicidade ou não devem ser mencionadas ou consideram-se mesmo susceptíveis de carga positiva. O pós-modernismo está assim de acordo com Goebbels sem querer saber disso. Cada um apraz-se em efeitos sem conteúdo para assim renovar a própria máscara de carácter e deixar qualquer crítica à partida sem objeto. A consciência do estilo de vida pós-moderno é já apenas uma espécie de boné de beisebol coletivo ideal que se promove a si mesmo. A continuação do "trabalho abstrato" e da concorrência por outros meios A apologia pós-moderna do predomínio do efeito e do detalhe técnico sobre o conteúdo gosta de afirmar que isso está associado a um conforto cultural que garante o “prazer sem remorsos”. Que mal haverá nisso? Uma vez que se dissolveu qualquer critério de conteúdo e a crítica foi declarada uma impossibilidade, gostaria ainda de se proceder como se a mercadoria da indústria cultural caísse do céu como uma espécie de maná ou voasse para a boca de cada um como os pombos assados do país da cocanha. Inversamente a burguesia cultural conservadora, na medida em que ainda sequer existe e não tem já de se colocar na forma do passado, vê a indústria cultural como pechincha cultural deselegante e considera que o consumo dos seus produtos só se faz sem esforço porque se trata de lixo absolutamente sem pretensões que envenena a mente e a alma. Contra isso são apresentados os “trabalhos de elevada pretensão” produzidos, os únicos que devem ser válidos para os “verdadeiros artistas” bem como para os “verdadeiros apreciadores da arte”, como pequena, mas refinada comunidade de um “conhecimento” sem preço. Também neste aspecto os otimistas pós-modernos da cultura e os pessimistas conservadores da cultura estão bem uns para os outros: ambos afirmam por igual a facilidade e o prazer sem esforço do consumo da indústria cultural, só que este gozo supostamente cómodo é avaliado de maneira oposta. Adorno e Horkheimer abordam o assunto de modo completamente diferente. De acordo com a sua origem, de facto, eles não estão imunes ao auto-incensamento que simplesmente assenta mais na canonização e na restrição no sentido da alta cultura burguesa do que na primazia do conteúdo. Mas, independentemente deste condicionamento sócio-histórico, eles não deixam de ver o contexto de mediação interna entre a indústria cultural e a pressão para a eficiência no trabalho capitalista, entre “trabalho abstrato” e “gozo do tempo livre” pretensamente sem remorsos. Não se trata aqui simplesmente da crítica a um simples efeito compensatório, como se uma coisa fosse exterior à outra. Na realidade, a dialética do consumo pop totalmente capitalizado consiste precisamente em que a coerção social e a liberdade de escolha do objeto, o esgotamento perturbado da energia laboral protestante e a autocomplacência na exposição não só correspondem, mas transformam-se uma na outra e uma manifesta-se na outra. O trabalho pesado de miséria não é apenas o pressuposto indispensável, que se gostaria de manter discreto, mas sempre o pressuposto consciente para a capacidade de compra. Adorno e Horkheimer não invocam o perigo de um gozo demasiado fácil para a capacidade de trabalho que, no entanto, seria preciso exigir, mas mostram que aquele cômodo conforto é em si mesmo ilusório. O que é dado enquanto tal não pode ser separado do seu contrário no processo de ganhar dinheiro, como eles deixam claro: “A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é procurada pelos que querem se subtrair aos processos de trabalho mecanizado, para que estejam de novo em condições de enfrentá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a mecanização adquiriu tanto poder sobre o homem em seu tempo de lazer e sobre sua felicidade, determinada integralmente pela fabricação dos produtos de divertimento, que ele apenas pode captar as cópias e as reproduções do próprio processo de trabalho”. Mais uma vez não é a exigência da técnica de reprodução em si que realiza esta inversão fatal, mas sim o totalitarismo fetichista da forma geral da mercadoria que tendencialmente transforma todas as expressões vitais em “trabalho abstrato” ou pelo menos as equipara a ele; mesmo não estando ligadas a qualquer processo de valorização real. Não há qualquer verdadeiro relaxamento na falsa concentração e fixação no trabalho do sujeito. Mesmo o deixa-andar tem de ser instrumentalmente organizado e profissionalizado para que se transforme no seu exato contrário. É para isso que aponta uma das mais frequentemente citadas passagens do capítulo da Indústria Cultural: “O fun (em inglês no original: gracejo) é um banho medicinal, que a indústria da diversão prescreve incessantemente”. Não só a coerção para o trabalho e o delírio do esforço se reproduzem no consumo de mercadorias da indústria cultural, mas também a monadologia objetiva da esfera da circulação capitalista, ou, como observam Adorno e Horkheimer, “a dureza da sociedade da concorrência”. O fun também se torna um banho medicinal porque o “gozo” não é inocente nem cómodo, e nem sequer inteligente, mas, apesar de toda a camaradagem das festas, torna-se numa inspeção do design dos corpos, dos trapos e das personalidades, em que cada simulacro de eu só consegue divertir-se contra todos os outros e tem de fazer crer permanentemente a si mesmo que o prazer está nisso. Mesmo a máscara de tempo livre forçadamente alegre, como se diz no resumo do capítulo da Indústria Cultural, “atesta a tentativa de fazer de si mesmo um aparelho eficiente…”. Em lado nenhum isto se mostra mais claramente do que nas micro-empresas pós-modernas de high-tech e de publicidade. O “trabalho abstrato” e a concorrência só se tornam um jogo e uma festa porque tanto a festa como o jogo há muito que se transformaram em “trabalho abstrato” e concorrência. Com isso se revela a indústria cultural também como uma organização com conotação sexual. Mulheres e homens situam-se aí de modo diferente apesar de todas as modificações culturais, exatamente porque se trata de modelos, simulações e formas de reprodução do “trabalho abstrato”. Pois a forma de sujeito assim determinada, incluindo a da concorrência universal, tem conotação estruturalmente masculina, como Roswitha Scholz mostrou na sua teoria da dissociação sexual que, pela primeira vez, tematiza a relação de gênero à altura conceitual das categorias capitalistas fundamentais. Mesmo estando as mulheres cada vez mais integradas na esfera do “trabalho abstrato” e na esfera pública capitalista elas continuam a ser aí menos apreciadas porque continua a cair sobre elas a responsabilidade no sentido mais amplo pela oikos dissociada daquela esfera na medida em que não se pode expressar em dinheiro (gestão da casa, cuidar das crianças e dos idosos etc.). Esta relação capitalista entre os sexos profundamente ancorada no inconsciente coletivo atravessa todos os domínios sociais. E assim por maioria de razão se reproduz no “banho medicinal” da tensa empresa do divertimento. As mulheres, entretanto, concorrem aí com outros corpos diferentes dos corpos sexuais aparentemente autodeterminados que se revelam como “mulheres” em todas as autonomias individualizadas. Também como “capazes de fazer tudo”, que devem ser igualmente responsáveis pela família e pela profissão, elas não perdem a acentuação específica sexual – ainda que de forma modificada – e o “ser mãe” continua a matraquear por trás. Isto repercute-se na sua auto-imagem co-fabricada pela indústria cultural; daí que elas também não sejam realmente tomadas a sério como sujeitas do fun. A Internet como novo meio central da indústria cultural Está na altura, como seria de esperar, de enfrentar a Internet como complexo mais avançado da indústria cultural. A “Net” constitui sem dúvida a tecnologia pós-moderna perfeita que não por acaso é comparada com a descoberta da imprensa no início da modernidade considerando-se que terá efeitos igualmente revolucionários. Mas, tal como a impressão de livros e as suas consequências sociais não se podem entender a partir de si mesmas, mas apenas no contexto do processo de constituição histórica proto-capitalista, também a Internet não pode ser declarada um estabelecimento tecnológico autónomo com potencialidade de mudança social, mas apenas como momento sócio-tecnológico nos limites históricos do capitalismo. A oposição complementar até aqui esboçada entre o pessimismo cultural da burguesia cultural e o optimismo cultural pós-moderno fica quase sem razão de ser neste complexo ultra midiático; e de facto sobretudo porque a alta cultura conservadora e de filologia antiga da burguesia clássica está pronta a capitular incondicionalmente. A correspondente burguesia cultural no contexto específico alemão foi por um lado desde sempre uma burguesia de fantasia, um grupo social difuso e multifacetado, cujos membros pretendiam considerar-se “algo melhores” justamente no aspecto cultural. Esta demarcação referia-se não apenas às qualificações (académicas) superiores, mas a um cânone cultural tendo por cerne as línguas antigas, a filosofia clássica e a poesia do idealismo alemão. A pretensão a isto associada de “cultura superior” ia muito para lá dos poucos especialistas no assunto; abrangia todo o espaço académico e também certamente o pessoal docente e até os que concluíram o secundário. Por isso a demarcação não era apenas face às “massas incultas”, mas também contra as elites dos outros países capitalistas. Uma burguesia de fantasia era o certamente também no que diz respeito à competência quanto ao conteúdo daquele cânone cultural que para a maioria desta classe não passava de superficial e ia perfeitamente de braço dado com os ritos de vapores de cerveja e a brutalidade nas relações sociais. Esta velha “barbárie culta” da burguesia acadêmica alemã extinguiu-se na época das guerras mundiais e não há que chorar por ela. Na democracia de mercado mundial após 1945 desapareceu ainda mais o cânone cultural clássico dando cada vez mais lugar a uma mera consciência de elite funcional. O que restou foi um fraco reflexo da pretensão de resto nunca realmente cumprida e um resíduo apenas fantasmagórico da falsa consciência de ser “algo melhor”. Na atual ideologia de classe média este impulso reduz-se cada vez mais à tentativa de compartimentar a qualificação a nível do secundário da própria prole contra as novas classes inferiores e os migrantes, ou seja, de sabotar qualquer ultrapassagem do há muito anacrônico sistema escolar em três graus da RFA. Quanto aos conteúdos, o império fantasmático da burguesia cultural desapareceu definitivamente com a terceira revolução industrial. A presunção elitista há muito que já não se refere à capacidade de conseguir recitar Homero no texto original, mas sim a uma mistura de economia política e “competência multimédia” que dá o perfil ideal para o indivíduo pós-moderno de via estreita enquanto “aparelho de sucesso”; mesmo que seja apenas na nova fantasia do respectivo milieu. A consciência de elite sem fundamento trocou com muito sofrimento a máscara colada à cara; ela tornou-se tão vulgarmente da economia capitalista e tão ordinariamente tecnológica como toda a organização democrática. Mesmo os professores de latim, cientistas literários e catedráticos de filosofia vão como aprendizes para junto de jovens e dinâmicos empresários aldrabões e desfazem-se em admiração perante maluquinhos de treze anos que gostam de se considerar virtuosos no clique de rato. A nova elite é notoriamente sem pretensões espirituais e aparelhada para o curso de mercado de modo tão reducionista que as universidades “de excelência” poderão ser consideradas quando muito como ironia objetiva. A apoteose do complexo da indústria cultural consiste em que a elite de todos os setores está transformada em meras figuras de banda desenhada que se deleitam extraordinariamente no seu estado porque já não têm qualquer critério de comparação. Adorno e Horkheimer em 1945 ainda não podiam saber da revolução tecnológica digital nem da sua aplicação ao desenvolvimento capitalista. Mas estavam perfeitamente em posição de prognosticar a tendência geral para a integração midiática no que respeita à indústria cultural, tal como Marx o tinha feito para a cientificização da indústria capitalista. “A televisão”, escrevem eles, “tende a uma síntese do rádio e do cinema” e isso irá dar na “realização irônica do sonho wagneriano da obra de arte total". Pois a “harmonização entre palavra, imagem e música”, uma vez que já não segue qualquer lei cultural própria, é apenas “o triunfo do capital investido”. É fácil de perceber que a Internet se prepara para consumar a síntese da indústria cultural numa escala ainda maior. As diferentes tecnologias de impressão, telefone, telefonia, rádio, cinema e televisão são fundidas num único complexo global. No entanto, daí não emerge novamente uma revolução tecnológica enquanto tal, mas é a lógica (que penetra geneticamente todo o sistema) do “trabalho abstrato”, da forma autonomizada do valor e do controle social por estas regido que constitui a matriz e simultaneamente o movens desta integração mediática. A força sintética não resulta de qualquer reflexão consciente e nem sequer das atividades autônomas dos indivíduos, mas emana pelo contrário da determinação heterônoma da forma social. Por isso se condensam e agravam na Internet como novo meio central todas as contradições e déficits que Adorno e Horkheimer detectaram precocemente na indústria cultural. De fato, trata-se apenas da pressentida “realização irônica do sonho wagneriano da obra de arte total” num sentido abrangente. O que se pode assinalar em alguns aspectos essenciais. A virtualização do mundo da vida Desde o início que é inerente à indústria cultural a tendência para inverter a relação entre objeto e representação, entre signo e significado, ou apagar a diferença entre eles. Aqui apenas surge o “mundo invertido” geral da relação de capital numa dimensão específica da indústria cultural. Horkheimer e Adorno veem esta tendência de inversão já no então recente meio do cinema a cores: “O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural. A velha experiência do espectador de cinema, que percebe a rua como um prolongamento do filme que acabou de ver, porque este pretende ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quotidiana, tornou-se a norma da produção. Quanto maior a perfeição com que suas técnicas duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme”. Não se trata de um propósito consciente, por exemplo no sentido de uma “manipulação” deliberada da consciência (como também em Adorno e Horkheimer parece ser sugerido ocasionalmente mais tarde), pelo contrário, o momento manipulativo reside na lógica objetiva das relações e na própria expressão delas na indústria cultural: “A vida não deve mais, tendencialmente, poder se distinguir do filme sonoro”. Esta formulação no capítulo da Indústria Cultural aponta para um “dever” no sentido do “sujeito automático” (Marx) da valorização do capital. Os indivíduos manipulam-se em certa medida a si mesmos justamente porque são “sujeitos” do imperativo capitalista. Tal como se consuma uma inversão porque a produção concreta já só é socialmente “válida” como forma de manifestação do “trabalho abstrato”, tal como a forma das mercadorias se duplica na forma do dinheiro e como a “riqueza concreta” só pode ser forma de representação e de manifestação da “riqueza abstrata”: também se inverte e duplica a percepção e a representação cultural-simbólica do mundo e da própria existência. A autonomização já esboçada do efeito técnico sem conteúdo vai ainda mais longe e agrega-se num pseudo-mundo, uma vez que os objetos concretos tal como os indivíduos com eles relacionados se tornam meras formas de manifestação do seu próprio modo de representação e este último desenvolve uma espécie de vida aparente. Ao que Marx designou por “formas de existência objetivas”, ou seja, à verdadeira vida no capitalismo marcada pelos imperativos da valorização e da autovalorização, é sobreposta uma segunda realidade virtual: uma encenação e auto-encenação mediática. Este conceito tornou-se inflacionário como semicrítico ou diretamente afirmativo. Não por acaso se expandem designações do mundo do teatro como metáforas em todos os domínios da vida. Os indivíduos consideram-se cada vez mais como os seus próprios atores no seu próprio teatro. Esta pseudo-vida virtual não só tem função compensatória para a miséria das relações sociais reais, mas também é imaginativa e ideologicamente elevada a “verdadeira” realidade, perante a qual a existência material e social real surge como mero apêndice e já quase como irreal. As palavras de Adorno e Horkheimer sobre a indistinguibilidade e mesmo inversão mediáticas entre o ser social e o parecer produzido pela indústria cultural são proféticas porque já fazem ver no cinema uma tendência que vai muito para além dele. Para a maioria dos consumidores da indústria cultural de então, o cinema a cores ainda era reconhecível como produto das fábricas de sonhos e a sala de cinema identificada como um lugar onde uma pessoa não se instala a sério, mas entra ocasionalmente saindo do mundo do dia-a-dia. A Internet, pelo contrário, não em geral mas para um número elevado e crescente de pessoas em diferentes graus, tornou-se uma espécie de residência espiritual e cultural que inversamente se abandona apenas ocasionalmente para uma visita à realidade social e material. Esta inversão entre aparência mediática e realidade atingiu, com a ajuda do desenvolvimento tecnológico e a síntese dos aparelhos electrónicos, pelo menos uma nova dimensão. Certamente que não devemos cair no erro de levar o clichê demasiado a sério. Abstraindo do fato de que a maior parte da humanidade não tem acesso ou tem um acesso limitado à Internet e que com a expansão se vão revelando limites de saturação por falta de poder de compra e/ou de infraestruturas, também para muitos utilizadores habituais a diferença entre o mundo real, e o virtual de modo nenhum desapareceu. O que aliás nem sequer é possível, tal como o valor abstrato de modo nenhum consegue fazer desaparecer a necessidade de bens de uso materiais na sua maneira de representação na forma do dinheiro. Se o dinheiro não se pode comer, muito menos downloads. A hipóstase da virtualidade também não constitui um simples problema geracional como muitas vezes se quer fazer crer. A pretensa “geração Net” de “nativos do digital” é mais uma lenda de fazedores de opinião interessados. Na realidade não existe grupo etário uniformizado numa socialização digital específica. Não se deve confundir o consumo talvez mais frequente de meios de comunicação electrónicos nem com uma maior competência no assunto nem com um movimento da percepção sem dificuldades. Também entre os teenagers se encontram não poucos indivíduos com dificuldade em lidar com um ambiente digitalizado; não é apenas entre adultos mais velhos. E o consumo superficial de brinquedos das tecnologias da informação da indústria cultural não põe em ação qualquer “soberania”, muito menos se isso assumiu um carácter de vício. Em todas as gerações há poucos possuidores de uma efetiva competência digital abrangente; e não é certo o sentido em que a aplicam. A adaptação pretensamente mais fácil de teens e twens à virtualização tecnológica do mundo da vida é em parte mera ilusão de especialistas profissionais em juventude, mas em parte também auto-ilusão da geração com esses interesses, na sua própria falsa consciência. Ou também uma auto-ilusão dos seus pais e avós com uma socialização de burguesia cultural residual que gostariam de atribuir à própria prole especiais oportunidades de futuro, como capital humano capaz de clicar no rato. O “darwinismo da mídia” frequentemente invocado poderá facilmente ficar para trás. As jovens competências mediáticas de via reduzida de hoje, que já nem livros lêem, são os perdedores de amanhã, mesmo do ponto de vista da imanência capitalista. Os propagandistas da tendência para a virtualização, em todo o caso real, nem coincidem com o ensino das competências tecnológicas, nem refletem sobre as contradições insolúveis surgidas nesta tendência ou sobre o ilusionismo a elas associado. Pelo contrário, estamos perante uma certa parte da produção de opinião acadêmica e midiática que conseguiu um estatuto hegemónico porque este confere uma expressão ideológica afirmativa ao desenvolvimento capitalista no princípio do século XXI. A pressão para a virtualização, na medida em que se generaliza de acordo com a tendência em todo ocaso paralisante, corresponde antes a uma zelosa adaptação à ideologia hegemônica e assim a um estado em que as necessidades próprias já não se conseguem distinguir de um conformismo sem cerimónias. Em todo o caso, a fuga para um além simulado digital aponta para a miséria da realidade capitalista. O desacoplamento da consciência pós-moderna do velho cânone cultural burguês de modo nenhum produz qualquer novo conteúdo, mas transforma em conteúdo a própria “forma vazia”, assim consumando a ilusão objetiva do capital que gostaria de emancipar a “riqueza abstrata” da matéria e da natureza. Pertence à essência da ideologia pós-moderna anti-essencialista que a relação referencial entre representação e objeto, modus e conteúdo ou signo e significado tenha de ser apagada. Se o culturalismo propaga a autonomização dos sistemas de signos e dos modi, ele sucumbe à abstração funcional do comprar e vender na esfera de mercado burguesa que já não quer saber da sua substância fetichista. A síntese de meios da indústria cultural através da Internet fornece uma base tecnológica para a emancipação ilusória dos signos. O gradual desaparecimento do mundo em correntes de dados amarra a aparência real fetichista da mercadoria num plano diferente, como campo de jogos universal mecanicamente produzido, sobre o qual não só os objetos, mas também as pessoas se duplicam e na sua virtualização proporcionam a si mesmas uma vida aparente que corresponde à sua real nulidade e indignidade. O espaço virtual é assombrado pelos avatares enquanto espíritos dos mortos vivos que realmente vegetam nos campos de concentração da valorização do capital e da administração do trabalho. O virtualismo integrado da indústria cultural penetrou a respectiva tecnologia; mas mais uma vez a razão não é a tecnologia como tal, pelo contrário, esta assume o seu carácter através do carácter da forma de sujeito capitalista, que vai bisbilhotando numa dinâmica cega. Por isso, também não é por acaso que a maioria das presenças no campo de jogos virtual são masculinas. Na realidade os homens e as mulheres individualmente não se encaixam nas suas atribuições sócio-históricas, como foi demonstrado na teoria da dissociação sexual, mas em média também não podem livrar-se delas enquanto a relação social subjacente não for abolida. A atenção conotada como feminina para com crianças, idosos e doentes dela necessitados até já nas novelas surge na melhor das hipóteses de forma idealizada; é de todo impossível encená-la como “realidade virtual” porque nesta área não é possível qualquer simulação técnica sob pena de se revelar imediatamente o carácter absurdo desta. O espaço virtual constitui o império espiritual secundário, duplicado do “trabalho abstrato” também no sentido do seu devir historicamente irreal; e os avatares que o assombram são sobretudo fantasmas da masculinidade patriarcal moderna. Interatividade da Web 2.0 e individualização À medida que os massmedia eletrônicos modernos e a produção da indústria cultural a eles associada entravam na vida eles eram também calibrados formal e tecnologicamente para a passividade do seu público. Adorno e Horkheimer vêm aí decididamente uma marca estrutural essencial da indústria cultural: “A passagem do telefone ao rádio separou claramente os papéis. Liberal, o telefone permitia que os participantes ainda desempenhassem o papel do sujeito. Democrático, o rádio transforma-os a todos igualmente em ouvintes, para entregá-los autoritariamente aos programas, iguais uns aos outros, das diferentes estações. Não se desenvolveu nenhum dispositivo de réplica e as emissões privadas são mantidas na servidão”. A apologia pós-moderna do “espetáculo” (Debord) da indústria cultural julga poder intervir triunfantemente neste lugar para provar o caráter antiquado do pessimismo cultural da teoria crítica. Pois se a falta de um “dispositivo de réplica” era notória para os média pré-digitais e mesmo para o estágio inicial da Internet, entretanto – apressa-se a concluir o arrazoado pop pós-moderno – a velha estrutura autoritária de “emissor e receptor” estaria de facto superada. A palavra-chave é “interatividade”. A mutação sem fim da Internet teria conduzido à nova realidade da Web 2.0 interativa, é o que não cessa de ser dito tanto nos suplementos culturais como no mundo académico. Neste nível qualquer “utilizador” pode sempre e em toda a parte ligar-se e do modo mais personalizado possível intervir pela palavra (ou pela imagem). Os passos desta mutação são elucidativos. Vão desde a pseudo-participação em programas de rádio com participação telefónica dos ouvintes, jogos de marcar presença com cumprimentos tolos “a todos os que me conhecem” etc., passando pelo inflacionamento de websites privados, até aos Blogs, às formas diretamente interativas da “função comentário” nas mailing lists ou nas edições eletrônicas da mídia impressa, às redes “de amizade” da Web 2.0 e aos serviços informativos como o “Twitter”. Mas todas estas formas de interação digital conduziram tão pouco a uma emancipação mediada de modo puramente tecnológico como todas as formas anteriores da indústria cultural. O conceito de um mero “dispositivo de réplica” foi talvez escolhido com infelicidade por Adorno e Horkheimer, porque eles também não podiam entender esta função de modo reduzido à técnica. Mas trata-se de algo diferente. A capacidade de réplica é organizada apenas no nível do objeto e do equipamento e não ao nível social. A expressão “redes sociais” digitais que aparentemente contradiz esta avaliação não passa de um eufemismo. O social refere-se aqui a um contexto quase exclusivamente virtual, meramente simulado; trata-se na maior parte das vezes de amizades irreais entre avatares. Os verdadeiros indivíduos ficam muitas vezes anónimos, ou tiram a máscara apenas de modo exibicionista na distância midiaticamente mediada que aparentemente permite uma proximidade primitiva secundária. À irrealidade corresponde o não compromisso; de resto algo essencial da disposição íntima pós-moderna que foge de qualquer compromisso como o diabo da cruz. Esta óbvia fenomenologia da Web 2.0 é geralmente conhecida e frequentemente tematizada; não em último lugar nos mesmos suplementos culturais que gostam de delirar sobre a interatividade digital. Mas gostam pouco de refletir sobre os seus pressupostos e consequências. O pano de fundo é constituído desde logo não pela pura tecnologia, mas sim, como não podia deixar de ser, pelo desenvolvimento social logicamente corrente e associado à “interpretação” tecnológica. O dispositivo como tal fornece apenas o termo aliás traiçoeiro da “interatividade” ou “interação”, como se se tratasse de uma relação recíproca entre planetas, moléculas, insetos ou componentes mecânicos. Esta desumanização, já insinuada no termo quase igualmente neutro de “comunicação”, corresponde ao estatuto desrealizado das pessoas participantes, que se transformaram literalmente em simples máscaras. Poder-se-ia designar como astúcia negativa da razão capitalista o facto de o “dispositivo de réplica” técnico surgir precisamente no momento em que os sujeitos socialmente reduzidos ao mínimo e virtualmente desumanizados e tornados reconhecíveis como meros atores já não têm nada para dizer uns aos outros, pelo contrário, já só conseguem apresentar uns aos outros as suas máscaras. Portanto não se fala de “diálogo”, de “discussão” nem muito menos de “polémica”, não por acaso proibida, mas sim de uma “interatividade” vazia e mecânica a que os indivíduos burgueses se reduziram a si mesmos. Adorno e Horkheimer pressentiram já em 1944 o estado de decadência da subjetividade capitalista que Ulrich Beck caracterizou quarenta anos mais tarde como “individualização”. Ao contrário das hipóteses optimistas de Beck, eles já sabiam antecipadamente que o processo não tinha nada a ver com a libertação dos indivíduos da coerção social objetivada, mas sim com um novo patamar da sua interiorização, que se exprime também exteriormente como nova qualidade da mera “libertação” no sentido de uma universal situação de fora de lei [Vogelfreiheit]. O indivíduo abstrato, desde início o tipo lógico ideal de sujeito funcional capitalista, ou seja, o contrário de um indivíduo concreto vivendo conscientemente a sua própria socialidade, após um longo e doloroso processo de desenvolvimento refinou-se até à pura forma pós-moderna, em que surge já apenas como um ponto ou como uma “unidade”. O capital, o “sujeito automático” da valorização, é agora a auto-referência imediata, não filtrada, louca e demoníaca do sujeito: cada um é o seu próprio capitalista, cada um é o seu próprio trabalhador. O homem isolado já não tem qualquer história, mas, como unidade abstrata, já é apenas um ponto médio das tendências de mercado, uma máquina de autovalorização, ou, como se diz premonitoriamente no capítulo da Indústria Cultural: “Cada um é tão-somente aquilo mediante o que pode substituir qualquer outro: ele é fungível, um mero exemplar. Ele próprio, enquanto indivíduo, é absolutamente substituível, o puro nada”. Mas já não há aqui qualquer Dialética do Esclarecimento, como Adorno e Horkheimer ainda pretendiam constatar, se bem que com dúvidas, mas sim o cumprimento da sua promessa. O esclarecimento nunca tinha prometido outra coisa senão a “felicidade” de cada um poder transformar-se a si mesmo num “puro nada”. Este contexto é perfeitamente claro e criticável. Mas o pós-modernismo em todas as suas variações não quer esta crítica; os respectivos exemplares deleitam-se na sua pura nulidade que eles imaginam como libertação da materialidade e de todas as relações em geral. Os indivíduos abstratificados até mais não poder ser já não conseguem envolver-se com coisa nenhuma, com conteúdo nenhum, porque eles próprios se tornaram um objeto meramente exterior e coisificado. Isto já se aplicava de certa maneira à individualidade abstrata ainda não amadurecida que se exercitava nos primeiros dispositivos da tecnologia de “comunicação” no século XIX; por exemplo e em primeiro lugar no telefone, então ainda limitado às classes superiores com capacidade de pagamento. Quando a Adorno e Horkheimer ironizam que o velho “dispositivo de réplica” telefônico ainda tinha deixado “liberalmente” os participantes “desempenhar” o papel de sujeitos e que o dispositivo de controle democrático da indústria cultural pelo contrário já nem isso permite, tal ponto de vista de modo nenhum é desmentido pela “Web 2.0” interativa. Mesmo que ambos os autores se tenham expressado talvez ainda no sentido de uma dialética positiva, possível, mas não desenvolvida, mesmo assim a sua formulação irônica deixa pressentir que o caráter “liberal” e simultaneamente de mero dispositivo do telefone reduz a subjetividade a “desempenhar um papel”, porque por trás está o poder apriorístico do “sujeito automático” que rebaixou o moderno conceito de “subjetividade” ao conceito de uma simples função. A essência desta subjetividade “interativa” precoce exprime-se da melhor maneira naquelas cenas do cinema em que o participante visível afasta de si o auscultador para não ter de ouvir o palavreado insuportável do parceiro de “interação” e depois parla por sua vez para o bocal sem que a interrupção tenha sido notada no outro lado. Com isto já terá sido dito provavelmente tudo sobre a “interatividade” na pantomina do cinema mudo. A mania do telemóvel que grassa há mais de uma década trouxe esta situação à sua última reconhecibilidade, na medida em que lhe confere agora uma mobilidade tecnológica e simultaneamente um espaço público do exibicionismo “comunicativo”. O que antes era piedosamente abrigado pela cabine telefónica irrompe agora como verborreia nas ruas, nos cafés e nos meios de transporte. Poderia ser preferível que os participantes desnudasse de facto simplesmente as partes sexuais, pois pelo menos os circunstantes seriam poupados à obscenidade muito pior da sua cativa ferramenta bucal. Pois o que é a gabardine aberta do tradicional exibidor do membro sexual perante e boca aberta de um pseudo-sujeito pós-moderno? Nas “comunicações” compulsivamente ouvidas já não é possível reconhecer qualquer contexto humano; e mesmo as comunicações profissionais ou comerciais mostram apenas porque é que a economia empresarial tem de conduzir à catástrofe pessoal e social. O dispositivo telefónico móvel, entretanto cruzado com a Internet faz aparecer o correspondente sistema de “réplica” que vai muito para lá da publicidade compulsiva acusticamente limitada das presunçosas comunicações quotidianas. A Web 2.0 oferece a qualquer discutidor de café e a qualquer arruaceiro pubertário pelo menos formalmente a plataforma para uma publicidade mundial imediata. Mas a possibilidade tecnológica coincide com a sua irrealidade social. Os indivíduos tornam-se mediaticamente ativos em expressões para a generalidade social precisamente na forma irrefletida e acriticamente aceite em que foram comprimidos pelo capitalismo: como pseudo-individualidades atomizadas, como meros exemplares do mesmo princípio transcendental. Quando um puro nada interage com outro, trata-se apenas da velha conhecida “figura de interação” por outros meios, a saber, que um possuidor de mercadorias encontra outro. Só na aparência se trata da “discussão” de conteúdos e problemas reais, mas de facto trata-se em primeira linha da auto-encenação narcisista, que nos meios mais antigos da indústria cultural pelo menos ainda não estava “interativamente” ligada, mas permanecia atributivamente na situação de amigavelmente “muda”, como um equipamento apenas habitualmente ativo ou como uma irradiação acústica unilateral. Continua a ser um segredo dos apologistas saber porque há-se ser melhor uma irradiação acústica nos dois sentidos. Adorno e Horkheimer já tinham reconhecido que a “extravagância bem organizada” constitui o verdadeiro fim do exercício mediático, e no caso é igual, seja a cena agora ligada “interativamente” ou não. Na medida em que os participantes se limitam a apresentar-se ou ligar-se reciprocamente, é justamente através do “dispositivo de réplica” que eles continuam desligados: “Este número não está atribuído”. A “interação” limitada à forma e reduzida à técnica é ainda mais difícil que a do processo de canal unilateral porque sugere uma estrutura dialógica tornada antecipadamente impossível pelo equipamento do sujeito pós-moderno, na medida em que este continua a ser afirmado acriticamente. Isto também se aplica à auto-satisfação pseudo-anti-autoritária dos pequenos bloggers que se submetem aos imperativos socioeconômicos do “sujeito automático” justamente porque se transformam a si próprios em marcas de empresa. A relação autoritária não é ultrapassada por deixar de ser uma relação exterior, mas deslocada para o interior dos indivíduos como auto-relação autoritária. Tal como cada um é o seu próprio capitalista e o seu próprio trabalhador, também cada um é a sua própria estrela, o seu próprio herói e o seu próprio e único fã; e mesmo o seu próprio clube de fãs, enquanto personalidade múltipla por via da multiplicação virtual. Também se poderia dizer: cada um é a sua própria indústria cultural caseira e também a maioria das criações se torna correspondentemente penosa. Mas não faz mal porque na comunidade de tagarelas também já ninguém nota. Tal como a virtualização do mundo da vida se apresenta de modo diferente para homens e mulheres, o mesmo acontece também com a virtualização e com o meio “interativo”. Mais precisamente: o patriarcado coisificado, a dissociação sexual, reproduz-se de maneira diferente na “interação” midiática individualizada, à semelhança da indústria cultural em geral e desde o início. E tal como o “trabalho abstrato” é estruturalmente conotado como masculino, mesmo estando as mulheres há muito tempo também “empregadas” nessa esfera funcional, o mesmo se aplica também ao espaço virtual das auto-encenações. Aqui também o sexo pode ser mudado com um clique de rato, sendo que mais uma vez são sobretudo os homens que também querem ainda deitar a unha a uma feminilidade virtual para ser realmente “tudo” na sua imaginação. A parte efetiva de mulheres entre os encenadores da Net será por isso presumivelmente ainda menor do que já parece. O “puro nada” assinalado por Adorno e Horkheimer é, como reflexo do “trabalho abstrato”, igualmente estruturado como masculino e, justamente na sua nulidade, disponível para a violência latente. Pois o puro nada da subjetividade desmiolada e virtualizada só consegue transcender o seu estado de mônada na configuração de batidas e caças às bruxas. Naturalmente que também as moças participam no muito deplorado mobbing digital; mas por regra ele tornou-se sobretudo um desporto de jovens masculinos. Isso torna-se ainda mais claro nos ajuntamentos virtuais de comentários sujos para adultos. Para o mob digital que periodicamente de forma como “interatividade” masculina, de resto, as mulheres desagradáveis constituem o objeto favorito. Este carácter fascista latente de tropa de assalto no espaço virtual pode perfeitamente irromper na realidade social e tornar-se violência material imediata. Nisso consiste talvez sobretudo o jeito para o consenso e a “capacidade de realidade” tecnologicamente “interativos” dos autofigurantes digitais. Uma cultura grátis paga cara A indústria cultural como campo de valorização do capital pressupõe naturalmente o caráter de mercadoria dos seus produtos, cuja expressão reificada das relações humanas, como é sabido, foi por Marx animada no seu conceito de fetiche. A objetividade de valor das mercadorias culturais no espaço de uma produção para o puro lucro exige agora verdadeiramente a retransformação “realizadora” e a expressão destas mercadorias na forma da “riqueza abstrata”, ou seja, no dinheiro, através do ato de venda. Aqui entra novamente a apologia pós-moderna do complexo da indústria cultural, pelo menos no que respeita à Internet. Os conteúdos de todo o tipo aí oferecidos não custam nada ou custam muito pouco, ainda que se tente permanentemente introduzir ou estabilizar limitações de acesso e modos de pagamento digitais. Não significará isto que, pelo menos a indústria cultural digital, sem querer já está em parte para lá da forma do dinheiro e da mercadoria? Não se deverá considerar isto como grande potencialidade emancipatória, francamente como o surgimento de um comunismo do grátis para lá dos “bens pagos”? O que se passa não é que o capítulo da Indústria Cultural não tenha previsto nada disto apenas porque ainda não havia Internet em 1944. De fato, muitas mercadorias da indústria cultural, por exemplo, revistas, discos ou CDs, tinham então como têm hoje de ser comprados à boa maneira tradicional; e também o cinema é um serviço cultural oferecido para ser comprado, tal como um bilhete para a montanha russa ou uma entrada num cabaret. Mas a rádio e a televisão já não podem entrar como mercadorias isoladas na valorização e no campo de realização do mercado. Se para o efeito até agora são cobrados impostos pelo Estado já não se trata aqui de uma metamorfose regular na produção capitalista de mercadorias, mas em todo o caso de uma determinação da forma daí derivada. O Estado subvenciona estes sectores socializados da Indústria Cultural como “de direito público” tal como outras infraestruturas e recupera uma parte destes custos na forma de impostos. O caráter de mercadoria de toda a organização não é assim minimamente desmentido, mesmo se os programas devem ser obtidos baratos ou quase grátis. Por maioria de razão isto se aplica às emissoras privadas surgidas na senda da era neoliberal, financiadas exclusivamente pela publicidade. Adorno e Horkheimer não se metem muito numa análise político-econômica do contexto formal da indústria cultural com as metamorfoses do processo social de valorização, mas refletem sobre o carácter quase grátis da rádio e da televisão mais no plano dos símbolos culturais e psicossociais: “Atualmente, as obras de arte são apresentadas pela indústria cultural como os slogans políticos e, como eles, inculcadas a um público relutante a preços reduzidos. Elas tornaram-se tão acessíveis quanto os parques públicos. Mas isso não significa que, ao perderem o caráter de uma autêntica mercadoria, estariam preservadas na vida de uma sociedade livre”. Assim se dá a entender que o consumo tornado mais ou menos grátis de uma parte crescente da produção da indústria cultural de modo nenhum está “superado” numa ultrapassagem por toda a sociedade do sistema produtor de mercadorias, mas continua a ser parte integrante deste. Tal como os meios de propaganda política são inerentes à forma de mercadoria, mesmo se são difundidos gratuitamente entre o povo, o mesmo se aplica ao consumo midiático dos produtos culturais. Eles não fogem à forma do dinheiro como “bens pagos”, apenas a mediação com o conjunto do sistema é outra; seja o financiamento baseado numa cobrança estatal de rendimentos capitalistas, no sistema de crédito ou numa ligação com a publicidade, como cujo suporte privilegiado a indústria cultural aliás se apresenta. Na medida em que as preferências testadas dos compradores (por exemplo no Facebook [e Instagram]) mais uma vez dão ocasião a novos anúncios publicitários, os utilizadores supostamente grátis colaboram involuntariamente no financiamento. Nessa medida apenas no plano da aparência imediata ou da particularidade para os consumidores se pode falar de “dissolução do genuíno carácter de mercadoria” destes produtos, porquanto eles permanecem mercadorias de acordo com o seu caráter social, mercadorias cujo contexto formal apenas nas instâncias de mediação se desmonta. Este carácter repercute-se, não só no conteúdo mas também no aspecto social e psicológico, tanto mais fortemente junto dos indivíduos consumidores quanto mais ele já não é imediatamente económico para eles como ato de compra, como Adorno e Horkheimer fazem notar criticamente contra a pseudo-emancipação da massificação do barato ou mesmo do grátis: “A eliminação do privilégio da cultura pela venda em liquidação dos bens culturais não introduz as massas nas áreas de que eram antes excluídas, mas serve, ao contrário, nas condições sociais existentes, justamente para a decadência da cultura e para o progresso da incoerência bárbara”. Assim dizem Adorno e Horkheimer involuntariamente que o “privilégio da cultura” burguês era apenas uma ilusão na qual já residia como verdadeiro movens a tendência para a “venda em liquidação”, para a “decadência” e para a “incoerência bárbara” que na indústria cultural apenas se torna manifesta. Aquela cultura burguesa que ainda tinha de custar alguma coisa não era senão o luxo de uma auto-reflexão afirmativa firme que nem uma rocha, de que ainda se precisava nos tempos da constituição capitalista, mas que perdeu os seus momentos excedentários na mesma medida em que mergulhou no cotidiano das massas como deformação da indústria cultural. Também aqui mais uma vez é preciso ter em atenção a lógica económica funcional que em Adorno e Horkheimer permanece mais como pano de fundo sem ser explicitamente nomeada. A industrialização da educação e da cultura está submetida à mesma lei da concorrência que os outros setores do capital. Neste aspecto, no entanto, o determinante é o imperativo económico e não o tecnológico. A luta pela quota de mercado (mesmo numa área secundária, como a publicidade enquanto sector económico próprio, para o qual o produto da indústria cultural constitui o plano de sustentação) exige um embaratecimento que só pode basear-se na redução dos custos de produção. Mas se os custos das produções culturais são baixados à bruta qualidade sofre ainda mais que no caso das indústrias de produção material. O produto é então sempre “uma carripana” e ainda muito pior. Pois só é possível “racionalizar” a produção intelectual ou artística como quem racionaliza a produção de guarda-lamas ou de cambotas à custa do completo esvaziamento do seu conteúdo. Ela perde o seu próprio valor de uso com a incorporação direta no sistema do “trabalho abstrato”, como Adorno e Horkheimer deixaram claro no caso da reversão ou mesmo indistinguibilidade entre conteúdo redacional e publicidade. É o que se vê por exemplo nos jornais publicitários grátis cujos conteúdos redacionais, na medida em que estão estreitamente cruzados e mesmo francamente misturados com a publicidade, mostram de modo particularmente crasso a “decadência” da reflexão como expressão cultural e a “incoerência bárbara” da cultura capitalista transmitida gratuitamente. A Internet tem esta natureza de uma produção capitalista de conteúdo e de cultura que já apenas é paga monetariamente de modo indireto e justamente por isso perde o seu “valor de uso”, transformada numa organização de massas individualizada. Não se trata aqui de modo nenhum de uma libertação emancipatória da “criatividade”, mas sim de uma espécie de “privatização” neoliberal da produção em massa normalizada da indústria cultural numa escala nunca vista. Cada um ser a sua própria indústria cultural já não deve ser entendido apenas como metáfora irônica ou como definição cultural-simbólica, mas é para ser tomado à letra com todas as suas implicações. A forma tecnológica que corresponde ao equipamento do sujeito pós-moderno provoca uma enchente de apresentações completamente desqualificadas que já não podem ser avaliadas nem recusadas por qualquer instância redacional. Portanto cada um é o seu próprio meio, a sua própria revista, o seu próprio cinema e programa de televisão. Ao contrário da produção profissional, aqui de facto já não é necessária qualquer “racionalização” para rebaixar o objeto com a pré-formação capitalista até à aptidão para o gratuito. As descuidadas criações de todo o tipo estão em todo o caso determinadas pela situação dos seus atores, que não se conseguem envolver com nada e são movidos pela pressão da concorrência, pela pressa do serviço em abstrato e por um controle do fundo de tempo, situação que exclui qualquer concentração nos conteúdos. Quem perante este pano de fundo se “liga” “interativamente” com externalizações com as quais à partida não têm quaisquer custos nem pode nem quer ter, nem custos materiais nem de esforço intelectual, esse também já não precisa de baixar custos. O que foi o resultado na linha de montagem económica da verdadeira indústria cultural é no caso das auto-apresentações individuais já um pressuposto, nomeadamente a indiferença, a fugacidade e a inutilidade do objeto. Cada um é o seu próprio jornal publicitário gratuito. O desprezo por todos os critérios e o desdém por todos os conteúdos levam a cultura burguesa à sua plena reconhecibilidade justamente onde ela se torna aparentemente “grátis”. Já na antecâmara desta situação Adorno e Horkheimer formularam este “progresso” como descida do valor em dinheiro para uma desvalorização cínica de todos os conteúdos e não como emancipação da forma da mercadoria: “Quem, no século dezanove ou no início do século vinte, desembolsar uma certa quantia para ver uma peça teatral ou para assistir a um concerto dispensava ao espetáculo pelo menos tanto respeito quanto ao dinheiro gasto”. Na cultura do grátis da Internet já nada nem ninguém é respeitado. Também já nem se pode falar de respeito próprio. Quem no meio do capitalismo enaltece o total desvalor das suas produções intelectuais e artísticas com isso admite também a nulidade do seu conteúdo. Pois um puro nada também só pode produzir um puro nada. Quando no caso não apenas se é suporte de publicidade mas se é também a própria coisa a publicitar naturalmente que o financiamento secundário se mantém em limites bastante estreitos. Como seu próprio jornal publicitário gratuito não ganha um cêntimo através de terceiros, pois não se tem senão o conteúdo, que já não é nenhum e do qual também não vem nada. Assim os sujeitos do gratuito na Internet fiscalizam reciprocamente o respectivo desvalor. Subjetividade desvalorizada mas não ultrapassada – também este estado de um culturalismo desculturalizado Adorno e Horkheimer de certa maneira previram: “A arte manteve o burguês dentro de certos limites enquanto foi cara. Mas isso acabou. Sua proximidade ilimitada, não mais mediatizada pelo dinheiro, às pessoas expostas a ela consuma a alienação e assimila um ao outro sob o signo de uma triunfal reificação. Na indústria cultural, desaparecem tanto a crítica quanto o respeito… Para os consumidores nada mais é caro. Ao mesmo tempo, porém, eles desconfiam que, quanto menos custa uma coisa, menos ela lhes é dada de presente”. Um verdadeiro presente teria custado despesas e por isso seria algo em si. Libertar o gasto dos recursos não apenas para o caso pessoal particular, mas fundamentalmente libertá-lo da sua forma fetichista do valor só funcionaria, no entanto para o conjunto da sociedade e para todos os bens e não teria nada a ver com o carácter individual de um presente, pelo contrário, seria mesmo uma maneira diferente de reprodução social. A cultura pseudo-grátis da Internet não é uma coisa nem outra. O sujeito pós-moderno da auto-encenação, armado com a tecnologia da “comunicação” mas socialmente e quanto aos conteúdos em geral vazio ou indiferente, produz apenas cripto-mercadorias em larga medida sem gastos, justamente porque já nenhum gasto lhe é pago e no capitalismo não se podem aguentar gastos não pagos. E justamente porque não existe qualquer modus revolucionado de utilização dos recursos a nível de toda a sociedade, que a existir seria válido também para a produção cultural, os atores do grátis virtual iludem-se com os seus pacotes de troca vazios numa “economia da dádiva”. Na medida em que existiram de facto nas formações pré-modernas estruturas sociais de reciprocidade traduzidas como “de dádiva”, estruturas que aqui são apenas toscamente ideologizadas, elas foram em todo o caso expressão de uma mobilização real de recursos e não tinham nada a ver com coisas aparentes. O fato de um conteúdo intelectual ou cultural poder ser divulgado “sem custos” através de um clique de rato de modo nenhum significa que ele também seja produzido sem a aplicação de recursos intelectuais e materiais; a ser assim ele não passaria de um conteúdo nulo. Os economistas da dádiva interativa trocam entre si o puro nada que corresponde ao seu estado social e intelectual, e na verdade até sabem ou pelo menos pressentem isso, como Adorno e Horkheimer já constataram. O que acontece aos consumidores-produtores digitais não é diferente do que acontecia aos anteriores simples consumidores, cuja atitude o capítulo da Indústria Cultural descreve: “A dupla desconfiança contra a cultura tradicional enquanto ideologia mescla-se à desconfiança contra a cultura industrializada enquanto fraude. Transformadas em simples brindes, as obras de arte depravadas são secretamente recusadas pelos contemplados juntamente com as bugigangas a que são assimiladas pelos meios de comunicação. Os espectadores devem se alegrar com o facto de que há tantas coisas a ver e a ouvir”. Eles participam na externalização de massas indiferenciada, sem custos, indiferente e recíproca em que ninguém se leva a sério a si mesmo nem aos outros. Por isso quem tenha tido a má sorte de ativar gastos reais e carregar um conteúdo efetivo tem de ser nivelado sem piedade pelo mesmo nada midiático que é guardado com inveja pelos seus titulares. Qualquer esforço pelo conteúdo é “depravado” e o seu resultado tornado parecido com “bugigangas” baratas, e justamente por isso os “contemplados” sabem secretamente que se estão a enganar reciprocamente e por isso já consideram sempre tudo um logro. Também não se deve deixar passar em claro que Adorno e Horkheimer, mesmo na crítica radical à cultura do falso grátis, mantinham em mente como imagem idealizada igualmente falsa os velhos heróis da cultura plena e superiormente burguesa que ainda vendiam realmente conteúdo autêntico e simultaneamente se podiam dar ao luxo de desprezar esta relação. Assim se diz poucas páginas depois no capítulo da Indústria Cultural: “O Beethoven mortalmente doente, que joga longe um romance de Walter Scott com o grito: ‘Este sujeito escreve para ganhar dinheiro’ e que, ao mesmo tempo, se mostra na exploração dos últimos quartetos – a mais extremada recusa do mercado – como um negociante altamente experimentado e obstinado, fornece o exemplo mais grandioso da unidade dos contrários, mercado e autonomia, na arte burguesa. Os que sucumbem à ideologia são exatamente os que ocultam a contradição, em vez de acolhê-la na consciência de sua própria produção…”. Não se pode deixar de reconhecer, e tal testemunha da manutenção do carácter social da antiga burguesia cultural em ambos os autores, que eles pensam ter existido “a unidade dos contrários, mercado e autonomia, na arte burguesa” cujo “exemplos mais grandiosos” se poderiam reunir precisamente na capacidade de se revelar como “negociante altamente experimentado e obstinado”. Se nas condições capitalistas de reprodução não se pode renunciar ao pagamento monetário dos gastos, na medida em que estes de acordo com o fundo de tempo e os recursos materiais vão para lá de uma simples relação de hobby até a produção de conteúdo, pouco se pode fazer passar inversamente a astúcia do negociante e a esperteza da valorização como reverso da “autonomia” artística e teórica. Esta última tem de estar sempre em pé de guerra com a primeira; qualquer habilidade para os negócios é ela própria devoradora no que ao fundo de tempo e aos recursos diz respeito e constitui, portanto, inevitavelmente um desvio da concentração na própria coisa. Uma tal qualificação aponta não para o conteúdo como apesar de tudo “a mais extremada recusa do mercado”, mas sim em última instância para uma heteronomia que tem de ser inerente a qualquer valorização, mesmo a dos quartetos. A nostalgia ideológica de Adorno e Horkheimer pertence ao seu resto de razão burguesa iluminista na qual mercado e autonomia são idênticos na arte e não só. A crítica e a historicização negativa desta razão capitalista não são levadas até o fim na Dialética do Esclarecimento, onde os autores de facto reconhecem a “oposição” de mercado e autonomia, as quais, no entanto pretendem fazer surgir como “unidade” reconciliada ou pelo menos fundamentalmente reconciliável num passado de burguesia cultural idealizado. Na conservação hesitante da razão burguesa já antes reconhecida como negativa e destrutiva faz-se a quadratura do círculo; a apreciada astúcia dos negócios é a da lógica hegeliana em que as contradições não conduzem à ruptura e à explosão, mas sim à falsa reconciliação positivamente superadora na forma do eterno sujeito da circulação. Mas a concepção de Adorno e Horkheimer, apesar deste excurso deficitário, formula ainda uma crítica consciente do problema contra a cultura do grátis das comunidades de “utilizadores” por maioria de razão falsa e mentirosa, quando eles fazem notar que “sucumbem à ideologia” justamente aqueles que “ocultam a contradição, em vez de acolhê-la na consciência da sua própria produção”. Não se trata obviamente de uma imaginada unidade entre conteúdos que se fecham à forma do valor, por um lado, e habilidade para o negócio monetário da circulação, por outro, cuja idealização ela própria “oculta a contradição”, mas sim e apenas do facto de que surge com toda a nitidez a irreconciabilidade da contradição e a necessidade da ruptura histórica (em vez da “superação” positiva) na “consciência da sua própria produção” e de cuja forma da mercadoria ou do dinheiro como mal necessário sob as condições opressivas se retira aquela interpretação minimizadora ou mesmo transfiguradora. O limite interno do capital e a crise econômica da indústria cultural Por muito atual que seja a concepção de indústria cultural também para o início do século XXI, há hoje uma importante diferença em relação a 1944. Então estava ainda pela frente a grande prosperidade do pós-guerra. Na transição da época das guerras mundiais para a curta época histórica de produção em massa e consumo em massa do fordismo, Adorno e Horkheimer não podiam perceber a indústria cultural em formação do ponto de vista da crise objetiva ou do limite interno histórico do processo de valorização. O complexo da indústria cultural que se revelava nebulosamente nas suas dimensões tinha de lhes parecer uma fatalidade, como forma de controle total ou autocontrole e de submissão da consciência à máquina do fim em si capitalista. Hoje, pelo contrário, a indústria cultural desenvolvida está sob o signo de um limite objetivo amadurecido do capital mundial. A própria Internet é toda ela parte integrante de uma tecnologia de crise da terceira revolução industrial, cujos potenciais de valorização conduzem ao esvaziamento da substância do valor. Também neste aspecto não é a tecnologia como tal que autonomamente teria efeito sobre as relações e seria a verdadeira razão para o seu revolucionamento. A racionalização, que leva à extinção do fogo do “trabalho abstrato”, segue as mesmas leis que este; a libertação da força de trabalho supérflua constitui o reverso da sua subsunção ao capital. No sentido do fetichismo social, “autónomo” é apenas o automovimento solto do “sujeito automático” do qual nasce a tecnologia de crise em geral que dá expressão à autocontradição interna do sistema. O capitalismo não esbarra num limite tecnológico dele independente, mas sim no seu próprio limite (económico) interno. No complexo da indústria cultural este limite geral do capital ergue-se de uma maneira específica que aponta simultaneamente para o mecanismo da crise e para as suas formas de desenvolvimento. A virtualização culturalista do mundo da vida corresponde à virtualização económica do capital. Os dois momentos não representam qualquer novo grau de desenvolvimento do modo de produção e modo de vida capitalista, mas sim um processo da sua desvirtualização e, portanto, da sua real autodestruição. A dessubstancialização do capital através da redução desproporcional da força de trabalho regular, a única de produzir valor, criou aquela famigerada economia global de bolhas financeiras em que o capital passou da acumulação real para uma acumulação meramente simulativa. Esta representa por assim dizer o seu próprio avatar económico no mundo aparente do céu financeiro desacoplado. Mas o espaço virtual da Internet não se limita a espelhar em sentido simbólico-cultural o capital fictício já sem cobertura de qualquer valorização real, mas pertence também diretamente a esse império econômico espiritual. A Internet, como complexo híbrido da indústria cultural, não produz mercadorias reais, mas apenas virtuais. Ela nem sequer produz num volume apreciável produtos intelectuais ou artísticos imateriais, que na forma da mercadoria pudessem ter participado da massa da substância social do valor, mas apenas divulga eletronicamente tais conteúdos associados a gastos objetivos, enquanto os conteúdos genuínos surgidos diretamente na Net, tanto objetiva como economicamente em grande parte sem valor, nem contribuem para a massa de substância real de valor nem dela participam, na medida em que permanecem “grátis” desse modo inverídico. Ora, se a publicidade é determinante para a indústria cultural não só como forma de expressão da estética das mercadorias, mas também como base financeira da economia da Net, então esta factualidade esclarece o modo do seu encaixe na reprodução capitalista. A publicidade, como sector secundário por sua vez capitalistamente improdutivo, que não traz qualquer contribuição para a massa da substância social real do valor, representado pelo contrário uma dedução dela, só pôde expandir-se numa dimensão sem precedentes na história do capitalismo na base insuflada da economia das bolhas financeiras e do endividamento desde os anos de 1980. Só perante este pano de fundo surgiu o complexo tecnológico-cultural da Internet daí derivado na sua atual amplitude. Os serviços, possibilidades de acesso ou de apresentação e conteúdos gratuitos postos à disposição só podem ser descritos em termos capitalistas como suportes de publicidade. Quanto mais a indústria cultural se desloca para o espaço virtual, mais precária se torna esta dependência. Simultaneamente este espaço exige também um poderoso e muito real agregado infraestrutural de consumo energético, cablagem, baterias de servidores etc. que por sua vez se repercute como fator de custos. Em grande parte, estes equipamentos tecnológicos também têm de ser financiados a partir da publicidade ou exigem uma parte das suas receitas. Isto também se aplica às redes promovidas ou postas à disposição pelo Estado cujas receitas também são uma dedução da massa social de valor; tal como as suas outras funções também esta é cada vez mais financiada a crédito. Sejam quais forem as mediações, o complexo da indústria cultural virtualizada é essencialmente uma criatura do capital fictício e das suas diversas formas, que no seu conjunto representam uma antecipação cada vez mais irreal de uma futura criação real de valor protelada sempre mais. O limite interno de toda a organização torna-se manifesto na mesma medida em que o sistema de crédito demasiado estendido colapsa, as cadeias de crédito se rompem e se revela a infinanciabilidade social da cultura do grátis virtual. A total deslocação do problema para o crédito estatal não altera aqui nada. Quando os pressupostos económicos escondidos caírem a pique revelar-se-á que a mentalidade do grátis do “utilizador” de modo nenhum constitui uma antecipação da abolição da forma da mercadoria e do dinheiro. Pelo contrário, trata-se de uma consciência que há muito só vive do crédito e até só pensa no crédito. Tal como uma reprodução não monetária surge erroneamente como “sem custos” mesmo dos gastos materiais ou sociais enquanto “desmaterialização” ilusória, assim também a própria existência virtualizada surge como não paga, cujos custos terão de cair noutro lado, sobretudo quando não se precisa de saber nada disso. O pós-modernista ecologicamente esclarecido é sempre a favor do bom e contra o mal, só que tem de haver corrente elétrica na tomada e os artistas da vida têm de ter que comer a um nível aceitável de gourmet, sem que as condições sociais de um luxo qualitativamente diferente e realmente generalizado se tornem um problema a sério. O consumo do futuro da substância do valor, a deslocação dos créditos mal parados e o desaparecimento técnico do dinheiro da realidade do mundo da vida surgem como uma espécie de “mundo sem dinheiro” que de algum modo se tornou bastante mais barato. A revolução contra a “riqueza abstrata” não se dá, mas cada um é o seu próprio bad bank. Também do ponto de vista político-social surgiram, no lugar de revolucionários, caçadores de pechinchas digitais. Nem é bom perguntar como reagirá a consciência da indústria cultural ao colapso do seu mundo de ilusão e auto-ilusão. A caminho do esgotamento das reservas culturais A restrição e impasse econômico corresponde à restrição e impasse cultural. Neste contexto, a questão da inovação na indústria cultural e nas suas fontes deve ser posta de lado. Mesmo como setor secundário e até improdutivo do capital, que, no entanto, tem de ser economicamente alimentado pela massa de substância social do valor, a indústria cultural é tão abstrata e em si desqualificada quanto aos conteúdos como toda a valorização no seu conjunto. A completa indiferença perante qualquer conteúdo material, porque o seu objeto próprio é o valor abstrato, obriga, portanto, a liquidar os recursos culturais que não coincidem imediatamente com o fim em si da “riqueza abstrata”; precisamente como os recursos naturais, materiais e humanos, aliás, também têm de ser recrutados para a acumulação abstrata como suportes concretos indiferentes. No movimento histórico ascendente do capital para a determinação da forma abrangente e planetária surgiu uma genuína arte e cultura burguesa que em primeiro lugar se tinha formado sobretudo como oposicionista no terreno das relações apenas meio desenvolvidas enquanto precocemente capitalistas e proto-capitalistas. Tal como a filosofia iluminista e a ciência deste período, ela era um produto capitalista pela estrutura e pelo conteúdo, mas apenas nas suas formas de pensar e representar, como mobilização ideológica e antecipação ideal, e não ainda propriamente como objeto imediato de valorização; por isso também como produto de luxo para patronos das cortes absolutistas ou para círculos privados e correspondentemente financiada. Também a esfera pública burguesa como pressuposto para uma transformação da indústria cultural permaneceu nessa medida em primeiro lugar como protótipo. Só neste estatuto intermédio “elevado”, que contradiz a sua própria lógica mesmo que apenas formalmente, pôde a cultura burguesa adquirir a aparência de contexto de reflexão determinado pelos conteúdos e de capacidade de expressão com os célebres “momentos de excesso”, em que se reuniu um fundo de verdadeira “objetividade cultural” que era um reflexo da objetividade do valor mas ainda não esta mesma, a qual ainda só tinha conquistado alguns domínios da reprodução material. A consciência da burguesia cultural quis sempre manter este estatuto intermédio e ligar-lhe a ilusão de arte, ciência etc. “altas”, não corrompidas pelo economismo vil, embora o modo de pensar, as formas de representação e os conteúdos já afirmassem igualmente aquela lógica que escarnece da pretensa autonomia da arte ou da cultura e logo haveria de encontrar a sua expressão simbólica definitiva no “Quadrado Negro” de Malevich. Ora é evidente que a indústria cultural, apenas incipiente no século XX e só nos limites do capitalismo no início do século XXI aumentada até à virtualização do mundo da vida, nunca pôde alimentar-se de conteúdos a partir de si mesma, mas fê-lo vampirescamente em primeiro lugar a partir daquele passado de uma cultura e arte burguesa ainda não possuída pela sua própria lógica. A aventura da história da imposição do capitalismo, cujas narrativas e criações ainda não entradas elas próprias na valorização (do classicismo e romantismo burgueses, passando pelo realismo, até à “modernidade clássica”) criaram a aparência de um conteúdo cultural independente, mas esgotaram-se no prazo de poucas décadas. A indústria cultural não conseguiu criar mais nada de novo a partir de si mesma. A sua criatividade consiste sempre apenas na adaptação de material pré-encontrado. Houve ainda uma segunda onda a partir da qual a sede vampiresca da indústria cultural pôde beber. Foram as contraculturas e subculturas dos movimentos sociais e milieus, que se orientavam subjetivamente contra o capitalismo ou contra as suas formas de manifestação e que deram expressão intelectual e artística a uma existência marginalizada, a formas de vida inconformadas ou a desvios sociais. Estas culturas de protesto ou pelo menos subculturas foram o campo de referência de uma invocada contraposição “não comercial” à indústria cultural. De fato, porém, eram muito fracas na sua potência subversiva para poderem vir a tornar-se um opositor sério; e na verdade, sobretudo porque a sua crítica permaneceu não crítica da forma, fenomenologicamente limitada e socialmente particular, sem conseguir atingir a universalidade social. Tal como a estatalidade capitalista sempre conseguiu capturar, adaptar, torcer e transformar em recursos políticos próprios as tendências “políticas” emancipatórias de curto alcance (do velho movimento operário até à “nova esquerda” de 1968), também as culturas de protesto e subculturas “não comerciais” foram a curto ou a longo prazo transformadas num recurso da indústria cultural. O que se apresentava como subversão cultural e contracultura constituía, na verdade, tal como a antiga alta cultura burguesa de certa maneira ainda externa, uma espécie de reserva natural para o capital da indústria cultural, reserva que era periodicamente ceifada ou trinchada. Após a segunda guerra mundial ambos os recursos perderam a sua relativa autonomia; a alta cultura burguesa simplesmente morreu e já só podia ser utilizada como madeira seca, as subculturas tornaram-se cada vez mais viveiros capitalistas. Como na sequência da revolução tecnológica e da globalização todos os horizontes se reduzem, também se acelera o processo de mutação da indústria cultural, de criações sub-comerciais ou proto-comerciais até ao desaparecimento do objeto. Adorno e Horkheimer descrevem o vampirismo cultural apenas tendo em vista a decadência da antiga alta cultura burguesa e também com imprecisões; mas o problema das subculturas ficou fora do seu horizonte ou foi de imediato subsumido ao conceito de indústria cultural. A partir deste déficit de análise também se esclarece parcialmente o erro do julgamento negativo de Adorno sobre o jazz, cuja origem e qualidade própria foram ignoradas. Adorno, neste ponto plenamente conduzido pelas idiossincrasias do “bom gosto” da burguesia cultural clássica, não quis ver o jazz na sua especificidade própria anterior à indústria cultural, mas apenas como produto genuíno da máquina cultural capitalista. Ele não viu aqui que esta máquina precisa de um material não inerente a ela própria porque só consegue despedaçar algo que lhe tenha sido trazido. O seu produto precisa de matéria-prima ou semielaborada cultural previamente encontrada. Estes recursos não estavam ainda completamente esgotados em meados do século XX. Pode-se admitir que Adorno só conhecia ou só tinha em vista o jazz já orientado pela indústria cultural, por exemplo as show bands dos anos de 1940. Neste sentido Adorno de certo modo acaba por ter razão e sobretudo no que diz respeito ao prognóstico, que, no entanto, não pode referir-se especificamente ao jazz ou à música pop. Trata-se das criações culturais em geral, seja qual for a especialidade e o nível artificial. Juntamente com a terceira revolução industrial como tecnologia de crise universal e com o processo de crise global que se lhe seguiu, também a indústria cultural atingiu o seu limite histórico. O seu auge, que coincide com a totalização da estética das mercadorias, coincide também com o esgotamento dos seus recursos externos. De certa maneira pode falar-se de uma analogia com o esgotamento das reservas energéticas e com a destruição das bases naturais da vida, bem como com a crise das relações entre os sexos. Também neste sentido o capitalismo destrói os seus próprios pressupostos. Na mesma medida em que a abstração do valor segue a sua dinâmica interna e completa realmente o programa da sua totalização, dissolve não só a sua própria substância de trabalho, mas também os seus fundamentos naturais, sexuais e culturais, os quais se transformam de pressupostos mudos em gritantes contradições. O pós-modernismo faz notar involuntariamente o limite cultural quando desliga as intenções da cultura de protesto e da subcultura da sua pretensão ideológica de “não comercial” ou “anticomercial” e as desloca diretamente para a indústria cultural, na medida em que gostaria de escolher para si momentos pretensamente subversivos literalmente por compra no supermercado ou por download na Internet subsidiada. O conteúdo de realidade desta interpretação está em que, pelo menos nos efeitos sociais, já não se trata muito de criações relativamente autônomas, mas sim apenas de produtos que são a priori da indústria cultural como objetos de “autovalorização” e da sua possível procura. A “subversão”, que naturalmente já não é nenhuma, deve ser transferida para o modus do simples consumo de mercadorias (mesmo que seja de uma mercadoria obviamente “gratuita”). De par com esta ideologia de um consumo “criativo” ou mesmo “crítico” vai a completa recusa de tomar como foco da crítica a forma da mercadoria como tal (com o que o pós-modernismo no seu conjunto regride para trás do marxismo do movimento operário, em vez de o transcender). A questão já não é que a forma da mercadoria como mal necessário se agarre também aos conteúdos da sua crítica, de modo que esta se possa articular em geral e reproduzir os seus pressupostos materiais, mas sim que o carácter de mercadoria é aceite ou ignorado e o conteúdo é positivado como conteúdo da valorização, mesmo que num sentido apenas simbólico. Mas se a “criatividade” já consiste apenas no tipo e na combinação do consumo de mercadorias, isso conduz a uma crise do valor de uso, porque já não há qualquer novo fornecimento de conteúdos. Após a morte da antiga alta cultura burguesa a subcultura sofre o mesmo destino. Já só há pseudo-subculturas, elas próprias já orientadas pela indústria cultural. Mesmo a mais tola banda escolar aspira desde o início ao sucesso comercial ou pelo menos ao capital cultural para “aparecer” nas listas de sucessos, e dá fundamentalmente mais valor à “apresentação” do que ao conteúdo inovador que não tem. Isto aplica-se a todo o sector cultural, abstraindo das exceções. Tal como a substância do valor é apenas simulada, uma vez que ocorre uma reciclagem a partir das bolhas financeiras, também a indústria cultural vive apenas da reciclagem de velhos conteúdos sucessivamente adaptados, até que sufoque na sensaboria dos eternos requentados. Esta situação torna-se cada vez mais explicitamente naquela barbárie cultural de que fala o capítulo da Indústria Cultural. O mundo não é um acessório. Por que é impossível uma "revolução cultural" separada O círculo da reflexão crítica fecha-se se regressamos à complementaridade polar da pseudo-crítica elitista culturalmente pessimista e da afirmação pós-moderna da superficialidade. A superfície é o mundo dos fenômenos imediatos; cultural é o do outfit, do design, do guarda roupa. Se a burguesia cultural denuncia publicamente a superficialidade, ela refere-se apenas o outfit que lhe salta à vista, a formas de apresentação e manifestação impertinentes ou estranhas. O stock remanescente de consciência cultural elevada, mesmo se tem um quadro de Kandinsky na parede, num aspecto não está assim tão longe do filisteu pequeno-burguês do dinheiro e da cerveja como gosta de expressar livremente na sua aversão contra a “arte degenerada”, a “música negra” e o movimento pop “americano”. Trata-se aqui não do carácter da superfície em si, mas apenas de trapos e sons “erróneos”, como metáforas de um design social rejeitado. Por detrás está o medo do estranho, dos underdogs, dos desviantes ou das “classes perigosas”. Ainda que o culturalismo pós-moderno cultive e romantize justamente fenômenos e formas de expressão abominadas pelos velhos filisteus culturais, mas apenas como acessórios sem conteúdo e arbitrários, ele pertence à mesma estrutura de percepção e constitui ele próprio uma consciência de classe média, apenas diferentemente posicionada. O conflito neste campo isolado não passa de maçador e os intervenientes são demasiado identificáveis na sua identidade. Poderia sem mais tornar-se chique pendurar “vanguardisticamente” na parede num golpe de surpresa o famigerado veado bramante; logo as galerias ficaram repletas deles, desde Nova Iorque até à província de Berlim. A reciclagem que a indústria cultural faz de todas as formas de expressão nivela como é sabido também a diferença entre arte e kitsch. No fundo começou já com as apresentações dadaístas do pechisbeque como objeto artístico; o que foi considerado um escárnio é tratado há muito tempo com seriedade académica como problema da história da arte. Com isto não se pretende negar que a “expressão” habitual tem de encontrar uma forma na sociedade, no universo vital e na cultura cotidiana. Cada formação histórica exprime-se artisticamente, mesmo onde não existe uma esfera isolada da arte; as pessoas decoram o espaço vital e apresentam-se nas suas vestes etc. Estas múltiplas formas de expressão a diversos níveis nunca são puramente individuais, mas sim também determinadas através da respectiva sociedade, das suas contradições e do seu desenvolvimento. Em relação ao modo de produção e de vida capitalista, no entanto, é preciso ter presente que foram o vazio e indiferença quanto aos conteúdos que são inerentes aos seus mecanismos, bem como o esgotamento e seca cultural que acabam por ser realizados pela sua dinâmica específica, que levaram à dominação e autonomização grotescas do exterior. Tal como a forma abstrata da mercadoria se autonomiza face ao conteúdo concreto e rebaixa este à sua mera “forma de manifestação”, assim acontece analogamente a já referida inversão entre conteúdos culturais e intelectuais e a sua “forma de apresentação” exterior. Isto aplica-se também à chamada cultura quotidiana, que se desenvolveu até àquilo que Marx apontou como “religião do cotidiano”; no entanto muito para lá do carácter ideológico referido por Marx. Já não se trata de meras “opiniões” e interpretações ideológicas do mundo, mas sim de modos de expressão e de auto-interpretações entendidos existencialmente. O “puro nada” tem de se auto-apresentar como capa nas relações com os seus semelhantes e tem de armar permanentemente o seu outfit em sentido lato. A muito invocada pluralização de estilos de vida é completamente uniforme no que diz respeito ao seu carácter como meio de ganho de distinção, situação em que a pluralidade se dissolve novamente num “mainstream”; mesmo que este pareça correr em diversas direções. A questão decisiva aqui é que mesmo os mais simples trapos em si bastante irrelevantes são carregados com formalidades arbitrárias e “questões de gosto” com uma importância impertinente. Que ninguém consiga escapar às tendências sociais neste plano, a não ser à custa da pura comicidade, não constitui nada de essencial. Assim andamos nós há quarenta anos não de toga, mas de jeans; ainda que já não nas mesmas, pois o desgaste do material obriga a gastar tempo na compra de calças. Se os jeans e os cabelos compridos dos jovens ou a música rock já foram considerados como sinal de uma espécie de protesto juvenil, há muito que está provada a inocuidade e o carácter afirmativo desta pseudo-revolta. Isso tornou-se apenas uma moda geral nas calças, a que mesmo os velhos tiveram de sucumbir. Naturalmente que tais fenômenos se repetem em cada geração de algum modo na puberdade. Mas a novidade é que eles assumem uma relevância social generalizada. Devo comprar umas calças que possam servir a um elefantezinho, de modo que ninguém veja se eu tenho rabo? Ou umas calças tão estreitas que perturbem a circulação sanguínea e toda a gente possa ver que não tenho rabo? Tais alternativas existenciais nos tempos pós-modernos já não são deixadas para os jovens abaixo de quinze anos, mas entram na categoria de quase ideologias políticas. Que os indivíduos desenvolvam preferências no vestuário, na comida e bebida, no sexo, na sensibilidade corporal ou na decoração da casa já não constitui uma questão natural e inocente. Se tatuagens ou piercings, comida vegetariana ou vegan e coisas que tais se transformam numa espécie de visão do mundo, com a qual as pessoas se separam ou se reconhecem de um determinado círculo como antes com o emblema do partido, então isso aponta para o caráter da ideologia do outfit como procedimento de substituição, com o qual se pretende substituir o vazio ideal e social. Tais procedimentos de substituição simbólicos e da cultura cotidiana ganham importância justamente para a administração da crise e suas ideologias de disciplinamento. As campanhas contra os fumadores, incluindo medidas administrativas de proibição ou a denúncia dos hábitos alimentares “não saudáveis” das classes inferiores não têm nada a ver com a preocupação com o bem-estar. Pelo contrário, o que acontece é que assim se desloca a percepção das disparidades sociais, da pobreza, dos desaforos sociais e do stress do trabalho para o figurativo, para a “performance” pessoal, como se o problema fosse apenas de mudanças no plano dos hábitos ou atitudes culturais quotidianas que não teriam nada a ver com uma relação social coerciva. Tal ideologia da administração de seres humanos apela à segurança para as almas aparentadas de personalidades de auto-encenação vazia que pretendem realizar-se no culto da superficialidade e que se tornam tanto mais permeáveis aos mecanismos de disciplinamento quanto estes se apresentam como oferta de design. O culturalismo pós-moderno e sua sobreacentuação da aparência já têm antecedente histórico num duplo aspecto. Filosoficamente trata-se da corrente irracionalista do pensamento burguês, desde a viragem anti-hegeliana no século XIX, passando pela filosofia vitalista, até ao existencialismo. É o contraprograma burguês formulado por Nietsche e Heidegger contra Marx e Adorno, donde também a chamada esquerda pós-moderna retira as suas referências principais. Ligada a ele esteve sempre a atitude ou modo de percepção conhecida pelo nome de “estetização”. O horror da guerra e da destruição, o terror da normalidade, o sofrimento e a miséria tornam-se “belas imagens”, entranhas e barrigas inchadas pela fome ou feridas ulceradas tornam-se obras de arte. A “estética do terror”, desde Walter Benjamin designada por fascismo subjetivo, constitui os antecedentes e é secretamente parte integrante da viragem culturalista pós-moderna contra a crítica do capitalismo, conteudística, social e categorial. A encenação da “entrada em cena”, mostrada por Leni Riefenstahl na estética cinematográfica do congresso do partido do Reich, com a sua figuração de desfiles de massas, pertence também a esse programa. A individualização pós-moderna desse modo de proceder não muda nada da essência da coisa; e pode a qualquer momento virar em surdos motins coletivos, como prova o mobbing digital. A indiferença perante o conteúdo na sua agudização pós-moderna dá lugar a um programa esteticista ainda mais abrangente que o do início do século XX, que nem sequer é percebido como tal porque representa um sentido geral da vida. Esta estetização militante, que agora fez da forma do design publicitário uma matriz totalitária, é uma arma muito mais eficaz contra a crítica radical do que as simples construções de pensamento da ideologia. Não se trata da coisa em si, mas do estilo. No lugar da análise crítica surgem tratados de tipo “como empobrecer com estilo”. O styling não reconhece qualquer outro critério de verdade além do número de comentários “gosto” na Net. E o que é publicitado é o que é apreciado como outfit. A objectividade negativa deve ser escondida por um “subjetivismo estético”; no lugar da revolução social surge a pseudo-revolução sem dor do “parecer belo” – a estetização da existência de todos e cada um. É estetizada não só a guerra e a atrocidade, mas também a crise, a nova pobreza e a catástrofe ambiental. Trata-se simultaneamente numa estetização da verdade, que corresponde ao paradoxal “relativismo absoluto” da pós-modernidade. A ideologia da estetização tornada forma de vida real não deve ser confundida com a estética em si. A questão não é que cada conteúdo encontre a sua adequada forma de expressão ou de exposição, para o que podem ser desenvolvidos critérios. Em vez disso, é a forma estética que se autonomiza como se viu contra o conteúdo e rebaixa este à sua forma de manifestação acidental e não essencial. É esta inversão, implantada e consumada pela forma totalitária da mercadoria na arte e na cultura, que constitui o programa da estetização. Trata-se de um processo histórico que teve a sua conclusão na estética das mercadorias após a segunda guerra mundial e que só pode desembocar, como qualidade de mercado mundial da “incoerência bárbara”, numa nova estetização da política ela própria há muito desrealizada. O terror é agora tanto mais medonho de outra maneira quanto ele apresenta simultaneamente todos os traços da tolice. Foi justamente o novo centro, verde, socialdemocrata e social-ecológico, que não só apertou o torniquete da administração social da crise e pôs em marcha Hartz IV, mas simultaneamente também levou ao auge a sua “venda” democrática como pantomina do design publicitário. Não por acaso são os quadros e autoproclamados “revolucionários da cultura” da antiga nova esquerda de 1968 que produzem este desenvolvimento. Eles já então assumiram antecipadamente o pós-modernismo de esquerda e hoje mostram-lhe o seu futuro, mesmo que este já não deva conduzir aos ministérios, mas simplesmente a mandatos pelo “partido dos piratas”. Esta geração de filhos e netos do “novo centro” já envelhecido nem precisa mais de qualquer passado radical de esquerda para o design da sua entrada em cena. A metamorfose das antigas encenações prontas a ser representadas de comunas e de combatentes de rua em maturidades de homens de Estado mostram involuntariamente que não pode mesmo haver uma “revolução cultural” autónoma no sentido de simples revolucionamento da atitude, do outfit, da “conduta do discurso”, do “estilo de pensamento” e do quotidiano, até ao penteado, à cultura de consumo ou mesmo alimentar etc. Se a geração de 68 politicamente crescida se permite uma modernização e democratização “cultural revolucionária” da RFA, enquanto fracassou como revolucionária, prova assim apenas que o pseudo-radicalismo performativo só serve em culturas de protesto baratas e superficiais, para ultrapassar a puberdade e também para o “revolucionamento” do próprio capitalismo e do seu estilo de management. Uma boêmia de classe média que se dá por ser da arte do cotidiano, da experimentação sexual e da rebeldia habitual já desempenhou sempre este papel. A “revolução cultural” assim limitada da nova esquerda foi, no entanto, a última da sua espécie porque já não havia nada para revolucionar em termos económico-culturais por falta de substância real de valor e o comboio da esquerda pop pós-moderna já há muito que estava fora da linha. Só haverá uma “revolução cultural” no futuro se for simultaneamente expressão de um movimento social revolucionário com efetivo poder de intervenção e não performance meramente simbólica. Um tal movimento não existe atualmente e, portanto, também não se pode desenvolver qualquer estética da crítica mas apenas uma crítica da estética dominante, enquanto crítica da indústria cultural. Não se pode vestir uma roupa sem o corpo para ela. O culto pós-moderno da superficialidade, na sua atitude de crítica aparente em que os próprios protagonistas não acreditam, é tão sem substância como a valorização do capital virtualizado da pós-modernidade. A condição para uma nova integração do movimento social com o movimento cultural revolucionário é que penetre na consciência das massas uma nova crítica radical do contexto da forma fetichista, coisa de que a esquerda pós-moderna não quer saber absolutamente para nada. O que o culturalismo ideológico presentemente ainda consegue ao serviço do capital é única e exclusivamente o enfraquecimento interno da própria crítica categorial. Pois esta corre o risco de se transformar num objeto puramente estético através da recepção parcial e aparente justamente da crítica do “trabalho”, do valor e da dissociação sexual, ou seja, num acessório efémero da auto-encenação, assim se tornando completamente sem compromisso. Com a totalização do design publicitário vai de par a subsunção em geral de todos os conteúdos na corrente cega do espírito do tempo ou na moda. Não se trata apenas de trapos da moda, mas também de delitos da moda, de doenças da moda e ideologias da moda, até mesmo de indecências da moda. Justamente a esquerda pós-moderna espalha os seus ditos ordinários por todo o lado através do seu lugarejo intelectual de província. Por isso as personalidades sociais pós-modernas são por princípio pessoas de pouca confiança; não podemos lembrar-nos delas numa posição fixa e com caráter vinculativo, nem sequer relativamente à crítica categorial, tanto quanto eles supostamente se apropriaram dela. Tal como o velho patriarca verde de 1968 Joschka Fischer periodicamente alarga e volta a encolher como um harmónio o perímetro da sua corpulência, transformando-se de barrigudo em corredor de maratona e vice-versa, assim também as estratégias individualizadas do outfit transformam periodicamente o seu comportamento, as suas atitudes e convicções sem qualquer conexão interna. Já se sabe que qualquer conteúdo a que se deita a mão logo terá de ser novamente removido. Períodos inteiros da vida minguam num Verão ou possivelmente numa tarde; todas as relações se dissolvem já quase antes de terem começado. Aplica-se a divisa de Berlusconi que terá dito: “Já fui muitas vezes sincero”. Uma vez que o puro nada não pode permanecer junto de nada, ele também não aprendeu nada certo, nem sequer a própria língua materna. O cidadão do mundo pós-moderno não sabe bem alemão nem sabe bem inglês; não sabe bem nada, mas já cheirou tudo alguma vez. Como antídoto para esta situação lamentável recomenda-se em sentido emancipatório uma ampla recusa da estetização e da moda sem compromisso, o que implica uma crítica radical do culturalismo pós-moderno. O conteúdo tem de ser reposto no seu direito prioritário. Isto aplica-se tanto à crítica superficial da superficialidade feita pelo stock remanescente da consciência de burguesia cultural como ao contrapô-lo pós-moderno. O mundo não é um acessório; o culto da superficialidade devia ser coberto de escárnio e maldizer. A indústria cultural não pode ser iludida por uma hiperafirmação pós-moderna de esquerda, mas apenas através da desvalorização militante do mero design em qualquer sentido. Nas publicações da crítica radical deveriam talvez ser fomentados os textos pesados e no outfit a simplicidade consciente. Não podemos partir do capítulo da Indústria Cultural da Dialética do Esclarecimento sem rupturas, mas a recepção crítica da concepção aí desenvolvida permanece indispensável. O pós-modernismo que se imaginou para lá dela já não tem nada a dizer no mundo de crise do século XXI. Resta a esperança de que já esteja prestes a levantar-se uma geração que diga com toda a simpatia aos ideólogos pop apaixonados pela própria juventude profissional que eles mesmos são agora os velhos insuportavelmente chatos de ontem e que vai sendo tempo de fazerem uma interrupção da emissão. Nota Barravento: fizemos alguns ajustes gramaticais no texto a fins de homogeneizar a fluidez lexical.

  • Mais um tango em Brasília

    Dia primeiro de Janeiro de 2023, “após ser empossado no Congresso Nacional, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva subiu a rampa do Palácio do Planalto, em Brasília, e recebeu a faixa presidencial de cidadãos que representam a diversidade do povo brasileiro”, como anunciavam os jornais. A frase mencionada já não pode mais ser lida sem que apareça como memória a imagem que foi rapidamente definida como histórica e um marco da diversidade e da democracia no início de um novo governo. Ao lado do recente eleito presidente Lula haviam pessoas que representavam o povo brasileiro e, para alguns, somente o “conteúdo” simbólico desta ação seria capaz de romper o fluxo da história; o efeito catártico da diversidade apareceu ali como “agente eficiente”, responsável por inaugurar uma ruptura temporal, em que não existiria mais passado e o caráter simbólico parecia soar nos ouvidos dos democratas com um único imperativo: agora só importa o futuro. Rapidamente, o governo que se apresentou como “o governo do povo” não conseguiu sequer “apresentar sua agenda”. Por sua natureza, se mantém por meio de “pactos” e “acordos” com as mesmas elites políticas anteriores. Com isso, as decisões políticas e econômicas trilhadas não sustentam o frágil simbolismo, lembrando a todo momento que todo governo que se autointitula do “povo” é sempre antes de tudo um governo do “povo” para o capital. Nunca parece ser a hora oportuna para os governos democratas burgueses serem submetidos a uma crítica radical. Em um primeiro momento – apesar de a história demonstrar o caráter de coalizão do novo mandato – a crítica não poderia ser feita durante o período eleitoral. Caso exista alguma ameaça de tom autoritário no pleito torna-se impossível discutir como são as próprias formas supostamente democráticas do capitalismo que permitem a viabilização de candidaturas baseadas em consciências rebaixadas e reacionárias como as que nos acostumamos a ver nos últimos tempos no Brasil. Nesse cenário, a cartilha é sempre impor aos comunistas uma resignação, como se o processo eleitoral fosse autossustentável, algo como democrático em si mesmo[1]. Durante o governo a crítica radical é geralmente acusada de não ser capaz de apreender a realidade que começaria a se impor a partir de um momento e que chega até mesmo a ganhar um nome próprio, muito específico: a chamada governabilidade. Usa-se esse nome para tratar de uma realidade que seria mui específica, um “jogo” político, mas o que se esconde por trás dessa categorização é, em verdade, uma tentativa de tratar como isoladas as relações políticas, como se estas estivessem completamente alheias às demais relações fáticas do capitalismo –de certo modo presas as sua própria especificidade. À revelia de qualquer mobilização social por questões de emprego, saneamento, educação e condições de vida, o que resta é confiar nas mesmas “práticas” em uma espécie de gratidão eterna por ter sido concedido a nós um regime político supostamente resoluto e onipotente, como é o caso da democracia burguesa. Quem seríamos nós, homens e mulheres comuns a questionar? A questão é que tal fuga da crítica, em verdade, se apresenta como algo mais profundo e complexo: a constituição prática da política frente à democracia burguesa no âmbito da luta de classes. E, ao contrário do que quase sempre é dito, a debilidade da esquerda hoje, imersa em seu imobilismo social, está muito mais na incapacidade de enfrentar esse caráter anti-popular da não-crítica do que na sua capacidade de autoflagelo. Em outros termos, o que poderia ser o conteúdo fundamental de um horizonte construído pelo tensionamento entre Estado e sociedade civil acaba por se transformar na “reconciliação” entre democracia representativa e Estado, em uma constante manutenção da ordem que gerencia tais problemas que enfrentamos. O desconforto que seria a “desordem” organizada, exposta as matrizes institucionais, a violência policial, a retirada de direitos sociais e de direitos políticos, num processo contínuo entre avanços e recuos, se tornou hoje o epicentro de nosso impasse: a hegemonia institucional de “manter a ordem” tal como se apresenta. Não é à toa que os “abusos” do STF são “criticados” de modo atabalhoado pela direita. À esquerda, por outro lado, agora é “defensora” da ordem que a oprime (ou tenta gerir). Fato é que o receio de fazer valer o papel crítico de nosso contexto é sempre bloqueado pelo “pragmatismo” do silêncio e do cinismo para que a governabilidade seja viável para Lula e aliados. O resultado parlamentar mostrou como a direita saiu fortalecida “apesar” da derrota presidencial. A ilusão daquilo que não possa ser combatido pela modificação “conjuntural” descamba para que sempre estejamos tangenciando nossos verdadeiros problemas objetivos: “não há alternativa”. Assistimos a direita se organizar com todo seu aparato violento, hipócrita e oportunista para cooptar as energias sociais de insatisfação, que, de certo modo, denunciavam o esgotamento das atuais condições de vida, e assim vimos o tecido social brasileiro se desgastar. Com isso, o governo Lula conseguiu “nascer” morrendo dentro de si: a esperança daquilo que se passou seria por si só a régua imediata daquilo que não se consegue e nem deve retornar. Com esse rebaixamento, não houve nenhum “recuo” do que já tínhamos antes, embora certos contextos trazidos à tona mostraram a perversidade que foram esses últimos anos, e nisso não repetiria as atrocidades (mesmo no aspecto “moral”) legitimadas. O que hoje está mais explícito do que nunca é que o risco que se corre com as apostas no novo Governo Lula, é que esse, ao nascer velho e exaurido de qualquer novidade, será sempre um governo defensivo político e socialmente. A completa ausência da exposição das vísceras do que é o Brasil em seu conjunto civil, suas máculas que nos compelem, acaba por restar aberto um campo de disputas (ideológicas, políticas, culturais, etc.) pelo qual já saímos em defensiva: a crítica da realidade sempre é impedida pelo pragmatismo da ação. O petismo, o governo Lula, seus apoiadores e aliados, sabem muito bem e operam exatamente nesse redemoinho confuso de direção, enquanto a sua “base” apenas precisa repetir mantras e capturar retratos parciais de uma impossibilidade “estável” como promessa de vida. Para tornar claro nosso argumento, assistimos, nos últimos dias, a uma série de acontecimentos do governo Lula que denunciam de maneira explícita sua capacidade de apenas mascarar de uma nova maneira o caráter insuficiente da democracia burguesa: o “novo teto de gastos” e a austeridade fiscal renovada; o esvaziamento da pasta do Meio Ambiente por pressão da bancada ruralista do congresso; o enfraquecimento dos serviços públicos de toda ordem, dentre outras questões. Não importa a circunstância: se por pressão do Congresso Nacional, ou por pressão de setores empresariais, a crítica às tomadas de decisões de um governo progressista na aparência não pode se furtar de ser feita sob pena de um desgaste político, como se vivêssemos em uma eterna coalizão difusa na tentativa de amortecer anseios retrógrados imediatos, seja nas pautas econômico/fiscais, ambientais ou nas questões atinentes aos direitos sociais. Com isso seguimos a ver nos últimos meses a mesma consciência política parlamentar criminosa, corrupta e com as velhas pautas da bancada “BBB”: boi, bíblia e bala. Os representantes do latifúndio, do fanatismo e do evangelismo, da bancada miliciana e policial já mostraram como a forma representativa além de não poder ser ser considerada como uma saída, sequer consegue dar conta de atenuar nossos problemas imediatos –o que justamente é o que muitos rogam que o regime democrático faria. O que fica, assim, é o sentimento de que todo esforço democrático serve para adiar parcialmente o colapso social em curso. Não há outra saída senão a organização popular de base, muito além do ímpeto conservador de não dizer a que viemos: puxar o freio de emergência da hecatombe burguesa. Semanalmente seguem explodindo notícias de corrupção dentro das Forças Armadas, violações humanitárias, e as já conhecidas pilantragens no sistema jurídico. Tudo isso não pode ser “melhorado”, pois é assim a forma pela qual nossas instituições funcionam em suas condições ordinárias. É por isso que elas funcionam. E segue o tango em Brasília. [1] A regulamentação, por parte da repartição da Justiça Brasileira conhecida como Justiça Eleitoral (em voga nos jornais nos últimos dias por conta da cassação do mandato do então deputado federal Deltan Dallagnol do Podemos do Paraná), é o remédio oferecido para as mazelas contidas no trâmite burocrático em que se transformam as eleições. É insuficiente a tentativa de tratar essa subdivisão do Estado como autônoma às relações materiais desenvolvidas na sociedade civil burguesa, assim como o é qualquer tentativa de considerar o Poder Judiciário como julgador imparcial.

© Barravento

REVISTA BARRAVENTO

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