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- O colapso ambiental frente à incontrolabilidade do Capital: o idealismo político nas lutas de pauta
por Rodrigo Righi Marco e Ana Marra Aqui, é apresentada a segunda parte do artigo O colapso ambiental frente à incontrolabilidade do Capital, escrito em 2020 por Rodrigo Righi Marco e Ana Marra buscando discorrer em breves linhas acerca do tratamento de Mészáros da crise de nossos tempos. Tendo sido discorridas na primeira parte o desenvolvimento do autor sobre a questão da incontrolabilidade do sociometabolismo do Capital e o caráter inconciliável dos antagonismos sociais nas figuras do Estado e da política, aqui chegamos ao que o húngaro entende como única saída para o colapso ambiental iminente, resultado da relação destrutiva entre homem e natureza sob a égide do modo de produção capitalista: a alternativa socialista. Importante salientar que o texto tratou com enfoque sua grande obra, Para Além do Capital e, tendo sido elaborada anteriormente à sua póstuma publicação, Para Além do Leviatã: para uma crítica do Estado, não conta com algumas ricas contribuições feitas nesta obra, que não deixa de trazer consigo algumas limitações, que, quem sabe, não serão enfoque de análises mais detidas. Apesar de adotarmos uma posição que se diferencie em certo grau daquela de Mészáros, acreditamos ser uma leitura necessária, razão pela qual esta análise se faz presente, buscando compreender, com as devidas mediações, a obra do húngaro em sua unidade e objetividade. Na luta pela emancipação humana, aqueles que buscam apontar os horizontes de sua possibilidade e de superação desta forma de sociabilidade que nos rebaixa, avilta, angustia e oprime, sempre estarão ao nosso lado e, com as devidas críticas, sempre terão nosso reconhecimento. Se os homens fazem sua própria história a partir das condições legadas pelo passado, chegamos onde chegamos porque nos apoiamos nos ombros de gigantes, e a busca pela nossa libertação e pela vida plena de sentido depende disso, de aproveitarmos o que de melhor tiver sido feito pelas gerações passadas, mas sempre em busca do desenvolvimento do gênero humano. III. A ALTERNATIVA SOCIALISTA É possível perceber, diante do exposto, a falibilidade e incapacidade de transformação efetiva da forma interacional entre homem-natureza — que se coloca da maneira necessariamente destrutiva que leva, hoje, a humanidade à beira do colapso — pelos movimentos de pauta única. Por partirem de pressupostos de reconhecimento da própria forma de sociabilidade, acreditando na possibilidade de conciliação das tensões da sociedade civil-burguesa a partir da ética e da política, Mészáros entende que estas formas de organização se apresentam frente a totalidade de forma parcelar e setorial, revelando, portanto, sua impotência em efetivar as próprias reivindicações — já que, para acreditar na ética e na política como formas de mediação racional de controle às práticas predatórias, é necessário negar os elementos mais fundamentais que compõem a base do sociometabolismo do capital: sua irracionalidade (apesar de sua efetividade) e sua incontrolabilidade. Neste sentido, a contraposição a esta proposta insuficiente — que abraça uma aparência a-histórica desta forma de vida que se impõe sobre a humanidade em sua escala totalizante — não pode ser outra senão a positiva — a ofensiva socialista. Em seus termos, Mészáros aponta: O projeto socialista representa a necessidade gritante da humanidade de discutir as causas como causas no modo de controle sociometabólico estabelecido, para erradicar, antes que seja tarde demais, todas as tendências destrutivas do capital, já bastante visíveis e cada vez mais preponderantes. (MÉSZÁROS, 2011, p. 132 - grifo nosso) Para transformar essencialmente as mediações primárias que constituem as bases da atual relação homem-natureza, Mészáros propõe, então, um projeto positivo enquanto alternativa socialista e única forma possível de se pensar um futuro para além do capital. A própria definição de uma alternativa socialista seria, para ele, um conjunto de práticas que cumprem as funções mediadoras primárias da reprodução sociometabólica em base racionalmente constituída e (conforme as necessidades humanas que mudam historicamente) alterável em sua estrutura, ou seja, sem subjugar os indivíduos ao ‘poder das coisas’ (MÉSZÁROS, 2011, p. 215). Justifica o autor: À luz da experiência histórica, é dolorosamente óbvio que, quaisquer que sejam as dificuldades pelo caminho, não se pode esperar sucesso duradouro, nem sequer no objetivo limitado de oposição ao capitalismo, sem que se troque o círculo vicioso das mediações intertravadas de segunda ordem do capital por uma alternativa positiva sustentável. (MÉSZÁROS, 2011, p. 215) Neste sentido, da mesma maneira em que Marx e Engels trazem, em 1848, no Manifesto Comunista, a proposta realmente socialista como aquela que surge, a partir das próprias determinações da sociedade capitalista (e não utopicamente), enquanto uma livre associação de indivíduos em que o desenvolvimento de um é condição para o livre desenvolvimento de todos (Cf. MARX; ENGELS, 2010, pp. 58-59), Mészáros trará consigo a proposta de retomada do controle da vida social, em atenção às determinações historicamente fundantes da sociabilidade, que partem dos próprios indivíduos em sua atividade concreta, mas que aparecem de formas estranhadas a partir das mediações de segundo grau na especificidade desta forma de sociabilidade. Neste sentido, para a proposição efetivamente socialista, o húngaro traz o que é essencial à sociabilidade humana enquanto tal, e não o que é mera contingência, resultado de determinado desenvolvimento humano no curso da história, e como é possível que esta prática possa se dar de maneira emancipada, sempre tendo em vista o que lhe é fundamental e o que é passível de transformação, neste caso, radical. Em suas palavras, sobre a alternativa socialista: Isto requer a instituição de formas e estruturas de controle metabólico por meio das quais os indivíduos – empenhados no necessário intercâmbio de uns com os outros e com a natureza, em harmonia com as exigências das funções mediadoras primárias da existência humana – possam dar significado às possibilidades da ‘reprodução ampliada’. Não no sentido de submissão à tirania de uma ‘ordem econômica ampliada’ fetichista, mas ampliando suas próprias forças criativas como indivíduos sociais. (MÉSZÁROS, 2011, p 215 - grifos nossos) Assim, são propostas novas condições de materialização das mediações primárias, compreendidas em sua complexidade, para o que seria essa alternativa de superação do sociometabolismo do capital. As condições não exigem, para tanto, o estabelecimento de distinções sociais de hierarquias estruturais. Compreendendo o caráter complexo da análise acerca de cada um dos elementos listados, não se propõe seu aprofundamento, mas a apresentação da lista enquanto um todo, tocando no que se coloca enquanto fundamental, para Mészáros, no estabelecimento de uma forma social emancipada de estranhamentos, a partir da atividade de indivíduos livremente associados. As condições explicitadas, pois, por Mészáros, são: a regulação da atividade reprodutora biológica [...]; a regulação do processo de trabalho [...]; o estabelecimento de relações adequadas de troca, sob as quais as necessidades historicamente mutáveis dos seres humanos podem ser associadas para otimizar os recursos naturais e produtivos (inclusive os culturalmente produtivos); a organização, a coordenação e o controle das múltiplas atividades pelas quais se asseguram e se preservam os requisitos materiais e culturais para a realização de um processo bem-sucedido de reprodução sociometabólica das comunidades humanas cada vez mais complexas; a alocação racional dos recursos humanos e materiais disponíveis, combatendo a tirania da escassez pela utilização econômica (no sentido de economizadora) dos meios e formas de reprodução da sociedade, tão viável quanto possível com base no nível de produtividade atingido e dentro dos limites das estruturas socioeconômicas estabelecidas; e a promulgação e administração das normas e regulamentos do conjunto da sociedade, aliadas às outras funções e determinações da mediação primária. (MÉSZÁROS, 2011, p. 213 - grifos nossos) Como se pode perceber, as medidas colocadas não trazem consigo mera utopia, uma abstração deslocada das condições de exercício da vida prática dos homens, sendo sempre pautadas nas condições objetivas da realidade da qual se parte e em oposição à específica relação homem-natureza sob o capital. A partir delas, o modo de produção social não se colocaria enquanto uma potência estranhada e aparentemente impessoal, mas enquanto algo controlado pelo homem. A reprodução ampliada não seria imposta por uma entidade estatal, mas definida por cada um dos indivíduos, que, a partir disso, conseguem impor-lhe um significado (MÉSZÁROS, 2011, p. 215). A alternativa socialista é o único vislumbre da humanidade contra uma destruição ambiental que extingue a possibilidade de se pensar em um futuro. A irracionalidade efetiva do capital atingiu o limite das contradições, e “a ameaça da incontrolabilidade lança uma sombra muito longa sobre todos os aspectos objetivos e subjetivos do modo historicamente singular de que o capital dispõe para controlar a ininterrupta reprodução sociometabólica.” (MÉSZÁROS, 2011, pp. 226-227 - grifos nossos). As tensões colocadas hoje na relação homem-natureza exacerbam o fracasso da defesa daqueles que entendem a política enquanto solução para o colapso ambiental. Por isso, compreender, como feito pelo autor, de que modo se colocam as mediações de segunda ordem — como uma névoa que embaça e obscurece as mediações primárias do capital — para então propor uma alternativa positiva, possível de relação sociometabólica, é essencial. Mészáros demonstra, então, sua atualidade e importância para se pensar o socialismo enquanto alternativa e solução para a catástrofe global no século XXI. IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo em vista o exposto ao longo do trabalho, a conclusão se apresenta na urgência de uma reorganização das forças progressistas, mesmo que em pautas diversas, enquanto integráveis, em uma estratégia única: a revolucionária. Se é possível concluir que não se identifica absoluta racionalidade, nem possibilidade de controle no sociometabolismo do capital, sequer os principais quadros que se apresentam enquanto personificações do capital, e muito menos as classes trabalhadoras, são capazes de conciliar os interesses contraditórios em conflito na sociedade civil-burguesa. Para que se possa reorganizar as forças produtivas em uma sociedade em que a relação homem-natureza não se apresente de maneira autodestrutiva como se encontra, é preciso não sustentabilizar a produção capitalista (o que à luz da incontrolabilidade é impossível, conforme desenvolvido na primeira parte), mas destruir suas próprias bases; atuar para além dela - para além do Capital. Esta, sim, é de fato a única alternativa. Entretanto, ela não perpassa simplesmente pela visão da natureza enquanto uma estrutura divina e imaculada, mas enquanto a primeira forma de objetividade com a qual os homens mantém contato, e a cujas leis eles devem se submeter, a fim de guiar sua própria vida e, simultaneamente, fazer história, a história da humanidade, com seus progressos de capacidades. Para que dessa forma a história possa ser construída, é essencial a mudança substancial das bases materiais da sociabilidade humana, que passa, necessariamente, pelas suas preocupações produtivas, que tem como base a própria relação homem-natureza, hoje, em risco. Se é a partir da interação objetiva entre os homens que eles fazem sua própria história, é preciso que se atenha às próprias determinações objetivas, que permitem - ou não - a existência humana enquanto tal. Não é a política (com fim em si mesma) o elemento capaz de trazer essa conciliação. Se reconhecemos a historicidade do gênero humano e, portanto, a raiz do homem é o próprio homem, isto é, se nos apresentamos enquanto autoprodutores de nós mesmos, a partir das condições legadas pelo passado, apenas a humanidade, a partir de sua atividade concreta, cotidiana e motivada por suas necessidades, é capaz de se emancipar — emancipação essa não ensimesmada pela política, mas se remetendo para a uma Revolução Social encabeçada pelas classes trabalhadoras, que, mais do que ninguém, têm interesse nesse processo. Como diz Mészáros, se a miséria alemã não trazia consigo condições materiais na busca idealista pela efetivação da Ideia, hoje existem condições para buscar a realização do que se propõe, mas a ideia socialista parece cada vez se distanciar mais do mundo real e das necessidades reais (MÉSZÁROS, 2011. p. 2018); se o idealismo era a expressão filosófica de um determinado momento histórico e situado, hoje temos as bases materiais para sua superação, mas parecemos cada vez mais resignados e distantes de uma perspectiva de transformação radical do existente. Sobre o recomeço e a reestruturação, deve-se trazer célebre frase de José Chasin: é preciso fazer – não alguma coisa, mas a coisa certa. Re-começar. Sem mito e sem mística, o re-começo é antes de tudo um re-encontro da classe, uma retomada da razão do trabalho, como potência central de uma dada ação política, que faz política para além da mera razão política. Ação política, nem politicismo, nem economicismo, ou seja, movimento social que visa à matriz e por seu meio o complexo da sociabilidade que ela engendra e mantém (CHASIN, 1983, p. 44). Para recomeçar, é preciso mais do que nunca criar, mas ao mesmo tempo não é necessário reinventar a roda. Trazer à luz tudo que fora legado pelas gerações passadas, aprender com os erros e buscar superá-los, mas nunca ignorá-los, afinal, insistir no erro é repetir o fracasso. Neste ímpeto, Mészáros nos mostrou ser figura incontornável, tanto no reavivamento do legado propriamente marxiano, quanto nas percepções mais fundamentais das especificidades de nossa época. A reconstrução é necessária não somente para a emancipação, mas, em futuro, pela própria existência objetiva do gênero humano. Se, hoje, a revolução está morta, viva a revolução. NOTAS: 1. Fundamental reconhecer que, apesar de trazer consigo o legado lukacsiano, Mészáros tem, no que toca a concepção de ética, bem como seu papel num processo de transição de uma forma de organização social a outra, uma posição um tanto diferente daquela de seu conterrâneo. Para ele, ao trazer a ética como um elemento capaz de humanizar o homem, ao colocá-lo frente à totalidade mais do que a partir de sua posição na cadeia produtiva, Lukács traz consigo um papel ativo para a ética em suas elaborações teóricas, tendo um propósito desfetichizador a partir do qual o indivíduo é capaz de se remeter para além de sua particularidade e dando o poder da escolha de transformação radical das bases sociais às quais os homens se encontram subordinados (MÉSZÁROS, 2011, 492-494). Entretanto, reconhecendo a ética enquanto uma forma de mediação secundária, ainda em íntima relação com a própria política (MÉSZÁROS, 2011, pp. 498-500), Mészáros aponta nela um elemento negativo subestimado por Lukács em suas elaborações (sempre se remetendo às principais obras de vigor maduro de seu mestre, em especial à Grande Ontologia - cf. LUKÁCS, 2013), onde seu “discurso sobre a ética opera num nível de abstração em que as mediações materiais realmente existentes - alienadas e alienantes - têm importância secundária, já que a ética em si deve supostamente cumprir o papel crucial da mediação entre o particularismo dos indivíduos e a humanidade para-si” (MÉSZÁROS, 2011, p. 499). Mesmo que não seja elemento fundamental para a elaboração desse trabalho a discussão acerca das diferenças entre a concepção da eticidade em Mészáros e Lukács, acreditamos ser importante essa pontuação precisamente pela influência do pensamento de Lukács tanto em Mészáros quanto no esforço aqui feito, o que, de forma alguma, traz (e nunca poderia trazer) identidade absoluta e reprodução meramente mecânica do pensamento deste autor que nos é tão caro. A crítica à ética feita por Mészáros e aqui elucidada se apresenta frente a seu papel de mediação de segundo grau no processo de reprodução sociometabólica do Capital. 2. Em nível mais abstrato, as determinações trazidas por Mészáros são materializadas na concretude de medidas como as propostas por Marx e Engels ao fim da segunda parte do Manifesto, que buscam, a partir da particularidade do momento em que fora escrito, destruir as bases materiais que trazem consigo uma reprodução estranhada da forma de interação entre os homens em sua atividade concreta e, a partir daí se construir uma sociedade pautada de fato no que realmente se mostra essencial. As propostas de Marx e Engels buscam, partindo da tomada do poder político, destruir “violentamente as antigas relações de produção” (MARX; ENGELS, 2010, p. 58) -, que se apresentam mediadas não apenas pelo elemento político aqui discorrido, mas por outras formas de mediação que Mészáros apresenta - de modo a construir uma nova sociedade enquanto “uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos” (MARX; ENGELS, 2010, p. 59). A partir dos elementos mais essenciais à atividade humana trazidos por Mészáros, o autor busca demonstrar as potencialidades que esta atividade pode alcançar a partir da retomada de controle de da vida social pelos homens, que perpassa, em seu momento preponderante, a retomada do controle da produção a partir dos termos por ele elaborados. 3. Para compreender mais o significado de o capital ter atingido o zênite de suas contradições, trazemos aqui outra citação de Mészáros em sua obra Socialismo ou Barbárie: “Hoje não há sentido em falar de um ‘desenvolvimento geral da produção’ associado à expansão das necessidades humanas. Assim, dada a forma em que se realizou a deformada tendência globalizante do capital - e que continua a se impor -, seria suicídio encarar a realidade destrutiva do capital como o pressuposto do novo e absolutamente necessário modo de reproduzir as condições sustentáveis da existência humana. Na situação de hoje, o capital não tem mais condições de se preocupar com o ‘aumento do círculo de consumo’, para benefício do ‘indivíduo social pleno’ de quem falava Marx, mas apenas com sua reprodução ampliada a qualquer custo, que pode ser assegurada, pelo menos por algum tempo, por várias modalidades de destruição.” (MÉSZÁROS, 2003, p. 11) 4. Referência à passagem marxiana n’As lutas de classes na França, trazendo o reconhecimento da derrota dos movimentos revolucionários como processo necessário para sua maturação e reconstrução. “Portanto, a derrota de junho foi imprescindível para que fossem criadas as condições nas quais a França pôde tomar a iniciativa da revolução europeia. Só depois de mergulhada no sangue dos insurgentes de junho a tricolor se transformou na bandeira da revolução europeia – na bandeira vermelha! E nós bradamos: A revolução está morta! – Viva a revolução!” (MARX, 2012, p. 65) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: CHASIN, José. A sucessão na crise e a crise na esquerda. São Paulo: Ensaio; n. 17/18, 1989. _____. Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009. _____. Marx, hoje: da razão do mundo ao mundo sem razão. In: Nova Escrita Ensaio. Ano XV, n° 11/12. Edição Especial. São Paulo: Editora e Livraria Escrita, 1983. _____. Rota e prospectiva de um projeto marxista. In. Ensaios Ad Hominem - N. 1, Tomo III – Política (2000). São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, 2000. FOSTER, John B. Marx’s Ecology. New York: Monthly Review Press, 2000. HEGEL, G. W. F. Lecciones sobre la filosofía de la historia universal (Trad. José Gaos). Madrid: Revista de Occidente, 1974. LÖWY, Michael. O que é o ecossocialismo? São Paulo: Cortez, 2014. LUKÁCS, Georg. El asalto a la razón (Trad. Wenceslao Roces). Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 1959. _____. Para uma ontologia do ser social (Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes). São Paulo: Boitempo, 2013 _____. Socialismo e democratização: escritos políticos 1956-1971 (Tradução de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. MARX, Karl. As lutas de classes na França de 1848 a 1850 (Tradução de Nélio Schneider). São Paulo: Boitempo, 2012 _____. Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: Crítica da filosofia do Direito de Hegel (Tradução de Leonardo de Deus) São Paulo: Boitempo, 2013. _____. Grundrisse (Tradução de Mário Duayer e Nélio Schneider). São Paulo: Boitempo, 2011. _____. Manuscritos econômico-filosóficos (Tradução de Jesus Ranieri). São Paulo: Boitempo, 2004. _____. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (Tradução de Nélio Schneider). São Paulo: Boitempo, 2011. _____. Sobre a questão judaica (Tradução de Nélio Schneider). São Paulo: Boitempo, 2010. MARX, Karl; ENGELS, Friederich. O Manifesto Comunista (Tradução de Álvaro Pina e Ivana Jinkings). São Paulo: Boitempo, 2010 MÉSZÁROS, István. Para Além do Capital (Tradução de Paulo César Castanheira e Sérgio Lessa). São Paulo: Boitempo, 2011. ____. Socialismo ou Barbárie? (Tradução: Paulo Cezar Castanheira). São Paulo: Boitempo, 2003. SARTORI, Vitor Bartoletti. Política, gênero humano e direitos humanos na formação do pensamento de Karl Marx. Rio de Janeiro: Revista Direito e Práxis, Ahead of print, 2020.
- Entre passado e presente, a classe trabalhadora
Por Igor Dias Domingues de Souza O presente texto sintetiza os aspectos teóricos e análises centrais do trabalho de pesquisa “A História é o Agora: o tempo presente e a classe trabalhadora entre Engels e Thompson”. Greve operária no Brasil, 1917 1. HISTORIOGRAFIA E TEMPORALIDADE 1.1 Cientificidade Historiográfica Hoje, dos departamentos aos menores grupos de estudantes de História, passando pelas revistas e pelos docentes de História na escola básica, se discute acerca do caráter científico da História e sua capacidade de apreender objetivamente a realidade. Por um lado se defende uma particularidade interpretativa textual que assemelha o trabalho de escrita da História com o da escrita literária, com a ressalva da necessidade textual das fontes, o que a caracterizaria, grosso modo, como apenas mais um gênero textual (JABLONKA, 2016); por outro, há concepções diversas acerca da formulação científica da disciplina que datam principalmente da segunda metade do século XIX com o advento do historicismo ou positivismo de Ranke (2010), mas que hão de se estender por toda a história da historiografia, tendo como expoentes no século XX a primeira geração dos Annales (BLOCH, 2001) e parcela da historiografia marxista britânica (HOBSBAWN, 2013). Iniciamos, portanto, tomando lado nesta discussão. Para fins do presente trabalho, trataremos a disciplina da História como ciência por compreendê-la como tal, muito embora devamos deixar clara a nossa rejeição ao historicismo alemão como parâmetro teórico e epistemológico para a historiografia. Assim, lançaremos mão da compreensão da ciência histórica como a “história dos homens” tal qual nos demonstram Marx e Engels: Conhecemos uma única ciência, a ciência da história. A história pode ser examinada de dois lados, dividida em história da natureza e história dos homens. Os dois lados não podem, no entanto, ser separados; enquanto existirem homens, história da natureza e história dos homens se condicionarão reciprocamente. A história da natureza, a assim chamada ciência natural, não nos diz respeito aqui; mas, quanto à história dos homens, será preciso examiná-la, pois quase toda a ideologia se reduz ou a uma concepção distorcida dessa história ou a uma abstração total dela. A ideologia, ela mesma, é apenas um dos lados dessa história. (ENGELS; MARX, 2007, p. 86-87) Por certo, não podemos equiparar os métodos científicos da História a demais disciplinas como a Química e a Física, haja vista a particularidade de que nas chamadas ciências humanas (e sociais) “[...]não podemos nos servir de microscópio nem de reagentes químicos. A força da abstração [Abstraktionscraft] deve substituir-se a ambos.” (MARX, 2017, p. 77-78) Coloca-se para nós um dilema, no entanto. A temporalidade tem sua forma ideológica (ENGELS; MARX, 2007, p. 87) consumada na memória, de modo que, à medida que se aproxima do historiador o espaço de experiência onde se circunscreve seu objeto de estudo, mais presente se faz a memória, impondo conflitos à operação histórica. Como aponta Delacroix, esse problema ocorre justamente no “grau de autonomia da história em relação à memória” (DELACROIX, 2018a, p. 24), o que, consequentemente, coloca em questão o estatuto de ciência da História, levando em consideração ser a memória a contraparte viva do tempo e que, portanto, compõe o espaço de experiência analisado (DELACROIX, 2018b, p. 24). O choque entre memória e História somente pode ocorrer no tempo presente ou no passado próximo. Desse modo, apresenta-se, sobremaneira, sob a forma do testemunho e do relato. Há, porém, que identificar outro elemento que compõe a análise no processo de aproximação do espaço de experiência em adição ao relato: a observação mesma do historiador. Dessa maneira, devemos pousar brevemente nossos olhos sobre a Antiguidade. Se mergulharmos nos momentos de emergência da disciplina histórica, na Antiguidade, constatamos que esta abordagem já tem o peso de uma longa tradição. Assim, segundo Tucídides, que ouvia o relato das guerras do Peloponeso, não há outra história que a do tempo presente e é em seu nome e suas exigências que ele critica com veemência Heródoto, chamado de logógrafo e de mitólogo. O contrato de verdade, próprio ao discurso do historiador, pressupõe, segundo Tucídides, a testemunha ocular. (DOSSE, 2012, p. 7) É necessário ressaltar, por outro lado, que o paradigma da História se altera a partir do século XVIII (KOSELLECK, 2006) e a própria História como ciência parcelar surge apenas no decorrer do século XIX, no processo de fragmentação que acometeu tanto a “história da natureza” quanto a “história dos homens” (ENGELS; MARX, 2007, p. 86), de modo que: Quando a história se profissionalizou no século XIX com a escola metódica, os historiadores privilegiaram, ao contrário, as fontes escritas e insistiram na necessidade de uma objetivação que passou pelo estabelecimento de uma ruptura entre o passado e o presente. As fontes documentais disponíveis nos arquivos foram produzidas há mais de cinquenta anos, em função dos prazos de guarda da documentação permanente. Isso resulta em uma desqualificação da história imediata. (DOSSE, 2012, p. 8) Devemos ressaltar que este paradigma, embora venha cada vez mais desaparecendo dos trabalhos desenvolvidos, ainda sustenta-se no meio profissional: Em 1992, em um simpósio realizado em Paris, organizado pela IHTP com o tema “Escrever a história do tempo presente” (IHTP, 1993), René Rémond afirmava: “a batalha está ganha”. Mas se tratava ainda de uma afirmação de caráter performativo, pois a prática ainda permanece suspeita e ilegítima; ainda não considerada científica; confinada como um domínio separado, muito marcada por uma relação incestuosa com o jornalismo. (DOSSE, 2012, p. 6) Portanto, uma vez que nos cabe no presente trabalho desenvolver acerca do tempo presente, devemos primeiro compreender o fazer historiográfico sob as rédeas do tempo, ou seja, aquele que, dotado de visão retrospectiva, relaciona-se com a temporalidade de forma passiva, para em seguida analisarmos a operação historiográfica circunstrita no seu próprio tempo, seja esta a História do Tempo Presente (HTP). 1.2 A História do Tempo A concepção de História como disciplina responsável pelo estudo exclusivo do passado é, como demonstra Ferreira, mais contemporânea do que se afirma e nasce de um embate político entre a III República francesa e os eruditos e arquivistas hostis ao regime (FERREIRA, 2000, p. 112-113). Assim: De 1870 à 1914 ocorreu uma brutal institucionalização da universidade literária e científica, o que ilustrava a vontade dos governantes republicanos de reforçar o controle do Estado sobre o ensino superior, num momento em que os projetos universitários católicos se multiplicavam. (FERREIRA, 2000, p. 112) De modo a restringir a atividade política destes intelectuais, a institucionalização da História ocorreu, a nível aparente, no sentido de solucionar a heterogeneidade normativa para a prática científica por meio da criação de um tronco comum formativo para a pesquisa histórica, o que, até 1880, podemos afirmar, inexistia para o ofício (FERREIRA, 2000, p. 112). Esse movimento permitiu uma autonomia para a disciplina, no entanto, a nova geração de historiadores foi acometida pela necessidade de afirmar-se o campo em sua particularidade num processo de desmembramento científico. Dessa maneira: A afirmação da concepção da história como uma disciplina que possuía um método de estudo de textos que lhe era próprio, que tinha uma prática regular de decifrar documentos, implicou a concepção da objetividade como uma tomada de distância em relação aos problemas do presente. Assim, só o recuo no tempo poderia garantir uma distância crítica. Se se acreditava que a competência do historiador devia-se ao fato de que somente ele podia interpretar os traços materiais do passado, seu trabalho não podia começar verdadeiramente senão quando não mais existissem testemunhos vivos dos mundos estudados. Para que os traços pudessem ser interpretados, era necessário que tivessem sido arquivados. Desde que um evento era produzido ele pertencia a história, mas, para que se tornasse um elemento do conhecimento histórico erudito, era necessário esperar vários anos, para que os traços do passado pudessem ser arquivados e catalogados (Noiriel, 1998). (FERREIRA, 2000, p. 113) Somente algumas decadas após a consolidação deste método acadêmico que a crítica historiográfica passa a questionar o caráter determinante do tempo para a conformação da História como campo científico. Embora não possamos negar que “os homens fazem a sua própria história; contudo não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhe foram transmitidas assim como se encontram” (MARX, 2011, p.25), a visão retrospectiva tal qual foi imposta neste período inicial de institucionalização, levado às suas últimas instâncias pelo historicismo, transformou a “história dos homens” na “história do tempo”, sob o qual o homem não se torna nem mesmo carcaça do tempo. Desse modo, basta evidenciarmos o problema da definição de passado, por meio do questionamento de suas fronteiras na divisa com o presente. Acredita-se poder colocar à parte uma fase de pouca extensão no vasto escoamento do tempo. Relativamente pouco distante para nós, em seu ponto de partida, ela abarca, em seu desfecho, os próprios dias em que vivemos. Nela, nada nem as características mais marcantes do estado social ou político, nem o aparato material, nem a tonalidade genérica da civilização, nela nada apresenta, ao que parece, diferenças profundas com o mundo onde temos nossos hábitos. Ela parece, em suma, afetada, em relação a nós, por um coeficiente muito forte de “contemporaneidade”. Daí a honra ou a tara de não ser confundida com o restante do passado. “A partir de 1830, já não é mais história”, dizia-nos um de nossos professores de liceu que era [muito] velho quando eu era muito jovem: “é política”. Não diríamos mais hoje “a partir de 1830” – as Três Gloriosas, por sua vez envelheceram – nem “é política”. Antes, num tom respeitoso: “é sociologia”; ou, com menos consideração, “jornalismo”. Muitos porém repetiriam de bom grado: a partir de 1914 ou 1940, não é mais história. Sem, aliás, entenderem-se muito bem sobre os motivos desse ostracismo. (BLOCH, 2001, p. 61) Devemos nos atentar, portanto, que esta epistemologia advém de um processo particularizante danoso à compreensão geral dos possíveis objetos de estudo. Na conformação particular das ciências sociais (considerando a História como tal) em seu caráter ideológico sob o domínio de classe burguês, a incapacidade de compreender não mais que alguns fenômenos individualizados é a lei que rege o esquartejamento de uma análise que é inexoravelmente complexa. Dessa maneira, são tanto engendradas quanto são sintomáticas do que Lukács (1968) compreende como decadência ideológica da burguesia. Portanto: O fato de que as ciências sociais burguesas não consigam superar uma mesquinha especialização é uma verdade, mas as razões não são as apontadas. Não residem na vastidão da amplitude do saber humano, mas no modo e na direção de desenvolvimento das ciências sociais modernas. A decadência da ideologia burguesa operou nelas uma tão intensa modificação, que não se podem mais relacionar entre si, e o estudo de uma não serve mais para promover a compreensão da outra. A especialização mesquinha tornou-se o método das ciências sociais. Isto pode ser visto claramente através do exemplo de um sábio de nosso tempo, o qual, mesmo sendo um cientista escrupuloso, dispunha de um vasto e multiforme saber e, não obstante, jamais superou uma especialização estreita: refiro-me a Max Weber. Weber era economista, sociólogo, historiador, filósofo e político. Em todos estes campos, tinha à sua disposição profundos conhecimentos, muito superiores à média e, além disso, sentia-se à vontade em todos os campos da arte e de sua história. Não obstante, inexiste nele qualquer sombra de um verdadeiro universalismo. (LUKÁCS, 1968, p. 64) Este universalismo de que Weber se encontrava ontologicamente despojado, não poderia ser senão o que nos interessa em criticar as limitações da História com relação ao tempo legitimado pela academia. Com a finalidade de apreender este alargamento do espaço de experiência, sob o pretexto de maior capacidade de aproximar a ciência parcelar do universal, devemos reservar-mo-nos à análise do Tempo Presente. 1.3 O Tempo da História Ao tratarmos do tempo presente, nos deparamos com uma tradição recente já consolidada – cujo debate extenso devemos levar em conta para evitarmos confusões. Esta tradição tem origem com a fundação do Institut d’Histoire du Temps Présent, ligado ao Centre National de la Recherche Scientifique em 1978 (DELACROIX, 2018b, p. 5). No entanto, atenderemos às somadas divergências, que vão desde a nomenclatura quanto o método e os aportes teóricos, no sentido de não nos restringirmos ao cânone, adotando uma acepção ampliada acerca do que é a HTP. Portanto, ainda que façamos um breve interlúdio para apresentar o debate historiográfico, trataremos a temporalidade em nossos próprios termos. Como nos demonstra Dosse: “A história do tempo presente está na intersecção do presente e da longa duração. Esta coloca o problema de se saber como o presente é construído no tempo.” (DOSSE, 2012, p.6). Esta simplificada definição acerca da HTP dá o tom de algumas fragmentações entre concepções historiográficas acerca do presente. Além da dita história do tempo presente, temos também a história imediata e a história do muito contemporâneo. Não vemos necessidade de expandir o debate em torno dessas concepções, principalmente porque entendemos tratarem do mesmo período temporal e porque nos inclinamos à posição de Antoine Prost de que a história do tempo presente é a História em si (DOSSE, 2012, p.6). Apesar de tendermos à posição de que a HTP é História tanto como as demais, devemos observar que é um campo singular por ter a capacidade de dialogar com a memória e utilizar-se de relatos e testemunhos como fonte. Embates tais não são possíveis por meio da visão retrospectiva, posto que fundamentalmente estão mortos todos aqueles presentes nos processos analisados, e reduzem a capacidade de crítica à mesma, tornando-a por vezes intocável e inacessível – inclusive entre os pares. De acordo com o historiador François Bédarida (em Ferreira, 2012, p.109) sua característica básica é a presença de testemunhos vivos, que podem vigiar e contestar o pesquisador, afirmando sua vantagem de ter estado presente no momento do desenrolar dos fatos. O desdobramento desse argumento é que a história do tempo presente possui balizas móveis, que se deslocam conforme o desaparecimento progressivo de testemunhas. Assim, que cronologia, que evento-chave, reconhecido, deve ser adotado como marco inicial da história do tempo presente? Para alguns, trata-se do período que remonta a uma última grande ruptura; para outros, trata-se da época em que vivemos e de que temos lembranças ou da época cujas testemunhas são vivas e podem supervisionar o historiador e colocá-lo em xeque (Voldman, 1993). Ou ainda, como afirma Hobsbawm (1993; 1998), o tempo presente é o período durante o qual se produzem eventos que pressionam o historiador a revisar a significação que ele dá ao passado, a rever as perspectivas, a redefinir as periodizações, isto é, olhar, em função do resultado de hoje, para um passado que somente sob essa luz adquire significação. Outra questão que mereceu destaque foi a noção de ‘tempo presente’ e suas relações com os contemporâneos, os testemunhos, os atores, a demanda social e as outras disciplinas. Desse debate, uma questão relevante que emergiu foi a afirmação de que o ‘tempo presente’ constitui um campo científico singular, pela sua própria definição. (DELGADO; FERREIRA, 2013, p. 22-23) A HTP, no sentido de sua delimitação temporal, é história como qualquer outra. No entanto, ao desenvolver estudos que lidam com processos cuja conclusão ainda não ocorreu, seja na realidade primeira do mundo concreto, seja na memória coletiva, associa-se à idéia de um conhecimento provisório, que está sujeito a sucessivas alterações e reconstruções à medida que surgem novos elementos e que se distancia temporalmente dos processos. Isso implica afirmar que o próprio tempo dita o fazer histórico no presente de modo distinto à operação de longa duração temporal, portanto, tem suas características definidoras advindas da matriz nuclear da dimensão presencial do tempo (DELGADO; FERREIRA, 2013, p. 24). As relações do historiador com o objeto no próprio momento se estabelece como o tempo de fazer a História. Assim: Outra singularidade do tempo presente é a valorização do evento, da contingência e da aceleração da história. O trabalho do historiador enfrenta também aí dificuldades, porque ele mesmo é também testemunha e ator de seu tempo e, muitas vezes, está envolvido nesse movimento de aceleração que o faz supervalorizar os eventos do tempo presente, especialmente porque os séculos XX e XXI têm sido mais ricos em grandes mudanças do que nos fenômenos de longa duração que necessitam de maior recuo. (DELGADO; FERREIRA, 2013, p. 23) A dificuldade de delimitação temporal, muitas vezes definida pelos historiadores do IHTP como balizada pelo último marco socialmente traumático e, portanto, por uma ingerência da memória sobre a História (mais especificamente da memória traumática), é um problema sobre o qual devemos estabelecer consensos – mais imediatamente para o presente trabalho, mas, em caráter igualmente urgente, para todo o campo de estudo. Compreendemos que a memória traumática é uma baliza demasiado móvel para nos coordenar em nossos trabalhos, porque suscita problemáticas irresolúveis no sentido de poderem, à medida que se desvelam os tempos, ocorrer em distâncias temporais variáveis e sobreporem-se umas às outras, em locais distintos, que nos levam, portanto a priorizar uma sobre as demais como parâmetro temporal. Ainda que seja possível em determinadas condições sócio-históricas, as variáveis apontam esta saída epistemológica como demasiadamente complexa e igualmente inefetiva. Há também o ponto de sujeição da História à memória que se encontra imediatamente abaixo da superfície desta concepção metodológica. Compreendendo a História como ciência, deixá-la nas mãos de algo subjetivo e volátil como a memória nos parece uma opção suicida. É por tais motivos que optamos por determinar as “balizas móveis” ((DELGADO; FERREIRA, 2013, p. 22) pela possibilidade mesma de recolher testemunhos como fonte – muito embora não sejam obrigatórios para o procedimento – ou de presenciar o período histórico sobre o qual se debruça, ou seja, desde que hajam sujeitos vivos capazes de rememorar, estamos sob o regime do tempo presente. Esta solução pode parecer demasiado simples, mas é suficiente para que possa haver verificabilidade da fonte oral (portanto, do indivíduo do qual se extraiu o relato) e submeter esta produção científica em constante alteração à apreciação de um público capaz de contestá-la o conferir a ela ainda maior legitimidade. Embora ainda não seja completamente assimilada pela comunidade de historiadores e seja mesmo desprezada e desqualificada junto com a utilização de fontes singulares como os testemunhos diretos – em parte pelas limitações erigidas pela criação das ciências parcelares (DELGADO; FERREIRA, 2013, p. 21), em parte por não necessitar fundamentalmente de farta erudição cultural ou epistêmica (FERREIRA, 2000, p. 114) - , a HTP possibilitou uma série de inovações teórico-metodológicos à História como ciência parcelar. A crítica da fonte, que a torna capaz de ser utilizada, independente de seu suporte ou de sua temporalidade, é um fundamento metodológico que serve para a antiguidade do mesmo modo que para a atualidade, de modo que a erudição torna-se problema para a compreensão somente à medida em que o objeto torna-se incompreensível sem a mesma. Apreende-se assim, que, mesmo sob a constante vigilância da memória e do conjunto dos historiadores: A história se reescreve permanentemente, mas não aleatoriamente. A operação histórica envolve a “combinação de um lugar social, de práticas científicas e de uma escrita” (CERTEAU, 1982, p. 66), e oferece procedimentos de análise próprios capazes de propor uma elaboração específica do passado. O historiador pode ser um intérprete dos equívocos políticos do passado e dos mecanismos de construção das memórias, não se deixando levar pelos rótulos fáceis da banalização ou da sacralização da memória e, inclusive, questionando a função desse passado rememorado. O compromisso do historiador com o presente no exercício do seu ofício não deveria estar associado a uma militância em prol de uma memória social específica. Com os instrumentos da história, poder‐se‐ia propor uma mudança de perspectiva do dever de memória para o trabalho com a memória. O historiador não tem o monopólio sobre a memória, mas ele detém os instrumentos para lidar com a sua pluralidade e fragmentação. É certo que a análise sobre os fatos ocorridos, a identificação dos episódios e a reflexão sobre esse passado recente serão resultado de um esforço de escrita da história. Um trabalho sobre o terreno da memória, mas próprio à história. (FERREIRA, 2018, p. 100-101) 2 ENTRE PASSADO E PRESENTE, A CLASSE TRABALHADORA Tendo estabelecido noções gerais acerca da História procederemos, então, à análise comparativa de dois estudos particulares sobre o mesmo objeto – o proletariado inglês do século XIX (e sua gestação no século XVI). Devemos mais uma vez justificar a escolha categórica das obras: a fim de que possamos estudar a temporalidade de maneira isolada, nos é necessário a capacidade singular que o corpo bibliográfico composto pela Situação da classe trabalhadora na Inglaterra (ENGELS, 2010) e A Formação da Classe Operária Inglesa (THOMPSON, 2020a; 2020b; 2012) nos possibilitam. Deste modo, contrapondo um trabalho contemporâneo e outro extemporâneo, portanto dotado de visão retrospectiva, na sua análise do objeto, resta-nos o tempo mesmo como síntese. 2.1 Engels e a situação da Classe em sua origem Em sua obra A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, Engels, que havia sido enviado por seu pai a Manchester para administrar parte de suas indústrias, escreve para os alemães sobre uma nova classe produzida pela indústria. Este fator primeiro nos é caro para compreendermos duas questões essenciais da obra: Engels a escreve de modo a examinar como a indústria engendrou a miséria na Inglaterra buscando expor tal situação a uma Alemanha parcamente industrializada, que, portanto, poderia padecer do mesmo fenômeno; além disso, Engels escreve contemporaneamente ao desvelar dos fatos, de modo que nos serve, ainda que seja uma obra anterior à conformação acadêmica da História, como pleno exemplo de História do Tempo Presente. O caráter testemunhal que a obra adquire não é negado em momento algum pelo autor, pelo contrário. Engels inicia sua obra por demarcar que não a escreve meramente por fontes terceiras, mas que é, ele mesmo, relator. Dessa maneira, faz questão de confundir-se com seu objeto de estudo no momento da pesquisa (da vivência ou do colhimento do relato), distanciando-se dele no momento de escrita e checagem de fatos: Durante vinte e um meses, tive a oportunidade de conhecer de perto, por observações e relações pessoais, o proletariado inglês, suas aspirações, seus sofrimentos e suas alegrias - ao mesmo tempo em que completava minhas observações recorrendo as necessárias fontes originais. Tudo que vi, ouvi e li está reelaborado neste livro. (ENGELS, 2010, p. 41) Embora possa se argumentar que o interesse do autor no objeto possa ser expresso por uma preocupação única com a miséria, esta se esvai na explicação mesma da motivação do estudo. Engels nos demonstra que, embora hajam na Inglaterra diversas associações filantrópicas burguesas e associadas ao Estado (estas por via das leis de assistência social), não há uma compreensão real da situação da classe trabalhadora, senão considerações ideológicas acerca da mesma (ENGELS, 2010, p. 42). Há portanto, uma preocupação com a análise científica da realidade, preocupada, porém com problemas engendrados pela própria realidade que visa dissecar. De modo a superar o caráter ideológico e parcelar dos estudos contemporâneos sobre a classe trabalhadora e compreender a mesma de forma global e científica, o autor, portanto, se preocupa na elaboração de uma metodologia autêntica que acompanhe a particularidade do objeto de estudo. Assim, define meios para contrapor sua experiência individual com fontes, submetendo sua própria observação à crítica, mas simultaneamente, criticando as fontes por meio de seu testemunho. Valendo-se, da mesma maneira, da compreensão de ausência de neutralidade nas fontes, Engels seleciona frente um mar de possibilidades, com quais realizará os debates na efetivação do estudo pela capacidade das mesmas de explicitarem e elucidarem o tema. Assim: [...] na maior parte das citações, indiquei o partido a que pertencem os autores mencionados, porque quase sempre os liberais procuram sublinhar a miséria das áreas agrícolas e negar a das áreas industriais, ao passo que os conservadores, ao contrário, reconhecem a indigência nas zonas industriais, mas tratam de ignorá-la nas agrícolas. Por essa razão, quando me faltaram documentos oficiais acerca dos trabalhadores industriais, preferi sempre a opinião de um liberal, de modo a oferecer a própria palavra da burguesia liberal, e só recorri a conservadores ou cartistas quando minha observação pessoal assegurava a exatidão dos fatos ou quando a veracidade da afirmação vinha garantida pela personalidade moral ou intelectual do autor citado. (ENGELS, 2010, p. 43) Tendo em vista a capacidade científica estabelecida pelo distanciamento epistemológico proporcionado por meio da utilização combinada de fontes diversas e pela crítica das mesmas, Engels estabelece, assim, o limite do espaço de experiência a de que se valerá na obra: A história da classe operária na Inglaterra inicia-se na segunda metade do século passado, com a invenção da máquina a vapor e das máquinas destinadas a processar o algodão. Tais invenções, como se sabe, desencadearam uma revolução industrial que, simultaneamente, transformou a sociedade burguesa em seu conjunto - revolução cujo significado histórico só agora começa a ser reconhecido. (ENGELS, 2010, p. 45) Embora estabeleça este espaço ampliado de quase um século, o autor compreende uma urgência em deter-se no estudo do proletariado e não de todos os processos históricos subjacentes que o circundam (ENGELS, 2010, p. 45). Assim, visa conferir maior objetividade ao trabalho, por estabelecer diálogo contínuo entre observação e fontes, garantindo a capacidade probante da argumentação. Não é possível, no entanto, que se faça essa análise, sem que se realize um prelúdio acerca da formação do sistema fabril inglês, que, segundo Engels, engendra a classe (ENGELS, 2010, p. 45-46), que ainda sob a organização do trabalho manufatureira expressava em germe as relações sociais que viriam a conformá-la. Assim, estabelece as condições gerais que implicam a emergência histórica do proletariado: De fato, não eram verdadeiramente seres humanos: eram máquinas de trabalho a serviço dos poucos aristocratas que até então haviam dirigido a história; a revolução industrial apenas levou tudo isso às suas últimas consequências extremas, completando a transformação dos trabalhadores em puras e simples máquinas e arrancando-lhes das mãos os últimos restos de atividade autônoma - mas, precisamente por isso, incitando-os a pensar e a exigir uma condição humana. (ENGELS, 2010, p. 47) A situação da classe, para Engels, se expressa nestas tais relações sociais de produção que extrapolam o ambiente de trabalho e se conformam historicamente. Desta feita, por exemplo, a saúde precária observada entre operários (sobretudo doenças pulmonares) advém, sobretudo da má condição habitacional causada pelo retorno mais imediato dos lucros na contrução e ocupação destas moradias pelos industriais que as financiavam e os empregavam simultaneamente (ENGELS, 2010, p. 138). Da mesma forma, as relações de trabalho e a exploração do trabalho incidem sobre a escolaridade e a religiosidade (aspecto fundamental da vida moral vitoriana) tanto pelo tempo necessário, quanto pela própria distinção sustentada no âmbito material à qual, por vezes, não havia correspondência ideária que apetecesse aos trabalhadores. Desse modo: É claro que a instrução moral, em todas as escolas inglesas vinculada à educação religiosa, não pode ser mais eficiente que esta. [...] Todas as fontes admitem expressamente - sobretudo aquelas ouvidas pelo Children's Employment Comission - que as escolas praticamente não contribuem para a moralidade da classe operária. (ENGELS, 2010, p. 153) Consequentemente: As debilidades de sua educação preservam-no dos preconceitos religiosos - não os compreende e não se preocupa com eles e, assim, desconhece o fanatismo de que a burguesia é prisioneira; se professa alguma religião, fá-lo formalmente, sem qualquer base teórica; na prática, vive só para este mundo, no qual procura uma existência segura. (ENGELS, 2010, p. 163) É notável, portanto, que se conformam, numa mesma realidade, dois mundos distintos: o mundo burguês e o mundo do trabalho. De tal modo que tornam-se as relações de produção, assim como no engendramento geral desta dicotomia, o meio pelo qual se expressam ambas as esferas sociais. Engels, no entanto, demonstra como esta classe trabalhadora britânica do século XIX, tem menos para si que não o trabalho. Em vista disso, os lucros garantidos pelo surgimento da indústria e constantemente potencializados pelo avanço tecnológico a pressionam para uma miséria crescente e, concomitantemente, a uma consciência geral própria – esta que extrapola a consciência individual, sendo senão uma expressão comum à maioria dos trabalhadores à época. Portanto, o autor nos explica: Nas condições sociais vigentes, as consequências de todos os aperfeiçoamentos mecânicos são desfavoráveis aos operários, e o são em alto grau, qualquer máquina nova provoca desemprego, miséria e infortúnio e, num país como a Inglaterra onde já se encontra permanentemente uma "população excedente", a perda do trabalho é, na maioria dos casos, o que de pior pode acontecer a um operário. Ademais, é brutal o efeito esgotador e enervante que causa nos operários, cuja situação é sempre precária, a insegurança sobre sua condição, acarretada pelo incessante progresso mecânico e pela ameaça do desemprego. Para escapar ao desespero, o operário tem dois caminhos: a revolta interior e exterior contra a burguesia ou então o alcoolismo, a degradação. E os operários ingleses valem-se de ambos: a história do proletariado inglês inclui centenas de revoltas contra as máquinas e a burguesia, e inclui também a dissolução moral da qual já falamos. Esse é sem dúvida, um outro aspecto do desespero. (ENGELS, 2010, p. 178) Conforme dito, o autor nos afirma que a vida do trabalhador médio tende a restringir-se ao trabalho. Isto ocorre sobremaneira pela extensão das jornadas de trabalho e a insalubridade do ambiente fabril, que além de ocuparem absoluta maioria do tempo, também, assim como a situação das moradia, determinam condições precárias de saúde, sobretudo, como demonstra, sobre as crianças: A alta taxa de mortalidade que se verifica entre os filhos dos operários, especialmente dos operários fabris, é uma prova suficiente da insalubridade do ambiente em que transcorrem os primeiros anos de vida de sua vida. Esse ambiente influi sobre as crianças que sobrevivem, evidentemente com menor efeito que o exercido sobre suas vítimas fatais. Nos casos mais benignos, determina uma predisposição às doenças ou um atraso no desenvolvimento, donde um vigor físico inferior ao normal. O filho de um operário de fábrica, que cresce na miséria, entre privações e necessidades, exposto à umidade, ao frio, aos nove anos está muito menos apto ao trabalho que uma criança que se desenvolveu em condições mais sadias. Aos nove anos, vai para a fábrica, trabalhando diariamente seis hora e meia (antes, oito horas e, outrora, de doze a catorze e, às vezes, mesmo dezesseis) até a idade de treze anos; a partir de então, e até os dezoito anos, trabalhará doze horas por dia. Aos fatores de enfraquecimento físico junta-se, pois, o trabalho. [...] (ENGELS, 2010, p. 187-188) A inserção do maquinário na produção teria o caráter de subverter para esta parcela da população, a organização social inglesa. Deste modo: Em todas as partes se utilizam máquinas e, assim, destroem-se os últimos vestígios da autonomia do operário. Em todas as partes, a família desagrega-se por causa do trabalho feminino e infantil ou vê-se subvertida pelo desemprego do homem. Em todas as partes, o advento inelutável das máquinas subordina a indústria e, com ela, o operário ao grande capitalista. (ENGELS, 2010, p. 241) Segundo Engels, a coexistência de estruturas tradicionais com o avanço da indústria tende à dissolução da primeira, não sem que, com isso, gere problemas neste embate. Anteriormente nos elucidou claramente sobre o papel da mulher sob as estruturas patriarcais por meio da não dissolução destas relações tradicionais ao passo que adentram a produção em um movimento engendrado pela própria indústria. No entanto, não é somente nessa relação que a industrialização opera uma destruição transformadora, no próprio âmbito do mundo do trabalho, dissolve as relações de tipo antigo e as modifica para melhor servir ao modo de produção capitalista, de tal modo que “[...] dissolvida a tradicional vinculação entre trabalho industrial e trabalho agrícola, os campos inexplorados foram concentrados em grandes propriedades e os pequenos camponeses foram deslocados pela concorrência esmagadora das grandes explorações agrícolas”. (ENGELS, 2010, p. 293. Nesse movimento, por outro lado, engendrando nova categoria da classe, seja esta o proletariado agrícola, realiza o movimento dialético de reintroduzir na dinâmica da produção relações que aparentemente haviam sido superadas: No período imediatamente posterior ao nascimento do proletariado agrícola, desenvolveram-se nas regiões rurais aquelas relações patriarcais que no mesmo período foram destruídas no âmbito da indústria - relações entre camponeses e seus trabalhadores que ainda hoje subsistem em quase toda a Alemanha. (ENGELS, 2010, p. 294) O surgimento do proletariado agrícola por meio da centralização das terras, porém, implica na formação de um exército de reserva, de forma que, tendo em vista o compromisso do burguês com o lucro, resulta em um malthusianismo prosaico, mas fundamentalmente trágico para os trabalhadores. Na ausência de regulação da exploração da força de trabalho e da posse de terras: A "superpopulação", que se revelou bruscamente, não podia ser absorvida, como nos distritos industriais, pelo aumento da produção. Se era possível criar novas fábricas - desde que houvesse compradores para os produtos -, não era possível criar novas terras [...] Por consequência, a concorrência entre os trabalhadores foi levada ao extremo e o salário desceu ao seu limite mínimo. Enquanto esteve em vigor a velha lei dos pobres, os trabalhadores recebiam alguma ajuda - o que fez, naturalmente, com que os salários caíssem ainda mais, reduzidos pelos proprietários rurais, que trataram de transferir para a Caixa dos Pobres o grosso da manutenção dos trabalhadores. (ENGELS, 2010, p. 295) A esta soma de fatores, não podemos deixar de lado a relação do proletariado e dos burgueses com as leis. Embora não seja este um aspecto central da formação da classe e do estudo de Engels, percebemo-no como um divisor de águas no sentido serem a legislação, sua ausência, seu cumprimento e descumprimento marcadores que delimitam historicamente o comportamento antagônico das classes, seja no enfrentamento, seja no condicionamento de suas próprias existências por meio das normas sociais consolidadas. Engels manifesta, assim, como os trabalhadores alternam seu modus operandi frente ao tempo que se desvela diante de seus olhos. De tal modo, evidencia que tanto a classe como seu comportamento e consciência são frutos de uma relação social histórica: Antigamente, tais questões eram resolvidas com a mediação de um árbitro, mas como na maior parte das vezes os operários eram despedidos quando apelavam para ele, o costume foi abandonado e hoje o industrial age arbitrariamente: é, ao mesmo tempo, acusador, testemunha, juiz, legislador e executor. E se o operário recorre ao juiz de paz, dizem-lhe: Ao aceitar a carta, você fez um contrato e deve honrá-lo - exatamente o mesmo argumento usado com os operários fabris. De resto, o fabricante sempre obriga o operário a assinar um documento no qual este declara "estar de acordo com os descontos efetuados"; se o operário resiste a esse procedimento, todos os fabricantes da cidade logo ficam sabendo, como diz Leach: [que ele é um homem] que se revolta contra a ordem e a legalidade convalidadas nas cartas, que tem a imprudência de duvidar da sabedoria dos que, como ele deveria saber, são seus superiores na sociedade (Stubborn Facts..., p. 37-40) (ENGELS, 2010, p. 231) Este caráter de corrosão das leis a mando do domínio burguês é de alta valia para a demarcação da classe operária. Enquanto são submetidos ao jugo do legislador, legisla em causa própria o patrão, num movimento que somente pode ser explicado pelo caráter igualmente burguês do Estado moderno – particularmente do Estado inglês – em que são proprietários dos meios de produção, das terras e também das instituições que a tudo normatizam. É desta feita que o autor nos escancara a contradição legal: O burguês encontra-se a si mesmo na lei, como se encontra em seu próprio deus - por isso, ele a considera sagrada e, também por isso, a borduna policial, que no fundo é a sua borduna, exerce sobre ele um efeito tranquilizador de admirável eficácia. Para o operário, as coisas se apresentam completamente diversas. O operário sabe muitíssimo bem - porque aprendeu várias vezes, por experiência direta e própria - que a lei é um látego produzido pelo burguês; por isso, se não for obrigado, não a cumpre. (ENGELS, 2010, p. 261) A consciência de que as leis não são campo próprio de luta do proletariado, anteriormente já exemplificada (ENGELS, 2010, p. 231) e agora evidenciada pela contraposição entre o valor destas para estes e para a burguesia, não demonstra, no entanto, um abandono completo da disputa política legal. Este é um dado fundamental para a situação da classe no que tange à sua organização política, pois, compreendendo o caráter ilegal – e muitas vezes secreto – das associações de trabalhadores desde a formação do operariado até a primeira metade do século XIX, a disputa legal permitiu que, por meio do compromisso político com representantes na câmara dos comuns, fosse aprovada uma lei que alteraria a capacidade de luta. A lei em questão, aprovada em 1824, anulava todas as disposições precedentes que, até então, proibiam aos operários associar-se para a defesa de seus interesses. Os operários conquistaram assim um direito que, até esta data era um privilégio reservado à aristocracia e à burguesia: a liberdade de associação. (ENGELS, 2010, p. 249) Desse modo, ainda que de forma limitada, a possibilidade de organizar setores inteiros e mobilizar greves estruturadas estava dada como uma realidade possível. Assim, culminamos novamente com a assumpção do testemunho do autor. É fundamental ressaltarmos esta nova aparição em reforço do relato próprio, posto que, nesse momento, Engels compromete-se também com um caráter social do trabalho, ou seja, assume um compromisso com a própria realidade que estuda. Seja ele um dever de memória ou dever de história como já discutido, é fundamentalmente um dever que parte da própria compreensão geral do movimento do real. Dessa feita, escreve: É essa a situação da classe operária inglesa, tal como a verifiquei pessoalmente ao longo de 21 meses, com a ajuda de relatórios oficiais e de publicações dignas de confiança. E se considero - como expressei inúmeras vezes nas páginas precedentes - uma situação perfeitamente insustentável, devo dizer que não sou o único a julgá-lo assim. (ENGELS, 2010, p. 324) 2.2 Thompson e a origem da classe em particularização Tendo analisado a obra de Engels, devemos nos deter agora na obra de Thompson. A Formação da Classe Operária na Inglaterra foi primeiro publicada no ano de 1963 e surge como polêmica contra a historiografia derivada do “marxismo estruturalista althusseriano” que se apresentava como moda intelectual entre os acadêmicos marxistas. Dessa maneira, somos inicialmente apresentados ao texto numa declaração aparentemente óbvia, mas com peso decisivo para o cenário intelectual no qual a obra está circunscrita: Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. [...] algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas. (THOMPSON, 2020a, p. 9) Afirmando, portanto, o caráter histórico da realidade histórica e, consequentemente, das relações sociais, Thompson necessita prescrever como compreende as determinações materiais frente ao ideário na constituição do sujeito e, sobretudo, da classe. Esta posição, balizará toda a obra sobre a qual nos debruçamos e torna-se um pressuposto teórico imprescindível. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram - ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe. Podemos ver uma lógica nas reações de grupos profissionais semelhantes que vivem experiências parecidas, mas não podemos predicar nenhuma lei. A consciência de classe surge da mesma forma em tempos e lugares diferentes, mas nunca exatamente da mesma forma. (THOMPSON, 2020a, p. 9) Havendo, assim, formulado os parâmetros mínimos de sua análise, o autor pode, então, demarcar o problema que se propõe responder com o trabalho: Evidentemente, a questão é como o indivíduo veio a ocupar esse "papel social" e como a organização social específica (com seus direitos de propriedade e estrutura de autoridade) aí chegou. Essas são questões históricas. Se detemos a história num determinado ponto, não há classes, mas simplesmente uma multidão de indivíduos com um amontoado de experiências. Mas se examinarmos esses homens durante um período adequado de mudanças sociais, observaremos padrões em suas relações, suas ideias e instituições. A classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, essa é sua única definição. (THOMPSON, 2020a, p. 12) Estabelecido o conjunto metodológico que haveria de nortear sua obra, Thompson parte para a definição do marco inicial do estudo, mas sobretudo por meio de um questionamento ao cânone teórico. Optando por uma abordagem mais ligada às formas sociais de organização política e social da classe trabalhadora, não inicia sua escrita pela Revolução Industrial. Questiona: É muito frequente, visto que toda narrativa tem de começar de algum ponto, que vejamos apenas as coisas novas. Começamos em 1789, e o jacobinismo inglês aparece como subproduto da Revolução Francesa. Ou começamos em 1819, com Peterloo, e o radicalismo inglês aparece como geração espontânea da Revolução Industrial. (THOMPSON, 2020a, p. 27) Assim, toma de partida para sua análise não a ação dos indivíduos durante o próprio século XIX, mas ainda durante o século XVIII, por meio da organização pequeno-burguesa com adesão de elementos das classes trabalhadoras (THOMPSON, 2020a, p. 24) e da religião (THOMPSON, 2020a, p. 40). Utiliza-se destes parâmetros para demonstrar já existir neste momento uma oposição de classe conformada pela cultura, de tal modo que – mesmo não havendo plenamente se desenvolvido tanto burguesia quanto proletariado, devido à ausência da introdução do maquinário na produção – se conformavam organizações políticas e uma teologia, “do povo” em oposição às suas contrapartes para as elites. Desse modo, depreende também que este movimento da classe – que ainda se encontra em germe – em ambos os aspectos resulta em um saldo organizativo fundamental para o surgimento do movimento operário: [...] o metodismo proporcionou não só as formas de reunião, coleta regular de subscrições em dinheiro e "cédulas", tantas vezes adotadas por organizações sindicais e radicais, como também uma experiência de organização centralizada eficiente - a nível tanto distrital como nacional - que faltara à Dissidência. (THOMPSON, 2020a, p. 53) A crítica ao caráter diretamente causal estabelecido pela literatura, ilustrada por Thompson por meio de Engels (in THOMPSON, 2020b, p. 12) expressa-se como uma generalização à qual busca se contrapor o autor. Isto porque, como já demonstramos, para Thompson “Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe.” (THOMPSON, 2020a, p. 9). Elucida-nos portanto que “Independentemente das diferenças entre seus julgamentos de valor, observadores conservadores, radicais e socialistas sugeriram a mesma equação: energia do vapor e indústria algodoeira = nova classe operária.” (THOMPSON, 2020b, p. 12) Se por um lado, o autor não defende a correspondência direta entre Revolução Industrial e formação da classe operária, por outro, apresenta-se um interessante movimento histórico seja de conformação da classe seja também de formação deste constructo abstrativo de compreensão causal. Portanto, ao apresentar a forma de desencadeamento dos processos de radicalização dos operários e formação do “movimento trabalhista”, Thompson desvela como a literatura abandona a Revolução Industrial como ponto de partida para tomá-la como meio. Quase todo acontecimento radical na década de 1790 se reproduziu com força dez vezes maior após 1815. Um punhado de folhetos jacobinos deu origem a uma série de periódicos ultrarradicais e owenistas. [...] Enquanto as Sociedades de Correspondência mantiveram uma existência precária numa série de cidades, os clubes Hampden do pós-guerra ou as uniões políticas criaram raízes mesmo em pequenas vilas Industriais. Quando se recorda toda a agitação popular no decorrer da dramática evolução da indústria algodoeira, é natural assumir uma relação casual direta. A tecelagem é vista tanto como agente de uma Revolução industrial quanto também social, produzindo não apenas maior quantidade de mercadorias, mas o próprio "Movimento Trabalhista". A Revolução industrial, que começou como uma descrição, é agora invocada como uma explicação. (THOMPSON, 2020b, p. 13) A cognição destas questões, no entanto, não implica uma recusa instantânea de formulações e compreensões já apontadas pela massa bibliográfica do tema. Se por um lado recusa parte fundamental para chegar a esta, temos que, alguns pontos centrais são mantidos, principalmente no que tange à política, como demonstra o autor na sua análise do sentido do movimento operário na interseção dos setores da classe com o processo de radicalização das lutas. Assim, nos aponta: A história do período 1815-1840 corresponde, em parte, à narrativa da confluência das duas primeiras comunidades numa agitação política em comum (o radicalismo, a Reforma de 1832, o owenismo, a Campanha pelas dez horas e o cartismo), enquanto o último estágio do cartismo pode ser visto como a história da difícil convivência entre elas e da sua dissociação final (THOMPSON, 2020b, p. 211) De modo análogo, o faz no concernente aos aspectos sociais degradados pela produção. A organização social familiar merece sua atenção nesse aspecto: Em muitas Fábricas, os filhos dos fiandeiros ou dos outros empregados tinham prioridade para contratação. Quando não havia esta restrição, o tecelão via-se diante de uma nova humilhação: a dependência em relação à esposa ou aos filhos, que representava uma inversão dos papéis tradicionais. (THOMPSON. 2020b, p. 213) No entanto, se compreende como os demais autores as limitações às quais estava submetida a classe durante seu processo de formação, o autor aprofunda no caráter político da classe. Por meio do estudo da condição de escolaridade com relação à capacidade de desenvolvimento político-organizativo é possível compreender o impacto da disseminação de informação radical por meio da oralidade para o desenvolvimento da consciência de classe que se fundou na mesma. Assim: De forma nenhuma o analfabetismo (devemos lembrar) excluía os indivíduos do discurso político. [...] O trabalhador analfabeto podia andar quilômetros para ouvir um orador radical, da mesma forma como ele (ou um outro) andaria para escutar um sermão. Em períodos de fermentação política, os analfabetos pediriam aos companheiros de trabalho que lessem os periódicos em voz alta; lia-se o jornal nas pensões dos artífices, e nas reuniões políticas gastava-se um tempo imenso com a leitura de discursos e a aprovação de longas séries de resoluções. (THOMPSON, 2012, p. 415) Na consolidação da consciência de classe, torna a pesar o trabalho infantil por via do lento avanço da alfabetização (THOMPSON, 2012, p. 416), mas não somente este demarcador é necessário para compreender a própria consciência que emanou da classe. Como o autor nos apresenta, mesmo entre os letrados pouco escreviam, mas podemos inferir que principalmente uma minoria ligada à imprensa radical (THOMPSON, 2012, p. 421-422). A leitura coletiva então como meio da consolidação desta consciência foi fundamental para os embates que foram sustentados por anos a fio, não só no século XIX, mas adiante, na história da inglaterra. Dessa forma, tal como visava inicialmente compreender esta particularidade histórica da formação operária inglesa, Thompson conclui, ressaltando, ironicamente, o ponto de partida que compreende para a classe – a herança do jacobinismo – e a especificidade da própria obra. Então: A classe também adquiriu uma ressonância singular na vida inglesa: tudo, das suas escolas às suas lojas, das suas capelas aos seus divertimentos, converteu-se num campo de batalha de classe. Essas marcas subsistem, mas nem sempre são entendidas por quem vem de fora. Se em nossa vida social pouco temos de égalité, a consciência de classe do trabalhador pouco tem de submissão. (THOMPSON, 2012, p. 600) 2.3 Preâmbulos e complementos de uma mesma realidade Ao efetivarmos a análise destas duas obras da tradição marxista, podemos inicialmente afirmar a mesma enquanto similitude que nos possibilita a análise. Tanto para Engels quanto para Thompson, como fica evidente ao longo dos escritos, a classe não é senão uma compreensão histórica, tendo em vista que é de modo histórico que se conforma, não sendo, portanto, um conceito apriorístico. Devemos, porém, iniciar nosso diagnóstico sobre o tempo presente por meio da afirmação da incapacidade que temos no presente trabalho de levar a cabo uma pormenorização ponto a ponto das obras. Esta limitação se dá principalmente pelo recorte adotado neste estudo, o qual, frente à grandiosidade das obras, torna-se ínfimo e nos impulsiona a realizar esta análise de modo mais geral para captarmos, assim, as congruências e divergências capazes de nos elucidar sobre o problema da temporalidade. Desta forma, devemos nos deter, para início desta análise comparativa, nas balizas temporais que demarcam cada obra. Podemos avaliar, com isso, que Engels, por não ter ciência do desfecho da situação histórica da classe trabalhadora tal qual analisou, senão a situação mesma que presenciou, também prescinde de uma análise de maior duração. Assim, determina-se o início do espaço de experiência em relativa proximidade ao seu objeto principal de estudo. Esse fenômeno de encurtamento do espaço de experiência não é, no entanto, determinado exclusivamente pela existência de testemunhas, porque, embora haja a memória viva e sujeitos históricos contemporâneos à análise (sendo o próprio engels contemporâneo), o processo pode ser contemporaneamente compreendido como mais alargado, mas ainda assim, não dispõe da mesma elasticidade do que caso seu distanciamento não fosse apenas epistemológico. Thompson por outro lado, devido ao distanciamento temporal em relação ao objeto, está livre das amarras que impedem o conhecimento do início e do desfecho dos processos. Isto não significa afirmar, de modo algum, que a possibilidade de conhecimento desses marcos é diretamente proporcional em identificá-los corretamente. É necessário compreender que se há maior capacidade de ampliação da duração do tempo histórico como delimitação do estudo, há também um caráter fragmentário nas fontes que jamais poderá ser complementado pelo relato, testemunho ou observação e que, portanto, limita por outras vias a capacidade de apreender o processo em questão. Evidencia-se a capacidade das obras de tratarem cientificamente maior ou menor quantidade de dados e informações em determinada duração temporal ainda no primeiro contato com os textos. Isto implica afirmar que o tamanho das obras é distinto e esta distinção é diretamente causada pela capacidade de destrinchar o objeto de estudo em maior duração. Portanto, não nos estranha observar as pouco menos de 400 páginas que formam A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (ENGELS, 2010) em comparação aos três tomos de cerca de mesmo tamanho médio que compõe A Formação da Classe Operária Inglesa (THOMPSON, 2020a; 2020b; 2012), sem que esta discrepância represente uma perda de qualidade de qualquer dos trabalhos. De tal maneira, podemos compreender os tipos de fontes utilizadas pelos autores como forma de medir a capacidade historiográfica de comprovação da veracidade das afirmações. Notamos em Engels a já mencionada fonte ocular (seu próprio testemunho), bem como o relato, mas o autor utiliza-se, em maior escala, de relatórios oficiais (como os da vigilância sanitária, da câmara dos comuns e alguns processos em varas distintas), livros, principalmente ligados à burguesia liberal, e jornais – de diversas inclinações políticas, mas com destaque para o jornal cartista The Northern Star. Em geral, no que tange à tipologia das fontes, Thompson lançará mão, em sua obra, das mesmas fontes excetuando-se o testemunho e o relato (restritos pela distância temporal) – bem como da literatura, mas terá acesso a um tipo de fonte que no tempo de Engels estava restrita ao âmbito privado dos sujeitos históricos e que, portanto, seria de acesso improvável: as correspondências. Se o autor de A Formação da Classe Operária Inglesa não pode colher os relatos dos trabalhadores que estuda, pode ter acesso a reflexões e diálogos a que Engels não teve acesso, possibilitando uma dimensão própria ao seu estudo. Mas excetuando-se esta distinção, que é marca própria da relação do historiador com o tempo, em geral podemos ver os mesmos autores, os mesmos livros, mesmos jornais e mesmos documentos oficiais serem utilizados como fonte pelos autores. Devemos mais uma vez levantar, aqui, a questão do tamanho das obras; ao tomar maior espaço para efetivação da operação historiográfica, Thompson não está restrito às mesmas fontes de Engels, posto que, principalmente para períodos iniciais, possui um estudo mais robusto, utilizando assim maior número de fontes. Frente a esta sobreposição dos aspectos das obras, nos resta concluir possuírem ambas a mesma capacidade de apreensão científica da realidade. Embora Engels não seja um historiador no sentido estrito do termo, ou seja, havendo escrito fora da academia e principalmente antes da consolidação da disciplina por meio da especialização das ciências no último quarto do século XIX, predispõe-se a analisar num paradigma de totalidade que antecipa o que viria a se afirmar como caráter da história do tempo presente, seja este a interdisciplinaridade (DOSSE, 2012, p. 14-15). Em muitos pontos as conclusões dos autores são exatamente as mesmas, ainda que tracem processos abstrativos distintos para depurar as fontes. Um bom exemplo nesse sentido é o da decomposição da unidade social tradicional da família pela inserção da mulher no mundo do trabalho. Isto ocorre devido ao compromisso epistemológico de distanciar-se do objeto o suficiente para poder vê-lo, mas sem perder de vista o compromisso com a verdade dos fatos – ainda que haja interesse na escolha do objeto. Da mesma maneira, podemos ver clara influência de Engels em Thompson não apenas como objeto a ser criticado, mas como fundador de uma tradição que, para o autor, não está ultrapassada, por vezes, inclusive, recorrendo de forma detida a caminhos particulares traçados por Engels em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Assim, parece que Thompson nos confirma a obra de Engels como uma obra historiográfica ao passo que Engels nos confirma a cientificidade e validade da HTP. Esta portanto, possui seu caráter provisório, que pode ser notado nas notas de rodapé provenientes de edições posteriores à original, nas quais Engels demonstra a efetivação histórica ou não de diversas tendências e previsões apontadas. A História muda com o tempo e, portanto, cabe retornar a cada objeto estudado mais vezes, para somarmos os aportes analíticos e teóricos e apreendermos a totalidade do objeto. Compreendemos que a HTP, dessa maneira, é, simultaneamente, uma ferramenta de seus contemporâneos para compreender o próprio tempo e, tão importante quanto, um rastro para que seus herdeiros possam lidar com menores lacunas na compreensão de seu passado. BIBLIOGRAFIA BLOCH, Marc. Apologia da história: ou o ofício do historiador.1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 160 p. DELACROIX, C. A história do tempo presente, uma história (realmente) como as outras?. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 39 - 79, 2018a. Disponível em: . Acesso em: 13 ago 2021. DELACROIX, C. L’histoire du temps présent, une histoire (vraiment) comme les autres ?. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 05 - 38, 2018b. DOI: 10.5965/2175180310232018005. Disponível em: . Acesso em: 13 ago 2021. DELGADO, Lucila de Almeida Neves; FERREIRA, Marieta de Moraes. História do Tempo Presente e Ensino de História. Revista História Hoje, v. 2, n. 4, p. 19-34, 2013. Disponível em: . Acesso em: 11 ago 2021. DOSSE, F. História do Tempo Presente e Historiografia. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 4, n. 1, p. 05 - 22, 2012. ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A Ideologia Alemã: Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2007. 616 p. ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2010. 388 p. FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente: desafios. 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RANKE, Leopold von. O Conceito de História Universal. In: MARTINS, Estevão de Rezende. História Pensada: teoria e método na historiografia europeia do século XIX. São Paulo: Contexto, 2010, p. 187-215. THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa: 1: a árvore da liberdade. 11 ed. Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra, 2020a. 256 p. ________________. A formação da classe operária inglesa: 2: a maldição de Adão. 5 ed. Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra, 2020b. 450 p. ________________. A formação da classe operária inglesa: 3: a maldição de Adão. 2 ed. Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra, 2012. 618 p.
- A natureza do direito como mediação estatal
por Pedro Rocha Badô Este é um pequeno excerto extraído do Capítulo 4 do trabalho de pesquisa A administração política dos rendimentos do trabalho por meio do direito: uma análise imanente da intencionalidade de rebaixamento dos salários nos instrumentos legais entre 2017 e 2020 no Brasil. A publicação do presente texto não visa mais que divulgar algumas reflexões acerca de certos aspectos do direito e que só podem tomar mais profundidade com a leitura das obras que usamos como fundamento para nossa pesquisa. A estrutura estatal, a sua burocracia concretamente constituída, se refere “à maquinaria do Estado”, “à divisão do trabalho, à ossatura do próprio Estado na unidade entre administração, direito e força (militar, policial)” (PAÇO CUNHA, 2017, p.15-6). O direito, em larga medida, atua como instrumento nas atividades estatais, inclusive no que se refere à gestão da força de trabalho. Não só por meio de leis editadas pelos legisladores, mas também diretamente nas contendas, entre capital e trabalho, individualmente apreciadas pelo judiciário. Desse modo, Marx (1982, p.25) apreende muito bem o fato de que as “relações jurídicas, tais como formas de Estado”, não podem ser compreendidas a partir de si mesmas, nem a partir do chamado “desenvolvimento geral do espírito humano”. Assim, a “totalidade das relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade”, nas quais o direito tem suas raízes; isto é, “a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência”. Nesse sentido – repelindo a vulgata de um suposto determinismo no pensamento marxiano [1] –, quando Marx (2004, p.84) afirma que “o direito nada mais é que o reconhecimento oficial do fato”, Lukács (2013, p.238) observa que tal afirmativa demarca “com exatidão a condição de prioridade ontológica do econômico” demonstrando que realmente o “direito constitui uma forma específica do espelhamento, da reprodução consciente daquilo que sucede de facto na vida econômica”, ao mesmo tempo em que a expressão “reconhecimento” “diferencia ainda mais a peculiaridade específica dessa reprodução, ao trazer para o primeiro plano seu caráter não puramente teórico, não puramente contemplativo, mas precipuamente prático”; afinal o “reconhecimento só pode adquirir um sentido real e razoável dentro de um contexto prático”. Nesse mesmo sentido, o adjetivo “oficial” demarca ainda mais o traço do direito, pois aponta justamente para o Estado como sujeito, cujo o poder determinado em seu conteúdo pela estrutura de classe consiste aqui essencialmente no fato de possuir o monopólio sobre a questão referente a como devem ser julgados os diferentes resultados da práxis humana, se devem ser permitidos ou proibidos, se devem ser punidos etc., chegando inclusive a determinar que fato da vida social deve ser visto como relevante do ponto de vista do direito e de que maneira isso deve acontecer (LUKÁCS, 2013, p.238). A gradativa aparição de “um sistema judicial conscientemente posto” no interior de algumas sociedades humanas do passado se deu pelo processo histórico iniciado na constituição das classes sociais, do comércio e de várias outras “controvérsias” que necessitavam ser “socialmente reguladas” (LUKÁCS, 2013, p.231). Constituído no seio da sociedade de classes, o direito torna-se intimamente ligado ao Estado, ligação da qual “surge um sistema tendencialmente coeso de enunciados, de determinações factuais” cuja a função é “submeter o relacionamento social dos homens a regras nos termos do Estado” detentor do monopólio oficial da violência física (LUKÁCS, 2013, p.238). Assim originado, o direito só poderia ser um direito de classe, “um sistema ordenador” correspondente “aos interesses e ao poder da classe dominante” (LUKÁCS, 2013, p.233), de maneira que o fenômeno jurídico não apenas tutela, mas também declara como imanente os elementos históricos da sociedade de classes, mais especificamente da sociedade civil-burguesa, tal como a propriedade privada, a divisão social do trabalho, a família ou o contrato. Porém, como na prática social concreta dificilmente ocorre a simples e explícita imposição de interesses em forma de lei, o direito, a sua atuação, prescinde de condições forjadas por uma diversidade de interações entre elementos sociais. Não sendo mero açoite na mão da classe dominante, o complexo social jurídico está inserido na “reprodução do complexo social total a qual envolve tanto a mediação das classes sociais quanto a linguagem, a divisão social do trabalho e o próprio cotidiano” (SARTORI, 2010, p.79). Dessa forma, o inerente conteúdo de classe do direito só é plenamente compreendido na medida em que não só se capta o movimento dessa reprodução do complexo social total, mas também “de suas complexas mediações”. Portanto, tal como na estrutura geral do Estado, para a classe dominante poder dominar em condições otimizadas, ela precisa levar em conta as respectivas circunstâncias externas e internas e, na instituição da lei, firmar os mais diferentes tipos de compromissos. [...] o interesse de classe nas classes singulares é, na perspectiva histórica, relativamente unitário, mas em suas realizações imediatas ele muitas vezes apresenta possibilidades divergentes e, mais ainda, avaliações divergentes por parte das pessoas singulares envolvidas, razão pela qual, em muitos casos, a reação à legislação e à jurisdição não tem de ser unitária nem dentro da mesma classe. Isso se refere [...] não só às medidas que uma classe dominante adota contra os oprimidos, mas também à própria classe dominante [...]. Abstraindo totalmente das diferenças entre os interesses imediatos do momento e os interesses em uma perspectiva mais ampla, o interesse total de uma classe não consiste simplesmente na sumarização dos interesses singulares dos seus membros, dos estrados e grupos abrangidos por ela. A imposição inescrupulosa dos interesses globais da classe dominante pode muito bem entrar em contradição com muitos interesses de integrantes da mesma classe. (LUKÁCS, 2013, p.233). Especializado em atuar sobre esse complexo de problemas, o direito ganhou “figura própria na divisão social do trabalho, na forma de um estrato particular de juristas” (LUKÁCS, 2013, p.230). Sua relevância é tal que necessita “a sociedade renovar constantemente a produção dos ‘especialistas’ (de juízes e advogados até policiais e carrascos)”. Vemos então que na condição de “superestrutura jurídica”, o direito positivo atua materialmente com sua própria estrutura e seu particular método que consiste em manipular um turbilhão de contradições de tal maneira que disso surja não só um sistema unitário, mas um sistema capaz de regular na prática o acontecer social contraditório, tendendo para a sua otimização, capaz de mover-se elasticamente entre os polos antinômicos – por exemplo, entre a pura força e a persuasão que chega às raias da moralidade –, visando implementar, no curso das constantes variações do equilíbrio dentro de uma dominação de classe que se modifica de modo lento ou mais acelerado, as decisões em cada caso mais favoráveis para essa sociedade, que exerçam as influências mais favoráveis sobre a práxis social (LUKÁCS, 2013, p.247). Sendo socialmente efetivo “na medida em que fornece os parâmetros de certas formas de práxis social cotidianas”, o direito “atua enquanto ideologia” – o que ocorre de fato “somente na sociedade civil-burguesa” – (SARTORI, 2010, p.78). De maneira que a ideologia é “a forma de elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis social humana consciente e capaz de agir” (LUKÁCS, 2013, p.465), o direito tornou-se elemento que prepara idealmente – dentro dos limites da lógica particular da sociedade do capital – e mobiliza os homens para que atuem sobre as relações materiais, dirimindo os variados tipos de problemas que a eles se apresentam no plano societal. Devido ao seu poder enquanto ideologia é que o direito necessita das “estruturas materiais como os especialistas e o Estado”, de maneira a possuir uma “autonomia relativa” (SARTORI, 2010, p.100). Em suma, está-se diante de uma forma ideológica que, sendo constituída por um longo e contraditório processo histórico, toma sua forma mais acabada na sociedade civil-burguesa quando, no alvorecer desta, é alçada à condição de concepção jurídica do mundo (ENGELS; KAUTSKY, 2013, p.18), servindo como arma de batalha contra a antiga sociedade feudal. Assim se firma verdadeiramente como um complexo social. Sob a ordem capitalista, a ideologia jurídica passa a deter força material capaz de mobilizar massas de indivíduos não mais para subverter a ordem social, mas agora atua para conservá-la através de uma estrutura própria dentro do Estado, contribuindo para a reprodução social até mesmo nas minúcias do cotidiano. NOTA Cf. Paulo Netto, José, 2011, p.11-6. REFERÊNCIAS ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. Tradução de Márcio Bilharinho Naves. São Paulo: Boitempo, 2012. LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social, 2. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet, Ronaldo Vielmi Fortes. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2013. MARX, Karl. Miséria da filosofia. Tradução de José Carlos Orsi Morel. São Paulo: Ícone, 2004. __________. Para a crítica da economia política; Salário, preço e lucro; O rendimento e suas fontes: a economia vulgar. Tradução de Edgard Malagoli, Leandro Konder, José Arthur Giannotti, Walter Rehfeld. São Paulo: Abril Cultural, 1982. PAÇO CUNHA, Elcemir. Karl Marx: elementos da determinação da burocracia de Estado. In: _________ (Org.). Marxismo e Burocracia de Estado. Campinas: Papel Social, 2017. PAULO NETTO, José. Introdução ao estudo do método de Marx. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011. SARTORI, Vitor Bartoletti. Lukács e a crítica ontológica ao direito. São Paulo: Cortez, 2010.
- A Nova Gazeta Renana: As revoluções de 1848 e a perda das ilusões políticas
por Henrique Leão Coelho Este texto já foi publicado anteriormente na Revista Aurora, v. 14 n. 2 (2021) . INTRODUÇÃO Segundo a pena de J. Chasin (2009), as investiduras marxianas dos anos de 1843/44, em destaque, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução, Sobre a Questão Judaica, Glosas Marginais ao artigo O rei da Prússia e a reforma social e Manuscritos econômico-filosóficos conjuraram uma tripla crítica ontológica. Nessa pletora, a crítica à politicidade, um de seus veios, surge de maneira reluzente, dado o politicismo ainda candente na designada esquerda, demonstrando o que ainda parece ser novidade, isto é, 1) que a politicidade não é inerente a todas as formas de ser sociais e 2) que a política é força social usurpada que deve ser derrogada – não imediatamente - no ínterim da revolução social, posta a reabsorção dessa força pelos produtores livremente associados emergidos na reconfiguração econômica radical para além da relação-capital e do complexo do estado. Nesse sentido, em lineamentos mais gerais, a política é concebida primigenamente por Marx como práxis que pressupõe a existência das classes, sendo, portanto, administração política dos conflitos dos proprietários privados. Mesmo tendo por mote a especificidade e maturação do estado moderno, da conquista do direito político, da consolidação da comunidade do cidadão e da possibilidade da conquista de direitos sociais, não se teria para Marx mais do que uma emancipação oblíqua, visto que o estado moderno, mesmo em sua feição mais acabada, permanece como vida genérica abstrata acossada pela efetividade adstringente da vida burguesa, vida genérica concreta, em suas várias particularidades, pressuposta pelo estado que expressa suas várias contradições e antagonismos. Nesse texto, demonstraremos que a tese da ontonegatividade da politicidade permanece na obra marxiana, sendo comprovada em textos de Marx de maior particularização, de maior concreção, quais sejam, aqueles da Nova Gazeta Renana, onde o autor, em insigne intensificação ontológica, escava as objetividades francesa e alemã, principalmente, clarificando os limites da consignação política republicana. Neste caso, vamos demonstrar como a revolução de fevereiro e o massacre da revolução de junho de 1848 na França escancarou os limites abstrativantes da libertação política burguesa, evidenciando essa conquista tática relativa como arregimentação concomitante de um cativeiro contra as exigências mais autênticas e emancipatórias dos trabalhadores. Nesse sentido, uma revolução cativa da “alma política” só pode vir à luz “à custa da sociedade”. a alma política de uma revolução consiste na tendência das classes sem influência política de eliminar seu isolamento em relação ao sistema estatal e ao governo. Sua perspectiva é a do Estado, a de um todo abstrato, que somente ganha existência pelo isolamento em relação à vida real, que é impensável sem a contraposição organizada entre ideia universal e existência individual do ser humano. Consequentemente uma revolução de alma política também organiza, em conformidade com a natureza restrita e contraditória dessa alma, um círculo dominante na sociedade, à custa da sociedade (MARX, 2010, p. 51). MARX E A NOVA GAZETA RENANA Marx retornou à Paris em março de 1848 depois de rescindida sua determinação de expulsão. Tendo em exercício o Governo Provisório francês, Marx foi convidado ao retorno, por onde começou a dar conta da revolução de fevereiro in loco. Sua posição primeira expressava a incipiência da revolução de fevereiro e a abertura de uma possibilidade mais generosa e estratégica, qual seja, o enfrentamento direto e descarado entre burguesia e proletariado. Dessa forma, o filósofo renano emitiu comandos para que os trabalhadores alemães (junto aos poloneses) não executassem tarefa adicional (já em planejamento), isto é, um evento revolucionário espelhado ao francês em território alemão (STEDMAN, 2018). Marx reiterava a junção das forças na França para um embate mais decisivo e radical, sendo, entretanto, frustrado pelos ocorridos em Viena e Berlim em março (STEDMAN, 2018). As primeiras “vitórias” emendaram conquistas imediatas, desde a derrubada de governos às inflexões reformistas de caráter liberal. Marx, decorridos os eventos na Alemanha, se deslocará para colônia por treze meses, de abril de 1848 a maio de 1849, data onde outra ordem de expulsão cairá sobre o filósofo alemão. Já em Frankfurt, o autor de O Capital perdurou mais alguns dias, isto é, até junho, donde seguiu de retorno à cidade de Paris. Sua chegada a Paris data de 3 de junho de 1849, ficando na cidade até 24 de agosto, devido a outra renitente ordem de expulsão, que levará o autor para Londres (STEDMAN, 2018). Há de se destacar, que nesse entremeio, a Liga dos Comunistas foi dissolvida e ressurgida (STEDMAN, 2018). Dissolvida por Marx em junho de 1848 em decorrência de se fazer desnecessária, segundo o curso dos acontecimentos, uma liga secreta, mas renascida em fins do processo revolucionário, atrelada à sua perenidade em território inglês. A Nova Gazeta Renana, erigida em território alemão, teve seu primeiro exemplar em primeiro de junho de 1848, em Colônia. Com a retirada para Londres, Marx tentou preservar o jornal e sua ação política. Tratava-se, em todo caso, de manter ativo o “partido” respaldado por Marx e outros autores, isto é, uma posição diante das lutas sociais concretas, dos desdobramentos revolucionários e contrarrevolucionários, das possibilidades e necessidades efetivadas pelas lutas operárias. O jornal se reefetivou em território inglês, entre maio e novembro de 1850, aos duros trancos financeiros de sua manutenção. Posteriormente, Engels publicou As lutas de classe na França, contendo textos da revista Nova Gazeta Renana de 1850, ou seja, datados da estadia final de Karl Marx, a inglesa. Desde o seu lançamento em 1o de junho, o Neue Rheinische Zeitung estava decidido a fazer a situação política ultrapassar a fase constitucional liberal da Revolução o mais rápido possível. Isso era feito em primeiro lugar ridicularizando as atividades da Assembleia prussiana e do Parlamento de Frankfurt, e em segundo lugar ressaltando, quase diariamente, a suposta ameaça de contrarrevolução. A Assembleia de Frankfurt foi atacada no primeiro número do jornal por não ter declarado a soberania do povo alemão. De acordo com Engels, deveria também ter rascunhado uma Constituição “e a eliminação, por parte do regime existente na Alemanha, de tudo que contradissesse o princípio da soberania do povo” Só o Neue Rheinische Zeitung — apesar de se dizer “Órgão da Democracia” — estava preparado para comemorar a insurreição como um triunfo dos trabalhadores. Em seu ensaio “A Revolução de Junho”, de 28 de junho, Karl afirmou que “os trabalhadores de Paris” tinham sido “esmagados” por uma força superior, “mas não foram subjugados”. Esse “triunfo da força bruta” tinha sido “comprado” com “a destruição de todas as ilusões e desilusões da Revolução de Fevereiro”. A “fraternidade” proclamada em fevereiro tinha encontrado “sua expressão verdadeira, não adulterada e prosaica na guerra civil, e civil em seu aspecto mais terrível, a guerra do trabalho contra o capital”. A Revolução de Fevereiro tinha sido “a bela revolução, a revolução das simpatias universais”. A Revolução de Junho foi “a revolução feia” porque “as frases cederam lugar à realidade, porque a república tinha descoberto a cabeça do monstro [capital] derrubando a coroa que a protegia e escondia”. Essa foi a primeira “revolução” desde 1789 a atacar o “domínio de classe” e a “ordem burguesa” (...) Em maio, três números foram publicados, depois nada mais, até o último número duplo em novembro. As vendas eram fracas, e os colaboradores, poucos. Alguma ideia das frustrações em torno do projeto foi dada numa carta de Jenny para Weydemeyer em maio de 1850. Ela suplicava por dinheiro, qualquer dinheiro proveniente das vendas da Revue: “Estamos morrendo de necessidade dele”. Jenny repreendeu amigos em Colônia por não ajudarem em troca de todos os sacrifícios feitos por Karl pelo “Rh.Ztg.”. O projeto terminou com Karl disposto a processar o editor e continuar produzindo a Revue a partir de Colônia ou da Suíça. Mais uma vez, nada disso se concretizou. (STEDMAN, 2018, p. 285). Ademais, é preciso demonstrar a posição do Jornal e da Revista Nova Gazeta Renana tomando em conta o complexo econômico como momento preponderante no novelo das determinações recíprocas entre as várias esferas sociais, ganho teórico já traçado por Marx que o afastava de qualquer hipóstase da esfera política e seus conflitos: A demanda pela revista era baixa, entre outras razões devido ao tratamento beligerante dado aos democratas. Em grandes setores da Alemanha, democratas e comunistas eram raros, e eles não viam razão alguma para não continuarem colaborando entre si. Um exemplo particularmente mal escolhido foi o ataque sarcástico de Karl ao discurso de Gottfried Kinkel perante um tribunal militar em Rastatt. Kinkel era um herói democrata que tinha lutado em Baden sob as ordens de Willich, e seu julgamento foi seguido pelo público com grande simpatia. Mais positiva foi a atenção que a Revue dedicou ao desenvolvimento econômico global. O folheto escrito em 15 de dezembro de 1849 declarava que a Revue ofereceria “uma investigação abrangente e científica das condições econômicas que servem de alicerce para todo o movimento político”. No último número, foi apresentada uma justificativa para o afastamento da Revue da política revolucionária da Liga Comunista. Depois de examinar a tendência econômica ascendente, que vinha ocorrendo desde 1848, a revista declarava: Com esta prosperidade geral, na qual as forças produtivas da sociedade burguesa se desenvolvem de maneira tão exuberante quanto possível dentro das relações burguesas, não se pode falar em revolução real. Essa revolução só é possível nos períodos em que estes dois fatores, as forças produtivas modernas e as formas burguesas de produção, entram em choque umas com as outras. [...] Uma nova revolução só é possível em consequência de uma nova crise. Ela é, porém, tão certa quanto essa crise. (STEDMAN, 2018, p. 324). Segundo Cotrim (2007), os textos da Nova Gazeta Renana significam o conjunto principal da ação política marxiana na altura de revoluções tão decisivas. A importância não se limita só ao registro histórico, que fizesse de Marx um exímio documentarista, embora a riqueza histórica se preserve em sua obra. Trata-se também de perceber, em termos de concreção, uma apreensão decisiva sobre o momento político, sua natureza, seu limite, sua expressão particular nas lutas concretas, transcendendo o faro jornalístico e o nuance historiográfico em sentido estrito. Trata-se, também e articuladamente, de atualizar a problemática da divisão social do trabalho, da renovação e estabelecimento explícito de uma luta de classes, que se configura não só como ímpeto subjetivo de um grupo contra outro, mas como maturação de uma nova configuração social. Conforme Cotrim (2007), Marx se debruçou em três vezes seminais sobre as concreções dos movimentos políticos. Em todos eles, analisando a expressão da luta de classe na esfera política, alinhavando limites e aberturas deste terreno específico. Em 1844, averiguando o caso dos Tecelões da Silésia, nas Glosas de 44, o autor debruçou- se acerca da revolução política como mediação subsumida (ato político dissolutor) à revolução social. Esclareceu, em momento de alto vigor crítico, a tarefa negativa da práxis social política no processo revolucionário, alocando na revolução social a verdadeira recomposição do “mundo os homens”. Em 1871, em A guerra civil na França, o autor se dobrou ao evento mais importante do século, isto é, a comuna de Paris e a realização possível de uma transição socialista, logo desmantelada pelo ardil conservador-reacionário. O caso no qual estamos imantando nossa atenção agora, diz respeito às revoluções e contrarrevoluções que a partir de 1848 jorraram no território europeu (caráter expansivo, não nacional meramente). As insurreições de junho na França alargaram o caráter da revolução, fazendo valer a “ótica do trabalho” como inflexão. Isso remete ao importante traçado marxiano de 44, onde o autor referia que terminada a tarefa mediadora no terreno da politicidade, a alma social revolucionária poderia aparecer. Em suma, trata-se de ter como horizonte que a revolução social quando encampa, se despoja, necessariamente, de seu “invólucro político”. A revolução proletária contra a burguesia é uma revolução contra a “velha sociedade”, e não apenas o pulso reversor do poder político. Isto reforça que Marx escapa da ontopositividade da política, forcejamento teórico tradicional que remonta à política como traço inerente do ser social, portanto, insuperável (CHASIN, 2012). Trasladando o esoterismo da Liga para um jornal de debates abertos, Marx posicionou-se, como Engels o faria mais tarde, favorável à extinção da Liga dos Comunistas em favor de uma propaganda e deliberação massiva e popular do curso dos acontecimentos. Tratou de avaliar os instrumentos de classe em decorrência da processualidade social, dando o senso das proporções a cada prática de acordo com sua inserção na totalidade dos fatos. Nesse sentido, repara-se lineamento incisivo, qual seja, que os instrumentos devem adequar-se ao decurso das lutas da classe (COTRIM, 2007) e não o contrário. A proposta, à época de Colônia, era atingir a massa dos operários alemães, albergando um discurso de radicalidade democrática, esposado por cima de uma base científica já angariada, sem contemporizar com os engodos e equívocos objetivos e subjetivos do processo revolucionário (COTRIM, 2007). Edificar insumo ideativo que anatomize e escancare os vincos do processo revolucionário tendo o campo de possibilidades efetivas, o econômico, como âmbito basilar dos concatenamentos reais. A revolução de junho, na França, foi o centro de uma reviravolta. A “alma” desta revolução expressou o antagonismo entre burguesia e proletariado de forma aberta demonstrando o desvanecimento da ótica progressista da classe que personifica o capital (COTRIM, 2007). Precipitou (e revelou) o esgotamento da época heroica da sociabilidade burguesa, que entronava nova relação de dominação, metamorfose e metástase da divisão social do trabalho, renovação da injunção de classe como centro atordoante da vida social. O percurso societário, aquecido e renovado com a revolução 1789, aclarava seus limites emancipadores, tendo na emancipação política, o resultado máximo e abstrato de uma libertação oblíqua, relativa, mas assentada na sociedade civil burguesa, antro da regência da propriedade privada e do capital que solapa, dessa vez, qualquer laço romântico em seu exercício. A contradição aparece de maneira desanuviada: eis o mote francês de 1848 (COTRIM, 2007). Ou seja, a subsunção da empreitada de junho à violência sangrenta consignou não apenas uma derrota aparente, mas o fulcro da explicitação das posições de classe, sem refrações ou máscaras. Esse foi o grande ganho arrolado pela luta, que desde de sua imediaticidade poderia transparecer pura perda e irreparável derrota histórica (COTRIM, 2007). Dissipados, mistificações e engodos, Marx referiu-se ao fato de que a relevância histórica foi, mesmo, uma espécie de perda, isto é, a perda das ilusões quanto ao cenário histórico-social configurado. Se trata, em suma, de um processo que levou à desmistificação da política, à luta tendo como centro problemático a exploração do trabalho, evidenciando que a configuração social burguesa consolidada não extirpava a “escravidão” de classes. O monstro cuja cabeça a república desnudara, e que se constituía no efetivo inimigo da classe trabalhadora, era o capital e sua persona, a burguesia, na pessoa dos proprietários do capital diretamente contrapostos ao trabalho na sociedade civil, e na de seus representantes políticos, intelectuais e jornalísticos. A república evidenciou a cisão da nação francesa em duas: a do capital e a do trabalho, obrigando a que essa divisão se manifestasse em todos os âmbitos da sociedade. Assim, “o despotismo burguês, muito longe de ter sido vencido pela revolução de fevereiro foi consumado” com a queda da coroa, que o encobria “e o domínio do capital emergiu de modo puro”. (COTRIM, 2007, p. 45). Em seu traçado mais geral, consta revelar que o excerto sobredito sintetiza a parametração dos prismas revolucionários, quer dizer, a improbidade de uma revolução radical para o horizonte burguês, os limites da revolução (e emancipação) política como estágio máximo da fase heroica e ascendente da sociabilidade burguesa em sua entificação clássica, o que remete por sua vez à diferença específica da via prussiana de entificação do capitalismo da qual Marx também é sagaz analista nessa época conflituosa. De toda forma, a ótica do trabalho e da revolução social, ou mesmo, a emancipação humana, não ganham entificação a não ser pela destruição do último assentamento da pré-história humana, a forma avançada classista da relação entre trabalho alienado e propriedade privada, isto é, a relação-capital. O livro As Lutas de classe na França, aglutinado por Engels em 1895, agrupa 3 artigos escritos na Nova Gazeta Renana de 1850, com o título, à época, 1848 a 1849, assomados de um último texto publicado também no mesmo ano (1850) naRevue – Mai bis Oktober 1850, A revogação do sufrágio universal em 1850. Segundo Engels (2012), em prefácio ao livro, Marx encetou nestes textos uma análise do tempo histórico tendo por central o momento econômico, derrogando qualquer politicismo adstringente à reta concreção. Ademais, saiu de asseverações mais gerais como as do recente Manifesto Comunista. Quanto a isso, vemos claramente o procedimento de Marx, já que não se poderia, dado o feitio dessa conspecção marxiana, executar uma análise com tino de autonomia absoluta dos problemas políticos e ideológicos de uma época, e principalmente, sem adotar a república como máxima recionalidade e universalidade humanas. Em suma, filosófica e cientificamente, Marx apreende o movimento do concreto permeado pelos vincos ontológicos mais essenciais, caminhando analiticamente de um feitio mais abstrato ao mais concreto, isto é, das abstrações razoáveis à concreção das categorias concretamente existentes, à delimitação da peculiaridade das articulações de uma realidade efetiva escavada. Quando Marx empreendeu essa obra, a referida fonte de erros ainda era muito mais inevitável. Era pura e simplesmente impossível, durante o período revolucionário de 1848‐1849, acompanhar as transformações econômicas que se efetuavam simultaneamente ou até manter uma visão geral delas. O mesmo se deu durante os primeiros meses do exílio em Londres, no outono e inverno de 1849‐1850. Porém, foi justamente nesse período que Marx começou o trabalho. E, apesar dessas circunstâncias desfavoráveis, o conhecimento preciso que ele tinha tanto da situação econômica da França anterior à Revolução de Fevereiro quanto da história política desse país a partir desse evento permitiu‐lhe apresentar uma descrição dos acontecimentos que revela o seu nexo interior de modo até hoje não igualado e que, mais tarde, passou com brilhantismo na prova a que o próprio Marx a submeteu. (ENGELS, 2012, p. 11). Ainda, de acordo com o próprio Friedrich Engels, a luta de caráter verdadeiramente proletário ocorria apenas na Inglaterra e na França. Em outros termos, configuração manifesta que sinalizava para o grau baixo de maturação da objetividade da própria morfologia capitalista na extensão do continente europeu. Uma objetivação mais límpida, acabada e destacada das classes seria um revolvimento necessário para a desembocadura revolucionária no continente, aspecto que o autor alemão só percebeu quase quatro décadas depois. Isso levou o autor a confirmar que os acontecimentos da época jogaram a “massa para um lado e para o outro”, oscilando entre as visões universalistas promissoras e o desespero, a desorientação. Não obstante, o antagonismo entre a classe burguesa ascendente e a classe proletária nascente e caudatária dava mostras candentes de seu exercício multifacetado, material e ideologicamente, na sociedade burguesa em desdobramento. Engels (2012, p. 16), em suma, chega à constatação de que o ímpeto proletário em 1848 não poderia passar de um “ataque de surpresa”, isto é, uma investida bastante espontânea e sem o teor crítico-prático mais avançado possível, configuração que foi plataforma para um revés político subsequente. Uma burguesia dividida em duas seções dinástico‐monarquistas, mas que exigia antes de tudo tranquilidade e segurança para fazer seus negócios financeiros, contraposto a ela um proletariado vencido, mas ainda ameaçador, em torno do qual se agrupava um número cada vez maior de pequeno‐burgueses e camponeses – a constante ameaça de uma irrupção violenta, que em vista de tudo isso não oferecia nenhuma perspectiva de solução definitiva: essa era a situação que se apresentava como que por encomenda para o golpe de Estado do terceiro pretendente, do pretendente pseudodemocrático Luís Bonaparte. Valendo‐se do exército, ele pôs fim à tensa situação no dia 2 de dezembro de 1851 e assegurou à Europa a tranquilidade interna para agraciá‐la, em troca disso, com uma nova era de guerras. O período das revoluções vindas de baixo estava por ora concluído; seguiu‐se um período de revoluções vindas de cima. (ENGELS, 2012, p.16). OS LIAMES DA DECADÊNCIA IDEOLOGICA BURGUESA: A PERDA DAS ILUSÕES POLÍTICAS Marx (2012) inicia os textos travejando o paroxismo já sobredito. A grande vitória da revolução, sob a ótica dos trabalhadores, se cristalizou na configuração de uma perda, de uma divisão decisiva; trata-se da apreensão, pelo operariado francês nascente, do antagonismo entre a posição proletária e a posição burguesa que no decurso da luta se mostrou um bastião inamovível. O autor alemão acena de forma brilhante: o banqueiro Latiffe, nos idos da revolução de julho de 1830, ao ver as garantias do processo que se iniciou em 27 de julho e terminou em 29 do mesmo mês, exclamou que “de agora em diante reinarão os banqueiros”. A partir desse processo, fazendo jus à desembocadura histórica, Marx assevera acerca do domínio da aristocracia financeira, ao lado da burguesia do carvão e do ferro, das ferrovias, além de alguma gama de latifundiários. Nesse sentido, o autor alemão descreveu como “os cargos públicos”, como mediação especifica de um terreno extraeconômico, cedeu às vontades dessas frações burguesas, comandadas pela burguesia financeira, dando azo à uma disputa intracapitalistas. A burguesia industrial propriamente dita compunha uma parte da oposição oficial, isto é, ela só estava minoritariamente representada na Câmara. Sua oposição despontava de modo tanto mais resoluto quanto mais claramente se desenvolvia a tirania da aristocracia financeira e quanto mais ela própria imaginava assegurado seu domínio sobre a classe operária após as revoltas de 1832, 1834 e 1839, que foram afogadas em sangue. (...) A pequena burguesia em todos os seus matizes, assim como a classe camponesa, havia sido totalmente excluída do poder político. Por fim, na oposição oficial ou inteiramente fora do pays légal [círculo das pessoas com direito a voto], estavam os representantes ideológicos e porta‐vozes das classes mencionadas, seus literatos, advogados, médicos etc., em suma, suas assim chamadas capacidades. (MARX, 2012, p. 29). Para esclarecer de modo mais concreto a relação entre Estado e aristocracia financeira, Marx (2012) demonstrou já nos idos dessa primeira metade do século 19, como o déficit do Estado, seu endividamento crescente, aparecia como joia de ouro para os cofres dos banqueiros. A relação de parasitismo, extração crescente dos recursos do Estado, entronava a sucção, a draga renitente ocasionada pelo exercício setorial dessa burguesia não-produtiva, a aristocracia financeira. O que se vê, decerto, é que essa facção em sua peculiaridade existencial jamais performou papel heroico (sendo desdobramento das classes senhoriais feudais), dissolutor das artimanhas da dominação arcaica, ou mesmo, engendradora dos “sonhos universalistas”. Marx (2012) citará que esse regime benéfico à “burguesia financeira” trará sob seus auspícios um aumento vertiginoso dos gastos do Estado implicando inclusive em “propina, fraudes, e toda espécie de patifarias”, uma vez que também, a dinâmica simbiótico-parasitária levará a uma “relação entre administradores individuais e empresários individuais”. O endividamento do Estado era, muito antes, do interesse direto da facção burguesa que governava e legislava por meio das câmaras. Pois o déficit público constituía o objeto propriamente dito da sua especulação e a fonte de seu enriquecimento. No fim de cada ano, um novo déficit. Decorridos de quatro a cinco anos, um novo empréstimo. E cada novo empréstimo proporcionava à aristocracia financeira uma nova oportunidade de dar o calote no Estado artificialmente mantido no limiar da bancarrota – sendo obrigado a contrair a dívida com os banqueiros nas condições mais desfavoráveis para ele. Cada novo empréstimo tomado proporcionava uma segunda oportunidade de saquear o público que havia investido seus capitais em papéis do Estado, o que era feito mediante operações na bolsa, em cujos mistérios o governo e a maioria da câmara eram iniciados. De modo geral, o comportamento oscilante do crédito estatal e a posse dos segredos de Estado propiciavam aos banqueiros, assim como aos seus afiliados nas câmaras e no trono, a possibilidade de provocar oscilações extraordinárias e repentinas na cotação dos papéis do Estado, que necessariamente tinham como resultado a ruína de uma massa de capitalistas menores e o enriquecimento rápido e fabuloso dos grandes atores. (MARX, 2012, p. 30). Uma oposição intracapitalista, como supracitado, aparece de maneira rigorosamente central nesse debate. O autor de Trier revela o domínio suntuoso da “bancocracia” sob o exercício hegemônico dos estratos ideológicos, direcionando grandemente a eloquência e o sentido legislativo, dando escopo e ordenação ao aparato de imprensa, vincando grande parte da chamada “opinião pública” às tergiversações do interesse financeiro. Além das “oscilações extraordinárias e repentinas” para ruir capitalistas menores e fornecer ganhos fabulosos aos “grandes atores”. Ou seja, trata- se a rigor do descortino do poder de uma burguesia alheia à inflexão industrial e produtiva, alheia à produção da riqueza material, vampiresca dos meios de produção e de subsistência já produzidos, da malha e pletora de trabalhos humanos já objetivados, renegadora de qualquer intuito plásmico de enriquecimento genérico. Forma de ser que Marx descreverá como “crapulosa, devassa”, e mais, em elevado tom crítico, “renascimento do lumpemproletariado nas camadas mais altas da sociedade burguesa”. A monarquia de julho nada mais foi que uma companhia de ações destinada à exploração do tesouro nacional da França, cujos dividendos eram distribuídos entre os ministros, as câmaras, 240 mil eleitores e seus acólitos. Luís Filipe era o diretor dessa companhia – era Robert Macaire sentado no trono. Comércio, indústria, agricultura, navegação e os interesses dos burgueses industriais estavam forçosamente ameaçados e prejudicados sob esse sistema. “Governo em oferta”, “gouvernement à bon marché”, foi escrito nas bandeiras das jornadas de julho. (...) Enquanto a aristocracia financeira ditava as leis, conduzia a administração do Estado, dispunha sobre o conjunto dos poderes públicos organizados, controlava a opinião pública por meio dos fatos e por meio da imprensa, repetiu‐se em todas as esferas, da corte até o Café Borgnea, a mesma prostituição, a mesma fraude despudorada, a mesma ânsia de enriquecer não pela produção, mas pela escamoteação da riqueza alheia já existente, prorrompeu especialmente entre as lideranças da sociedade burguesa a validação irrefreável das cobiças doentias e dissolutas, que a cada instante colidiam com as próprias leis burguesas. Nessa situação, a riqueza resultante desse jogo, por sua própria natureza, busca sua satisfação, a fruição se torna crapuleuse [crapulosa, devassa], dinheiro, sujeira e sangue confluem. A aristocracia financeira, tanto no modo de obter seus ganhos quanto no modo de desfrutar deles, nada mais é que o renascimento do lumpemproletariado nas camadas mais altas da sociedade burguesa. (MARX, 2012, p. 31). Dois eventos socio-econômicos formaram o tino dilacerante e beligerante dos processos contínuos de insatisfação com o império da aristocracia financeira. Os acontecimentos demonstravam o abismo configurado pela situação estrutural e conjuntural. De um lado a seiva social, os recursos públicos sendo extraviados pelo comboio de “propinas, fraudes e todo tipo de patifarias” entre administradores do Estado e a aristocracia financeira, enquanto, de outro lado, a luta selvagem pela sobrevivência, pela nutrição mais básica, pela reprodução material em seu seio mais orgânico. Ainda, a devastação do comércio e da indústria contribuíram na exacerbação da crise econômica que atingiu grande parte do continente europeu, o que levou à falência de alguns bancos, como também ao recrudescimento da tirania de outros. Ainda, “A doença da batata inglesa e as quebras de safra de 1845 e 1846 aumentaram a intensidade da efervescência entre o povo”, pois “A carestia de 1847 provocou conflitos sangrentos, tanto na França quanto no resto do continente”. Nessa tessitura, “Em Buzançais, revoltosos famintos sendo executados, em Paris escrocs [escroques] empanturrados livrando‐se dos tribunais com o apoio da família real!”. Além do mais, “O segundo grande evento econômico que acelerou a irrupção da revolução foi uma crise geral do comércio e da indústria na Inglaterra” que “anunciada já no outono de 1845 pela derrota maciça dos especuladores nas ações ferroviárias, adiada durante o ano de 1846 por uma série de pontos incidentais, como a revogação iminente da taxação dos grãos, ela acabou estourando no outono de 1847” com “a bancarrota dos grandes comerciantes de mercadorias colonialistas de Londres, seguida de imediato pela falência dos bancos provinciais e pelo fechamento das fábricas nos distritos industriais ingleses.” (MARX, 2012, p. 32). Os processos econômicos, em tino de elo tônico na pletora das determinações recíprocas, conduziram aos protestos da burguesia oposicionista. Em prol desse processo, no terreno econômico, buscou-se derrubar o “ministério da bolsa”, isto é, desviar o timão de controle do estado da visada bancário-dominante, da dominação de uma seção da burguesia que submetia ao mesmo tempo não só a massa da população ao estado de fome, como também subordinava as outras frações burguesas ao óbices de linhagem econômica e política. Não bastasse o processo instado, a ruína dos pequenos comerciantes se efetivou depois que os grandes comerciantes e industriais foram forçados, pela falência, a construir aqueles estabelecimentos (établissements) que entraram em competição com os pequenos e decretaram sua extinção quase imediata (MARX, 2012). A revolução de fevereiro de 1848 na França organizou-se dessa argamassa brevemente levantada. A primazia da burguesia financeira fincada às crises continentais da indústria e do comércio, de fonte inglesa primordialmente, além do mais, no plano das consequências, a destruição subsequente da pequena burguesia, o desmoronamento da burguesia produtiva e a epidemia de fome de grande parte das massas camponesas e operárias. A revolução de fevereiro consagrou-se não só devido às pressões de uma “reforma política”, tensão já arrastada há anos em vista da disputa intracapitalista, mas também em meio à passividade da guarda nacional no confronto com o “povo” que, de modo menos planejado e articulado que o devido, instalou um governo provisório (MARX, 2012). Vimos, entretanto, pelas injunções iniciais que a objetivação do governo provisório conclamou classes distintas, pelo momento conjuntural, entretanto cedeu ao compasso de suas diferenças, de suas formas de ser antagônicas, de sua unidade no bojo de um antagonismo insuperável por mecanismos intrínsecos à morfologia capitalista. Do fraseologismo utópico ao consenso burguês produtivo, anteriormente insatisfeito, a estratificação do novo governo provisório, com minoria operária, erigiu um renovado enquisto à questão social mais atinente ao proletariado, qual seja, sua verdadeira emancipação da precariedade da fome, e de modo mais amplo, da interdição de sua humanização. O ímpeto revolucionário desse momento – de feitio político - trocava de mãos o timão do Estado, sobre a plataforma de revolvimentos econômicos apenas parciais, isto é, sem perfurar o espectro burguês. O governo provisório, erigido sobre as barricadas de fevereiro, necessariamente refletiu em sua composição os diversos partidos entre os quais se dividiu a vitória. Ele nada podia ser além de um compromisso entre as muitas classes que haviam se unido para derrubar o trono de julho [1830]; seus interesses, no entanto, contrapunham‐se hostilmente. A maioria desse governo era composta de representantes da burguesia. A pequena burguesia republicana era representada por Ledru‐Rollin e Flocon, a burguesia republicana, pelo pessoal do National, a oposição dinástica, por Crémieux, D upont de l’Eure etc. A classe operária tinha apenas dois representantes, Louis Blanc e Albert. Por fim, Lamartine não representava nenhum interesse real, nenhuma classe determinada no governo provisório; ele era a própria Revolução de Fevereiro, a sublevação conjunta com suas ilusões, sua poesia, seu conteúdo imaginário e sua fraseologia. De resto, o porta‐voz da Revolução de Fevereiro, tanto por seu posicionamento quanto por seus pontos de vista, fazia parte da burguesia. (MARX, 2012, p. 33). Marx (2012) se refere que antes de proclamada a república, os ministérios já haviam sido divididos entre burgueses, alguns banqueiros, generais e advogados. A inflexão proletária, não obstante, não almejava transpor o poder do novo conjunto burguês dominante, mas extrair da revolução de fevereiro, uma “alma política”, isto é, o exercício conjunto ou paralelo do mesmo poder político em consonância com os interesses candentes também ao ímpeto burguês revolucionário. Estimando o intuito de participar efetivamente da revolução de caráter burguês “foi com essa mensagem que Raspail se dirigiu ao Hôtel de Ville: em nome do proletariado parisiense, ele ordenou ao governo provisório que proclamasse a república”, uma vez que “se essa ordem do povo não se cumprisse dentro de no máximo duas horas, ele retornaria à frente de 200 mil homens” (MARX, 2012, p. 34). O filósofo renano não deixa de marcar que o veio central da revolução de fevereiro era de horizonte limitado, remontando ao ponto que nos interessa fulcralmente debulhar. A luta intracapitalistas pela dilapidação dos óbices ao seu exercício mais límpido e desimpedido, alvoreceu uma luta em conjunto com as outras classes, inclusive, aquela classe desprovida de qualquer coisa “a perder”, para usar a dicção marxiana. No entanto, no ínterim dos resultados de Fevereiro, os “grilhões” da classe operária não foram rompidos, uma vez que a revolução proclamadora da república estava ausente e depauperada de sua crítica-prática mais ascendente consonante com as demandas últimas do proletariado. A visada burguesa que instaurava uma república sobre as bases do sufrágio universal, apresentava aspectos revolucionário e universalista, o que conclamou os próprios trabalhadores ao mantra da “igualdade, liberdade e fraternidade”, isto é, conduziu a totalidade da luta ao falso significado de uma possível emancipação mais geral que as próprias necessidades objetivas, calcadas nos contornos e cerne da sociabilidade burguesa, impediriam. A conquista proletária, endossando aquilo já reiterado, abarcou, sobretudo, uma perda (MARX, 2012), que levou ao paroxismo, ao último ato da junção das lutas proletárias e burguesas, isto é, que demarcou ao mesmo tempo um traçado claro entre o viés ascendente, heróico e revolucionário da empreitada burguesa, seu tino republicano e sua luta contra outras frações dominantes, e os limites de uma revolução política que preservava as desigualdades de classe da sociedade civil-burguesa. Ao ditar a república ao governo provisório e, por meio do governo provisório, a toda a França, o proletariado ocupou imediatamente o primeiro plano como partido autônomo, mas, ao mesmo tempo, desafiou toda a França burguesa a se unir contra ele. O que ele conquistou foi somente o terreno para travar a luta por sua emancipação revolucionária, mas de modo algum a própria emancipação. Antes disso, a primeira medida que a república de fevereiro teve de tomar foi consumar o domínio da burguesia, permitindo que todas as classes proprietárias ingressassem ao lado da aristocracia financeira na esfera do poder político. A maioria dos grandes proprietários de terras, os legitimistas, foi emancipada da nulidade política a que a monarquia de julho a havia condenado. Não foi por nada que a Gazette de France agitou junto com os jornais oposicionistas, não foi por nada que La Rochejaquelein tomou o partido da revolução na sessão da Câmara dos Deputados de 24 fevereiro. Mediante sufrágio universal, os proprietários nominais, que compõem a maioria dos franceses, os agricultores, foram instituídos como juízes sobre o destino da França. Por fim, a república de fevereiro fez com que a dominação dos burgueses aparecesse em sua forma pura, ao derrubar a coroa atrás da qual se escondia o capital. (MARX, 2012, p. 34). Na dicção do próprio Marx (2012), os trabalhadores conquistaram tanto a monarquia burguesa na revolução de julho de 1830 quanto reavieram a república burguesa na revolução de fevereiro de 1848. Tal processo implicou no advento cada vez mais soberano da burguesia, em suas frações conflitantes, mas subentendendo a edificação, por ora, ascendente, de um mundo possível de novas conquista sociais. O sufrágio universal mesmo aparece como um aspecto concreto dessa conquista nada desprezível. No entanto, segundo a concreção marxiana, a classe trabalhadora, pela sua própria configuração objetiva, só pôde caminhar a reboque desse processo, mesmo quando sua incidência e investida junto à burguesia tenha sido de feitio fundamental para o desdobrar das lutas. Vejamos, destarte, que as conquistas políticas não angariaram elementos desprezíveis, mas tampouco resolutivos: Marche, um operário, ditou o decreto em que o governo provisório recém‐constituído se comprometia a assegurar a existência dos trabalhadores mediante trabalho, a providenciar emprego para todos os cidadãos etc. E quando, poucos dias depois, ele esqueceu seu compromisso, parecendo tê‐lo perdido de vista, uma massa de 20 mil trabalhadores marchou até o Hôtel de Ville bradando: “Organização do trabalho! Criação de um ministério próprio do trabalho!”. De modo relutante e após longos debates, o governo provisório nomeou uma comissão especial permanente, encarregada de descobrir os meios para o melhoramento das classes trabalhadoras! Essa comissão foi composta de delegados das guildas dos artesãos de Paris e presidida por Louis Blanc e Albert. (MARX, 2012, p. 35). Marx (2012) destaca, entretanto, que as conquistas só ganharam feitio contingencial. Isso se entificou até de forma espacial uma vez que Blanc e Albert ficaram confinados ao palácio de Luxemburgo, distantes da sede do governo provisório, onde o funcionamento dos ministérios reorganizava a manutenção e regulação do cosmos burguês tendo em conta sua lógica especifica, suas possibilidades e necessidades imanentes ao esteio da múltipla burguesia que agora encampava na administração do Estado. Em suma, Marx (2012) definiu que o operariado, dessa feita, não possuía “diferentemente de qualquer poder estatal profano, eles não dispunham de nenhum orçamento, de nenhum poder executivo. Esperava‐se que eles derrubassem as colunas de sustentação da sociedade burguesa a cabeçadas” e de maneira ainda mais dilacerante e demonstrativa do esquadrinhamento da decadência do revolvimento burguês: “Enquanto o Luxemburgo buscava a pedra filosofal, no Hôtel de Ville se cunhava a moeda corrente” (MARX, 2012, p. 35). Os trabalhadores, peça fundamental das revoluções, ficaram a cargo da “existência nebulosa de Luxemburgo”. Depauperados de horizontes, sem condições práticas de supressão de sua miséria material e espiritual, sem destaque na práxis social política, que emoldurava as lacunas do abstrato universalismo burguês e cedia transparência às circunscrições transicionais da ascendência-decadência da sociabilidade burguesa. Em suma, refulgia o frontispício expositivo do máximo avanço burguês possível, isto é, como nos importa demarcar, seu limiar intransponível, donde qualquer passo a mais constituiria um reclame pelo impossível. Os trabalhadores haviam feito a Revolução de Fevereiro junto com a burguesia, mas procuraram impor seus interesses ao lado da burguesia, assim como haviam instalado, no próprio governo provisório, um trabalhador ao lado da maioria burguesa. Organização do trabalho! Sim, mas o trabalho assalariado é a organização burguesa já existente do trabalho. Sem ela, não há capital, não há burguesia, não há sociedade burguesa. Um ministério próprio do trabalho! Sim, mas os ministérios das finanças, do comércio e dos serviços públicos já não são os ministérios burgueses do trabalho? E, posto ao lado destes, um ministério do trabalho proletário só poderia ser um ministério da impotência, um ministério dos desejos piedosos, uma comissão do Luxemburgo. Assim como os trabalhadores acreditavam poder se emancipar paralelamente à burguesia, eles acharam que podiam realizar a revolução proletária à parte das demais nações burguesas. (MARX, 2012, p. 35). A tessitura do texto marxiano é radical, vai à raiz da configuração dos complexos sociais articulados. Marx (2012) rasga os assentimentos contingenciais: “Organização do trabalho! Sim, mas o trabalho assalariado é a organização burguesa já existente do trabalho”. O autor alemão defenestra, destarte, as investidas ainda incautas, que buscavam sorver no ideário burguês um governo em consonância que gerasse frutos ao dúplice interesse burguês-proletário. Mas, vem a constar, pela própria dobradura da realidade, que esses interesses não são apenas dúplices, são antagônicos. Trata-se, em última instância, de uma irreversibilidade, aquela de que a aglutinação das diferentes classes para a revolução não pode mais ter andamento e vivacidade. É dessa forma que Marx (2012), no brio próprio do estilo sarcástico e expositivo marxianos, dirá que “mas os ministérios das finanças, do comércio e dos serviços públicos já não são os ministérios burgueses do trabalho?”, isto é, a envergadura do Estado Moderno já edifica um complexo de complexos que é atinente ao momento econômico correspondente, a sociedade civil-burguesa. De outro modo, um “ministério do trabalho proletário” pode ser mais do que um “ministério dos desejos piedosos”? Quer dizer, uma comissão minoritária e atrófica que luta pela sobrevivência e até pelo bem-estar, ao mesmo tempo que que luta pelas condições próprias e objetivas de sua subsunção. Ademais, cumpre dizer, no comboio dessa transição francesa entre a fase heroica e a fase decadente da sociabilidade burguesa, bastante explícita com os processos de 1848, que a maturação da objetividade é o pulso central da consciência e ação das classes. Como já elucubramos, a própria razão filosófica e científica só pode aparecer post festum, de modo que seria irrazoável esperar, por messianismo ou teleologismo histórico, que a classe operária automaticamente se colocasse sobre seus próprios pés e atinasse para o revolvimento do novo mundo e da nova morfologia da divisão social do trabalho. O processo, bastante mediado e meandrado, perpassa pelo que o próprio Marx alerta: “Assim como os trabalhadores acreditavam poder se emancipar paralelamente à burguesia, eles acharam que podiam realizar a revolução proletária à parte das demais nações burguesas”. Isto é, elabora a síntese de fragilidades que só podem ser entendidas na medida em que se entende que a maturação da classe operária e a posição ideológica de classe ainda careciam de desenvolvimento mais determinado e acabado, o que germinava paulatinamente nesse momento bastante importante e liminar. Marx (2012) vai alertar para o fato de que a burguesia industrial francesa não era ainda dominante. Sua existência em Paris tinha algum vigor, enquanto sua existência no restante do território francês era “dispersa”. Essa difusão também condicionou as possibilidades ou não possibilidades do processo revolucionário já que o próprio proletariado não era volumoso e posicionalmente bem demarcado como vimos. É por isso que “A luta contra o capital em sua forma moderna e desenvolvida – ou seja, em seu aspecto principal, que é a luta do trabalhador industrial assalariado contra o burguês industrial – constituiu um fato parcial na França” (MARX, 2012, p.36). Deste modo, até fevereiro, a luta se eximiu da “luta contra o capital em sua forma moderna” e se evidenciou como “sublevação geral contra a aristocracia financeira”. Assim, o trabalhador abaixara a “bandeira vermelha diante da tricolor”. Os trabalhadores franceses não puderam dar nenhum passo adiante, não puderam tocar em um cabelo sequer da ordem burguesa enquanto o curso da revolução não obrigou a massa da nação que se encontrava entre o proletariado e a burguesia, os agricultores e pequeno‐burgueses, revoltados contra essa ordem, contra a dominação do capital, a se unirem aos proletários como sua linha de frente na batalha. Os trabalhadores só puderam obter essa vitória pagando o preço da derrota de junho (MARX, 2012, p. 37). Traços marcantes da incipiência da decadência ideológica, do rebaixamento dos insumos ideativos burgueses, ficam claros a partir do sucesso da revolução de fevereiro. Nesse sentido, a própria esfera da política aparece como atividade humana pela qual os mantras da decadência burguesa passam a ser exercidos fundamentalmente, violando a inspeção (outrora, em relação ao poder político aristocrático) progressista da realidade. Remontamos, portanto, à determinação social do pensamento, ao movimento da totalidade social burguesa, à determinação reflexiva dos complexos sociais e à peculiaridade ontoprática da ideologia no momento em que as várias frações da burguesia consolidam sua dominação partilhada por meio da república: na fraseologia hipócrita das facções burguesas até ali excluídas do domínio, o domínio da burguesia fora eliminado com a introdução da república. Naquela hora, todos os monarquistas se transformaram em republicanos e todos os milionários de Paris em trabalhadores. A fraseologia que correspondeu a essa eliminação imaginária das relações de classe foi a da fraternité, a confraternização e fraternidade universal. Uma abstração cômoda dos antagonismos de classe, uma nivelação sentimental dos interesses de classe contraditórios, uma exaltação delirante acima da luta de classes, a fraternité: essa foi a palavra‐chave propriamente dita da Revolução de Fevereiro. (MARX, 2012, p. 37). O próprio Lamartine – representante fraseológico da revolução de fevereiro, portanto, burguês-decadente - dirá que as classes estariam separadas por um infeliz mal-entendido (“un gouvernement qui suspende ce malentendu terrible qui existe entre les différent classes”). De outro modo, o proletariado, incauto no devir das contradições sociais, por ora, apenas pôde, nesse curto espaço, referendar e reivindicar seu espaço no interim da república, a qual era vista como objeto social plasmado por ele próprio, o que não era plenamente irrazoável. A arbitrariedade e consolidação da dominação, inobstante, ficaram claras quando o próprio proletariado foi utilizado para a defesa inglória das conquistas da “fraternité”, isto é, a defesa militar da república e das propriedades, ao mesmo tempo em que o governo antecipava o pacote de medidas que afanava e acalentava novamente os credores bancários (MARX, 2012). O governo provisório, dessa feita, requentava o jogo de forças da burguesia sem afastar um centímetro o espectro do capitalismo, quanto antes consolidando o alijamento dos trabalhadores. O governo provisório visava despir a república de sua aparência antiburguesa. Em consequência, ela teve de forçosamente garantir sobretudo o valor de troca dessa nova forma de Estado, garantir a sua cotação na bolsa. Restabelecida a cotação da república na bolsa, necessariamente voltou a crescer a oferta de crédito privado. Para eliminar até mesmo a suspeita de que não quisesse ou não pudesse honrar os compromissos assumidos da monarquia, para conferir credibilidade à moral burguesa e à solvência da república, o governo provisório recorreu a uma bravata tão indigna quanto infantil. Antes do prazo legal para o pagamento, ele pagou aos credores do Estado os juros sobre os 5%, 4,5% e 4% [das obrigações]. O aplomb burguês, a autoconfiança dos capitalistas, despertou subitamente quando se deram conta da pressa angustiada com que se tentava comprar sua confiança. (MARX, 2012, p. 39). Arcando com a manutenção do poder da burguesia bancária, ao mesmo tempo que fez ascender a burguesia industrial e a aristocracia fundiária, o governo provisório francês ratificou seu espectro de classe jogando sobre a maioria da população francesa, os camponeses, uma alta carga de impostos que garantisse alguma mínima (para não dizer falsa) legitimação da crescente dívida do Estado. O imposto dos “45 cêntimos” centralizou na massa camponesa os custos da revolução de fevereiro (MARX, 2012). Como na própria letra marxiana, se tornou “desanuviada” a dimensão de classe do Estado que, no ímpeto de suas diretrizes e políticas, reconhecia a sociabilidade como sociedade burguesa por excelência ao mesmo tempo que dava respostas contraditórias ao interesses da classe trabalhadora: a emancipação “paralela” obstinada pela classe operária desmoronou de seus frágeis arrimos. E nós vimos por que a república de fevereiro realmente não era nem podia ser nada além de uma república burguesa, mas também vimos que o governo provisório fora obrigado, sob a pressão direta do proletariado, a proclamá‐la como uma república com instituições sociais, vimos que o proletariado parisiense ainda não foi capaz de ir além da república burguesa, a não ser em sua ideia, em sua imaginação, vimos que ele, em toda parte, esteve a serviço dela quando se tratava de agir efetivamente, vimos que as promessas que lhe foram feitas se transformaram em perigo intolerável para a nova república, que todo o processo vital do governo provisório se resumiu em uma luta constante contra as reivindicações do proletariado. (MARX, 2012, p.45) O sonho universalista ceifado concretizou seu cancelamento quando em junho se espargiu e se derrotou a empreitada autenticamente proletária. Dessa feita, a república burguesa estava realmente talhada. Os conflitos arrolados desde maio na assembleia nacional levaram os líderes proletários à prisão; todo regimento e argumento burguês se fortificou, tonificando a divisão intransponível da revolução burguesa. Até os “ajuntamentos populares” foram proibidos (MARX, 2012). Os ateliês nacionais (medida para combater o desemprego) vinham sendo atacados com um conjunto de medidas, expulsões, salário por produtividade, observando toda precarização possível, além da obrigação de alistamento/expulsão para solteiros (medida tomada no dia 21 de junho). No dia 22 de junho de 1848, os trabalhadores só podiam ter uma resposta: “uma insurreição gigantesca” pela “destruição da ordem burguesa”. A insurreição, heroicamente, dadas as condições de desarmamento e desorganização, conseguiu imprimir terror ao exército e à guarda nacional (MARX, 2012). A contrapartida veio em tons perversos: “o massacre de mais de três mil prisioneiros”. A luta social ganhou sua verdadeira inflexão na medida mesma em que a sociabilidade burguesa em seu viés decadente, classista e manipulatório mostrou sua verdadeira face. A “revolução feia” emprestou o máximo clarão desta processualidade do ser social. O ato de derrubada da ordem burguesa não foi consumado. Sua confirmação carecia de outros elementos teóricos e práticos. Um outro detalhe do texto de Marx (2012) nos obriga ao debate da oscilação presente na ação política das classes de transição. Vejamos: Quando o proletariado fez do seu túmulo o berço da república burguesa, obrigou‐a simultaneamente a vir à frente em sua forma pura, ou seja, como o Estado cujo propósito confesso é eternizar o domínio do capital, a escravidão do trabalho. Tendo constantemente diante dos olhos o inimigo coberto de cicatrizes, irreconciliável, invencível – invencível porque sua existência é a condição da sua própria vida –, o domínio burguês livre de todas as amarras teve de converter‐se imediatamente em terrorismo burguês. Com o proletariado momentaneamente afastado do cenário e a ditadura burguesa oficialmente reconhecida, os estratos intermediários da sociedade burguesa, a pequena burguesia e a classe camponesa tiveram de aderir mais e mais ao proletariado, e isso na mesma proporção em que sua situação se tornava insuportável e seu antagonismo contra a burguesia se exacerbava. Assim como anteriormente haviam identificado a razão de sua miséria na ascensão do proletariado, agora tiveram de encontrá‐la na derrota deste. (MARX, 2012, p. 48) A objetivação da república burguesa, mesmo entificando figura não autocrática, bonapartista, fulgura a lógica específica da “ditadura” do capital sobre o trabalho, isto é, remete ao “terrorismo burguês”. Nesse sentido, não apenas as classes de transição sofreram com o devir francês, tendendo a se posicionar agora favoráveis à luta dos operários, mas também, os povos em luta por independência nacional puderam efetivar seu escopo de subtrair o domínio exterior francês na medida em que a França voltava seus olhos para luta interna (MARX, 2012). A derrota de junho, mais uma vez, ganhou o alvorecer da renitência do domínio da propriedade privada sobre o trabalho alienado e o desmanche das ilusões com a política. Como se pôs claro, “O dia 25 de fevereiro de 1848 havia outorgado a república à França, o dia 25 de junho lhe impôs a revolução” (MARX, 2012, p. 51). Ademais, demonstrando a verve transformativa decisiva dos processos sociais “depois desse junho, revolução passou a significar convulsão da sociedade burguesa, ao passo que antes daquele fevereiro havia significado convulsão da forma de Estado” (MARX, 2012, p.51), ou seja, o operariado infletiu a revolução à engendramento para além da disputa do estado, da verve da “alma política”. Em grande medida, a própria pequena-burguesia, insidiosa em articulação com a burguesia em fevereiro, e crítica mordaz do proletariado no entremeio do processo, teve que se dispor juntamente com o proletariado dados os revolvimentos desse junho. Este processo, em que pese a concreção como particularização de cada caso, marca também alguns aspectos da configuração da luta de classes na sociedade burguesa, quando o solo das contradições já vige explicitamente. A destruição dos insurgentes de junho, segundo Marx, constitui a “destruição de inimigos”, expressão que a própria assembleia constituinte republicano- burguesa tratou de emoldurar. A configuração da decadência burguesa, que outrora afirmamos, se confirma até mesmo no ardil em que as punições foram tomando. As práxis do Estado republicano acabado, extrusando sua face manipulatória e violenta, ao mesmo tempo que administrativa e regulatória, estabeleceram que: O primeiro ato da Assembleia Nacional Constituinte foi a instalação de uma Comissão de Inquérito a respeito dos eventos do mês de junho e do dia 15 de maio e a respeito da participação dos chefes de partido socialistas e democráticos nessas datas. O inquérito foi diretamente dirigido contra Louis Blanc, Ledru‐Rollin e Caussidière. Os republicanos da burguesia ardiam de impaciência para se livrar desses rivais. E não poderiam ter confiado a execução de seu rancor a ninguém mais apropriado do que ao sr. Odilon Barrot, o ex‐chefe da oposição dinástica, o liberalismo corporificado, a nullité grave [a nulidade de peso], a superficialidade profunda, que não tinha só uma dinastia a vingar, mas também uma conta a cobrar dos revolucionários por uma gestão malograda como primeiro‐ministro. Essa era a maior garantia de sua inexorabilidade. Esse Barrot foi portanto, nomeado presidente da Comissão de Inquérito e construiu um processo completo contra a Revolução de Fevereiro, que se resume da seguinte maneira: 17 de março = manifestação; 16 de abril = complô; 15 de maio = atentado; 23 de junho = guerra civil! Por que ele não estendeu as suas investigações eruditas e criminalísticas até o 24 de fevereiro? (MARX, 2012, p. 53). A burguesia francesa se impôs pela limpeza de suas marcas e cicatrizes revolucionárias, isto é, houve história, e a houve de maneira revolucionária, mas não há mais, e toda essa verossímil processualidade deve ser varrida para debaixo do tapete. Nesse sentido, os aspectos ideológicos, no cumprimento de sua função ontológica na reprodução da sociabilidade, executaram a tarefa mendaz de esfumaçar e manipular os novelos e encadeamentos da propulsão burguesa, a natureza de seu parto, o desfecho de seu golpe, seu ourives revolucionário. A vertigem da decadência se completou na proibição dos direitos de associação, na exclusão de impostos sobre o capital, na revogação da lei que limitava o trabalho a dez horas diárias, na chancela da prisão devido a endividamento (o que ocasionou, dessa feita, a bancarrota e ameaça aos pequeno- burgueses). Contraditoriamente, todo este processo reconfigurou os poderios da designada “aristocracia financeira”. A classe proletária começava a engendrar, ao menos como virtualidade e potência, uma libertação mais universal das cadeias explorativas do capital e à própria pequena-burguesia proprietária ruía o mundo como se vê na passagem seguinte: Salvem a propriedade! Porém, a casa em que moravam não era sua propriedade; a loja de que cuidavam não era sua propriedade; as mercadorias que comerciavam não eram sua propriedade. Nem o seu negócio, nem os pratos onde comiam, nem a cama em que dormiam lhes pertenciam mais. Era deles que essas propriedades deveriam ser salvas: em favor do proprietário da casa que a havia alugado, do banqueiro que havia descontado a promissória, do capitalista que havia adiantado o dinheiro, do fabricante que havia confiado as mercadorias a esses lojistas, do grande comerciante que havia fornecido as matérias‐primas a crédito a esses profissionais. Restaurem o crédito! Porém, o crédito que havia recobrado forças provou ser um deus vivo e ávido ao expulsar o devedor inadimplente de suas quatro paredes junto com mulher e filhos, ao entregar seus aparentes pertences ao capital e ao jogar a ele próprio na torre dos devedores, que voltara a ser erigida ameaçadoramente em cima dos cadáveres dos insurgentes de junho. (MARX, 2012, p. 54) Endossando o paradeiro da decadência, Marx (2012) retrata como a constituição advinda dos processos da derrota de junho reitera o domínio mais claro da grande burguesia aliançada, esvaziando qualquer possibilidade de monta favorável à emancipação do trabalho. Os designados “direitos do trabalho” foram igualmente atacados pela máquina destrutiva burguesa que apossada de máximo poder no decurso da história, fruía da fragilidade momentânea do “inimigo” abalado ao qual restou apenas um “direito à assistência”, isto é, a sobrevivência precária da classe desefetivada de sua humanização. Mesmo com a manutenção (temporária) do sufrágio universal, a forma democrática não encetava algo que não a dominação burguesa. O limite da emancipação política engendrava o limite da desembocadura burguesa atinente à segurança do capitalismo, que já continha em si alguns gérmens de luta social controladas no terreno político. Trata-se, de outra maneira, de dosar o poder proletário, envergando-o a poder aparente, vigiado, formal e inócuo. Na letra marxiana, “Eles esperavam degradar o poder político das massas populares a um poder aparente” para com isso “jogar com esse poder aparente o suficiente para suspender permanentemente sobre a cabeça da maioria da burguesia o dilema das jornadas de junho: reino do National ou reino da anarquia” (MARX, 2012, p. 58). O poder aparente do proletariado aportava uma função no jogo manipulatório, aquele de dar vigas ao simulacro de uma disputa simétrica entre o reino do National (jornal da grande burguesia industrial e comercial dominante) e o reino da anarquia, e assim, conceder o carimbo de anárquico e perigoso às exagerdas e autênticas demandas trabalhadoras pela composição de seu cosmos humanizatório. A burguesia industrial francesa, dessa feita, aglomerou-se na bandeira revolucionária até que a força proletária demonstrasse sua “automotricidade histórica”. O “socialismo burguês”, democratismo que dá ao estado a tarefa de assistente social ao mesmo tempo que grande catalisador da indústria, emerge como diapasão limítrofe em que a burguesia faz iludir o operariado, como uma síntese confusa de interesses, como o foi na revolução de fevereiro. Trata-se de substituir o rigor da análise, a dureza dos fatos da divisão social do trabalho, a inexorabilidade da revolução para reconfiguração social, por uma pauta obnubiladora que “suprime a luta de classes revolucionária com suas exigências, fantasiando pequenas proezas ou grandes sentimentalismos” (MARX, 2012, p. 102). Marx (2012) demonstra, em excerto de alto valor de síntese, o processo mais candente ao proletariado. Aquele que deve nutrir seu destino e interesse autêntico, porque é aquele que, nas suas variadas colocações e objetivações particulares, descende a recomposição do multiverso humano possibilitando configurar a “paidea” do novo homem omnilateralizado e de complexos sociais que não socio-reproduzam as mazelas dos estranhamentos burgueses em qualquer âmbito das relações societárias. De outra forma, Marx (2012) fala do “ponto de transição”, da “ditadura classista do proletariado”, isso é, do socialismo que alberga fase transicional ao comunismo propriamente dito, à revolução social que encampa a “abolição das relações de produção presentes e da totalidade de relações sociais que correspondem a essas relações de produção”. Uma “convulsão” que remete ao plasma do novo conjunto de complexos e esferas do ser social, que engenhe os objetos sociais em relações postas não estranhadas, e que destarte, possa conformar a subjetividade renovada, a constituição de individualidades multifacetadas em desenvolvimento de suas potencialidades, ou mesmo, uma “convulsão da totalidade das ideias”. Esse socialismo é a declaração de permanência da revolução, a ditadura classista do proletariado como ponto de transição necessário para abolição de todas as diferenças de classe, para a abolição da totalidade das relações de produção em que estão baseadas, para a abolição da totalidade das relações sociais que correspondem a essas relações de produção, para a convulsão da totalidade das ideias, que se originam dessas relações sociais. (MARX, 2012, p. 102). Há de se dizer também que a morfologia republicana do Estado burguês entifica estágio seminal para o amadurecimento das lutas político-sociais do proletariado, o que acarreta na elevação do conflito de classes até as peias do estado e da política sem que essa problemática se resolva decisivamente. Assim, “O domínio burguês como efluente e resultado do sufrágio universal, como ato declarado da vontade soberana do povo: esse é o sentido da Constituição burguesa” (MARX, 2012, p. 105). Isto é, o domínio burguês pela via direta democrática inclui a participação dos próprios explorados, que se aprisionada ao novelo estadista, restringe o nível da luta à circunscrição da emancipação política burguesa. Entretanto, já é evidente, as lutas táticas tem seu peso e remetem a possibilidades mais ou menos generosas para a ótica da emancipação segundo a via de entificação de cada capitalismo, porém, em todo caso, as lutas cativas do estatismo e do politicismo conjuram uma aposta títere do terreno do inimigo. Assim, “a partir do momento em que o teor desse sufrágio, dessa vontade soberana, não é mais a dominação dos burgueses, que sentido ainda teria a Constituição?” (MARX, 2012, p. 105). Os limites da politicidade, como esfera por onde se pode arrefecer e acirrar a luta de classe sem nunca ser uma via resolutiva, se postam de forma clara no casos da ofensiva burguesa contra os diminutos e importantes ganhos da classe trabalhadora, seja na forma de direitos, ou na forma de consciência que se reverbera na luta política. Destarte: Não seria dever da burguesia regulamentar esse sufrágio de tal maneira que ele queira o que é razoável, isto é, a sua dominação? Ao rejeitar o sufrágio universal, com que se havia drapeado até ali e do qual extraíra a sua onipotência, a burguesia admitiu francamente isto: “Nossa ditadura subsistiu até agora pela vontade popular; de agora em diante, ela precisa ser consolidada contra a vontade popular”. E consequentemente ela busca apoio não mais na França, mas fora dela, no exterior, na invasão. (MARX, 2012, p. 105). CONSIDERAÇÕES FINAIS O texto, dessa feita, trouxe à baila a inflexão nodal do mundo burguês, demarcando sua feição decadente enquanto forma de ser social, o apanágio contrarrevolucionário da outrora burguesia heroica e revolucionária francesa, a imantação de uma ideologia conservadora-manipulatória como insumo social necessário e, nesse diapasão, o aclaramento, para os trabalhadores, do limite da politicidade e do estado republicano para a “emancipação humana” (MARX, 1989). Tratou-se, outrossim, de averiguar a estatura das ideologias burguesas aglutinadas à práxis política maximanente revolucionária nessa sociabilidade, isto é, ao engendramento da revolução de 1848 e da república como limites intransponíveis que impossibilitaram qualquer outro passo revolucionário para burguesia, ao contrário, que ativou a conservação de seu mundo consolidado. Em suma, seguindo o pleito dessa via clássica de entificação do capitalismo, demonstramos através da lavra marxiana como as lutas sociais operárias desta fase marcante (1848), sempre particularizadas, interagem e evidenciam a teoria marxiana quanto à ontonegatividade da política. Fica manifesto como o apanágio decadente e contrarrevolucionário burguês é apreendido em Marx, tendo em conta a diferença específica das particularidades dos distintos capitalismos, visto que no caso alemão, não tratado por esse texto, Marx demarcara já de longa data uma burguesia de genética contrarrevolucionária, portanto, capitalismo prenhe desde o mais incipiente do selo dadecadência, não afeito a sonhos universalistas. Utilizamos parte importante da atividade teórica de Marx para debater o trânsito complexo e meandrado entre a sociabilidade ascendente burguesa e a respectiva estagnação de seu ímpeto heroico, ou seja, o perfazimento de uma sociabilidade decadente em que as vitórias no campo da política cravam, de outro lado, óbices intransponíveis: a república burguesa desvela ao operariado o problema subjacente e preponderante na sociedade civil, o antagonismo entre capital e trabalho. Pela ampla tessitura em jogo, poderia-se tratar de maneira extremamente mais exegética do tema, resgatando em detalhe os textos de 1843-49, porém, buscamos, sobretudo, demonstrar que a tese da fase inicial das críticas ontológicas (CHASIN, 2009) marxianas, desde o gabinete de Kreuzenach, permanecem vivas na sua obra, e mais, são comprovadas pela vivacidade da luta social em momento clímax de atuação das classes operárias contra a sociabilidade do capital. Nosso ponto central foi alinhavar no texto marxiano, em época recortada pela sua relevância fática, portanto, elementos que indicavam, na altura dos acontecimentos transicionais, a virada decadente da vida social burguesa em edificação e o território da política como âmbito que não poderia transcender conquistas tático- defensivas, que embora não fossem desconsideráveis para Marx, não permitiam mais qualquer ilusão quanto ao aperfeiçoamento do estado burguês. Vejamos em Engels uma síntese do decurso ideológico subjacente ao nosso debate: Foi essa a maior revolução progressista que a humanidade havia vivido até então, uma época que precisava de gigantes e, de fato, engendrou-os: gigantes em poder de pensamento, paixão, caráter, multilateralidade e sabedoria. Os homens que estabeleceram o moderno domínio da burguesia eram alguma coisa em quase nada limitados pelo espírito burguês. Muito pelo contrário, o caráter aventureiro dessa época neles se refletiu em certa dose. Não existia, então, quase nenhum homem de certa importância que não tivesse feito extensas viagens; que não falasse quatro ou cinco idiomas; que não se projetasse em várias atividades. Leonardo da Vinci era não só um grande pintor, mas também um grande matemático, mecânico e engenheiro, a quem os mais variados ramos da física devem importantes realizações. Albert Dürer era pintor, gravador, escultor, arquiteto e, além disso, inventou um sistema de fortificações que continha várias das idéias, muito mais tarde assimiladas por Montalembert, das modernas fortalezas alemãs. Maquiavel era estadista, historiador, poeta e, ao mesmo tempo, o primeiro escritor militar digno de menção nos tempos modernos. Lutero não só limpou os estábulos de Áugias da Igreja, como também o do idioma alemão: criou a prosa alemã moderna e escreveu o texto e a melodia desse coral triunfal que foi a Marselhesa do século XVI. Os heróis dessa época não se achavam ainda escravizados à divisão do trabalho, cuja ação limitativa, tendente à unilateralidade, se verifica freqüentemente entre seus sucessores. Mas o que constituía sua principal característica era que quase todos participavam ativamente das lutas práticas de seu tempo, tomavam partido e lutavam, este por meio da palavra e da pena, aquele com a espada, muitos com ambas. Daí essa plenitude e força de caráter que fazia deles homens completos. Os sábios de gabinete são a exceção: ou eram pessoas de segunda ou terceira classe, ou prudentes filisteus que temiam queimar os dedos. (ENGELS, 1979, p. 16). Com a pletora de esclarecimentos, se expõe como o próprio jogo político burguês democrático, mesmo na via clássica, passava a uma inflexão contrarrevolucionária e conservadora. Isto é, angariando manter determinados limites, evitando o consórcio anterior com o proletariado (levado a reboque), tornou-se necessário, até mesmo, obstar o aprofundamento das conquistas políticas tático-defensivas paulatinas pelo proletariado (e pela pequena-burguesia/camponeses, assim como a própria pequena- burguesia passa a ser acusada de socialismo quando exige pautas meramente liberais). As próprias facções do capital, eivadas do rejunte conservador, atuavam na peia mediadora do estado talhando a reprodução do capital em acordo com seus distintos, e por vezes, conflituosos, interesses, que no entanto, se apresentavam e se assomavam em uníssono contra qualquer conquista política de arrefecimento explorativo e, principalmente, contra a efervescência de qualquer possibilidade revolucionária dos “de baixo” que pudesse infletir pra além dos interesses do capital e suas frações. O ocaso da sociabilidade burguesa, portanto, derroga, sangrenta e definitivamente, aquilo que fora aurora revolucionária: Já sabemos, hoje, que esse império da razão não era mais que o império idealizado pela burguesia; que a justiça eterna tomou corpo na justiça burguesa; que a igualdade se reduziu à igualdade burguesa em face da lei; que como um dos direitos mais essenciais do homem foi proclamada a propriedade burguesa; e que o Estado da razão, o “contrato social” de Rousseau, pisou e somente podia pisar o terreno da realidade, convertido na república democrática burguesa. Os grandes pensadores do século XVIII, como todos os seus Predecessores, não podiam romper as fronteiras que sua própria época lhes impunha. (ENGELS, 2011, p. 32-33). BIBLIOGRAFIA ALVES, A. J. L. A crítica marxiana da questão do método. Sapere Aude vol. 6, n.o 11, pp. 31-68, 2015. ALVES, A. J. L. A questão do Satandpunkt na cientficidade marxiana: a querela do trabalho produtivo na economia política. 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- O assim chamado Fordismo-Taylorismo: uma análise crítica acerca da produção e do trabalho
por Igor Dias Domingues de Souza e Krishna Edmur de Souza Chagas O presente artigo foi originalmente publicado como trabalho completo nos anais do “II Simpósio Nacional Educação, Marxismo e Socialismo”, em 2018. Introdução Os termos Fordismo-Taylorismo tem um longo histórico de utilização. Do cientista social ao administrador de empresa, do jornalista da coluna de negócios ao professor universitário. Não é objetivo do presente artigo, como se fará visível ao longo deste, analisar os diferentes espaços em que o uso dos termos já citados acima se tornam comuns, mas vale destacar que os termos “Fordismo-Taylorismo” ganharam popularidade para além dos meios acadêmico e empresarial. O foco da presente análise está na compreensão do binômio “Fordismo-Taylorismo” pelos autores situados politicamente à esquerda. Entretanto, cabe ressaltar que a utilização do termo não está restrita à esquerda, inclusive alcançando destacada visibilidade nos cursos superiores de administração, bem como em jornais e revistas de caráter empresarial. Pensando o “Taylorismo-Fordismo” na intelectualidade à esquerda, foco de nossa pesquisa, torna-se risível o modo como os termos ganharam acentuada importância dentro do supracitado espectro político, presente em publicações de peso. Um bom exemplo encontra-se em “Labor and Monopoly Capital” de Harry Braverman, no qual o autor dá aguda relevância ao binômio, onde nas palavras deste: “A comprehensive and detailed outline of the principles of Taylorism is essential to our narrative” [1] (BRAVERMAN, 1998, p.59-60). Não somente Braverman, mas outros importantes autores, nacionais e internacionais, seguiram os mesmos rumos teóricos, como Ricardo Antunes e David Harvey, cuja obra tem impactado de forma sensível a esquerda, tema a ser estudado a fundo mais adiante. Há, no entanto, que compreender, que não apenas indevido, bem como por vezes supervalorizado, o uso dos conceitos Taylorismo-Fordismo insere-se num extenso debate do qual tomamos parte visando uma modesta contribuição, embasada em discussões já travadas por outros autores. Nessa perspectiva, esse artigo se apresenta não apenas enquanto defesa árdua da interpretação a qual tomamos parte, mas enquanto debate contributivo para o cenário intelectual. O taylorismo-fordismo Os termos “Taylorismo-Fordismo”, aparecendo vezes juntos, vezes separados, foram amplamente difundidos desde a publicação da obra de Frederick Winslow Taylor, “Princípios da Administração Científica” (TAYLOR, 1995), e posteriormente com a ascensão da indústria Ford. O processo de difusão de ambas as teorias organizativas na esquerda não foi diferente. Diversos autores debatem incessantemente esta questão há décadas, de modo que, atualmente, têm-se uma ideia hegemônica do que o “Taylorismo-Fordismo” representa no ciclo de acumulação capitalista. Para este setor da esquerda, o “Taylorismo-Fordismo” representa um momento histórico do modo de produção capitalista. Desta feita, o Taylorismo é apresentado como o suprassumo da organização de produção de um ciclo específico da acumulação capitalista global. Esta supervalorização torna-se aparente em Braverman, quando, tratando sobre a teoria organizativa de Taylor, o autor afirma que o “Taylorismo-Fordismo” é “A verbalização do modo de produção capitalista” (BRAVERMAN, 1998, p.60) (tradução nossa). Ou em Ricardo Antunes, quando o autor fala da “crise do padrão de acumulação taylorista/fordista” (A FOICE E O MARTELO, 2018, p. 1) E também em Harvey, por exemplo, nota-se, para além da supervalorização, o desembolar de ambas as teorias na tentativa de compreensão da realidade: Aceito amplamente a visão de que o longo período de expansão de pós-guerra, que se estendeu de 1945 a 1973, teve como base um conjunto de práticas de controle do trabalho, tecnologias, hábitos de consumo e configurações de poder políticoeconômico, e de que esse conjunto pode com razão ser chamado de fordistakeynesiano (HARVEY, 2008, p.119) O autor deixa explícito nesta citação o problema apontado anteriormente. Para Harvey, o modelo “fordista-keynesiano” assume condição de forma organizativa específica da produção de determinada etapa histórica do modo de produção capitalista, sendo, inclusive, chamado pelo autor de “regime de acumulação” (HARVEY, 2008, p.122). Elevado, devido a isto, à condição de modelo existente em grande proporção na sociedade capitalista, ao menos entre 1945-1973, como defende o autor. Esta condição de categorização do Taylorismo pode ser compreendida mais nitidamente se observarmos a análise de Harvey acerca das implicações da produção em massa, ao diferenciar Ford e Taylor: Produção em massa significava consumo de massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista. (HARVEY, 2008, p.121, grifo nosso) No próximo capítulo, buscaremos relativizar a real importância da teoria de Taylor na construção do capitalismo norte americano, onde surgiu o taylorismo e o fordismo. Para tanto, se faz necessário uma análise histórica e econômica da ascensão dos Estados Unidos à condição de potência capitalista global. Transformações do capitalismo norte-americano de meados do século XIX ao início do século XX A importância dada ao “Taylorismo-Fordismo” por Harvey e Braverman alça o mesmo à condição de momento fundamental para a transformação do capitalismo norte-americano, tendo este, para os autores, contribuído decisivamente para a construção das bases que permitiriam o lançamento do país ao patamar de potência global. Ao realizar pesquisas acerca da construção do capitalismo norte-americano, foi possível submeter este tema ao crivo histórico e analisar se, de fato, o “Taylorismo-Fordismo” ocupa este posto estratégico no estágio monopolista do capitalismo. Ora! Harvey e Braverman apregoam o “Taylorismo-Fordismo” à condição de fase de acumulação, estágio essencial da produção na sociedade do capital. Entretanto, os dados relativos à realidade do desenvolvimento e consolidação do capitalismo norte-americano levam-nos a questionar a categorização destas formas de organização da produção enquanto tal. Um importante autor que fornece base a essa pesquisa é Alfred Chandler, que, discutindo a importância dos gerentes na formação da empresa moderna nos EUA, utiliza-se de dados corporativos para esclarecer como se deu a transformação interna do capitalismo nos EUA durante a virada do século XIX. In these ways, then, the nation's first railroad boom provided a basic impetus to the rise of the large-scale construction firm and the modern investment banking house. However, these firms created no new problems of internal management in their operation. Neither the construction company nor the investment banking house built a large geographically extended administrative network of operating units. (CHANDLER, 1977, P.94) Se por um lado os dados advindos do estudo de Chandler sobre o que o mesmo define como a “classe gerencial” no processo de consolidação e expansão do capitalismo norte-americano nos dão suporte material para compreender o afluxo de capitais que levaria à transformação do mesmo, Aloísio Teixeira auxilia nossa análise de forma crucial ao lançar a tese de que “a fantástica trajetória dos Estados Unidos em direção à hegemonia mundial tem a ver com a forma específica como surgiu, em seu espaço nacional, o “modern capitalism” (TEIXEIRAS, 1999, p. 156-157). Para Teixeiras, o surgimento do “modern capitalism”, e não da manufatura (mais adiante veremos que o taylorismo não difere da manufatura), explica a ascensão norte americana, como afirma: A força expansiva do grande capital americano durante um século decorre assim, em última instância, não de uma pretensa superioridade tecnológica de seu sistema manufatureiro (que não era tão grande no início) (TEIXEIRAS, 1999, P.158). Convergimos, deste modo, para o essencial ao surgimento deste “modern capitalism”, uma vez que seria este o responsável factual para a virada econômica do capitalismo norteamericano, e, portanto, ponto fundamental para nosso estudo. Tanto Teixeiras quanto Chandler concordam que o mesmo se deu com base na expansão em grande escala das empresas ferroviárias: Foi sobre essa base que explodiu a ferrovia. Modificando radicalmente a escala de produção e de distribuição e o tamanho da firma, seus efeitos encadeados para trás e para a frente foram de uma ordem até então desconhecida. Ela permitiu o encontro entre o vapor, o carvão mineral, o ferro, a construção civil (pela exigência de obras de infra-estrutura, como pontes e terminais urbanos) e o Estado (como vetor de demanda); ela pressupõe um novo sistema de comunicações, que viria a surgir com o telégrafo; ela impulsiona o sistema fabril~ não apenas pela demanda que exerce, mas oferecendo segurança e rapidez nos transportes e comunicações, e, acima de tudo, um modelo de organização empresarial que iria revolucionar o velho sistema produtivo.(TEIXEIRAS, 1999, P. 163) Se nos aproximarmos mais atentamente do período analisado pelo autor, levando em consideração que a obra de Taylor somente seria publicada no ano de 1911, concluiremos, claramente, não ser o Taylorismo o responsável pela acumulação de capitais especificamente encarregado por alçar a economia norte americana ao patamar de superpotência capitalista no século XX. Pelo contrário, o desenvolvimento administrativo nas empresas do país, sejam elas as ferrovias e os setores da química ou sejam elas de produtos industriais e consumíveis, bem como o setor alimentício, encontra na realidade sua comprovação enquanto pedra fundamental do processo de virada na economia dos Estados Unidos da América. É justamente neste quesito que a tese de Chandler em seu livros The Visible Hand (CHANDLER, 1977) e Scale and Scope (CHANDLER, 1990) são importantes para a presente pesquisa, Chandler apresenta-nos o modo como os principais setores da economia norteamericana se desenvolveram de forma independente ao Taylorismo. Isso é visível quando, com Chandler, analisando a evolução da produção de consumíveis químicos ou alimentícios, somos confrontados com a seguinte questão: Among the leading producers of branded, packaged foods and consumer chemicals, growth through investment in new products became even more important than growth by facilities and personnel abroad. (CHANDLER, 1990, P. 161) Muito embora investir em novos produtos tenha sido uma das principais formas encontradas para que esse ramo do mercado se desenvolvesse, Chandler elenca outras questões, como as diversas formas de desenvolvimento das economias de escala e também de escopo, que nos permitem compreender a complexidade da dinâmica do movimento histórico tratado. Entretanto, como já demonstrado, o autor deixa claro que, nesse ramo, o crescimento dos negócios se dá, de maneira mais acentuada, na pesquisa e desenvolvimento de novos produtos, não estando seu foco principal de consolidação no controle da produtividade dos trabalhadores. É necessário destacar, inclusive, que esse ramo, em determinados períodos, representou uma grande parcela das empresas norte-americanas instaladas no continente europeu. Portanto, na contramão das teorizações hegemônicas no campo político-intelectual da esquerda, representadas, neste quesito, por Braverman e Harvey, destacamos o TaylorismoFordismo enquanto formas organizativas de produção, em determinados setores produtivos, dentro do ciclo de acumulação do modo de produção capitalista. Ponto este que será melhor desenvolvido no próximo capítulo. O taylorismo-fordismo e o problema da generalização Marx em sua juventude publica um importante texto que até hoje nos é caro, seja para compreender a trajetória intelectual do autor e sua aproximação da economia política, seja para entender certas categorias expostas pelo autor, sendo este "A miséria da Filosofia", escrito em 1847 em resposta ao livro "A filosofia da Miséria", do importante socialista francês Pierre Joseph Proudhon. Dado que o presente estudo suscita uma discussão sobre a vulgarização de termos, que na tentativa de explicar a realidade, nem sempre são usados da melhor forma, a Miséria da Filosofia tem grande valor para a nossa pesquisa. Já que é constante no texto de Marx a exploração das limitadas "categorias do Sr Proudhon" (MARX, 2017a, p. 114). Aprofundando na obra marxiana: O trabalho se organiza e se divide diferentemente conforme os instrumentos de que dispõe. O moinho manual supõe uma divisão distinta daquela requerida pelo moinho a vapor. Portanto, é chocar-se contra a história querer começar pela divisão do trabalho em geral para chegar em seguida a um instrumento específico de produção, as máquinas.(MARX, 2017a, P.118) O que está posto acima, entre outras coisas, é senão a importância de estudar as formas de produção em suas particularidades. O binômio “Taylorismo-Fordismo”, vale ressaltar neste momento, dada a forma em que seu uso têm ocorrido, está longe de representar o movimento do real. O conceito de “Taylorismo-Fordismo” difundiu-se na sociedade, ganhando espaço para além dos meios acadêmicos, sendo ensinado inclusive nas escolas básicas nos cursos de ensino fundamental e médio. Não obstante, a concepção prevalecente é a de que a forma de produção capitalista foi, em sua maioria, “Taylorista-Fordista”. Sustentamos a limitada existência do “Taylorismo-Fordismo” no mundo do trabalho. Com Kabat: Consideramos que la explicación que Marx da de las transformaciones operadas en la división del trabajo durante el pasaje de la manufactura a la gran industria representa un punto firme desde el cual comenzar a desentrañar el significado de los fenómenos que comúnmente se describen bajo los rótulos de taylorismo y fordismo, así como para entender las transformaciones contemporáneas en los procesos de trabajo. (KABAT, 2006, P. 8) De forma alguma o “Taylorismo-Fordismo” pode se sustentar enquanto verbalização do modo de produção capitalista. Isso porque, até mesmo nos EUA, onde tanto Taylor quanto Ford tem sua origem, a transformação das forças produtivas se deu no país por meios anteriores ao Taylorismo. Vejamos: A chave para o entendimento do "milagre econômico" norte-americano após 1860, milagre esse que permitiu o salto de qualidade e a transformação do país na maior potência industrial do globo, reside na ferrovia. Com ela nasce o modern capitalism. (TEIXEIRAS, 1999, p.162) Da mesma forma: Foi sobre essa base que explodiu a ferrovia. Modificando radicalmente a escala de produção e de distribuição e o tamanho da firma, seus efeitos encadeados para trás e para a frente foram de uma ordem até então desconhecida. Ela permitiu o encontro entre o vapor, o carvão mineral, o ferro, a construção civil (pela exigência de obras de infra-estrutura, como pontes e terminais urbanos) e o Estado (como vetor de demanda); ela pressupõe um novo sistema de comunicações, que viria a surgir com o telégrafo; ela impulsiona o sistema fabril não apenas pela demanda que exerce, mas oferecendo segurança e rapidez nos transportes e comunicações, e, acima de tudo, um modelo de organização empresarial que iria revolucionar o velho sistema produtivo. (TEIXEIRA, 1999, p. 163) É necessário novamente destacar que quando das transformações supracitadas Taylor não havia ainda publicado sua obra, ou seja, as grandes indústrias que transformaram radicalmente o sistema produtivo norte-americano, surgiram e se consolidaram de maneira independente ao “Taylorismo-Fordismo”. É possível que se argumente posteriormente que, com o surgimento do taylorismo, esses ramos da produção tenham adotado a chamada "forma de produção taylorista", no entanto se houve alguma influência, em muito setores ela de certo foi irrisória, basta que observemos o exemplo do ramo dos "packages"(que representam parte considerável da economia norte americana no início do século XX) (CHANDLER, 1990); neste ramo as inovações que garantiam prosperidade às empresas, provinham muito pouco da "gestão de tempos e movimentos". De acordo com Chandler: A third characteristic distinguishing the producers of branded, packaged products was that their essential tripartite investment in manufacturing, marketing, and management was initially smaller than that required in other industries in which the modern enterprise clustered. Not only did the marketing and distribution of these companies' goods require less in the way of product specific personnel and facilities, but the optimal size of plants was usually much smaller. (CHANDLER, 1990, p. 149) Não estamos afirmando que o “Taylorismo-Fordismo” foi trivial. De fato, foi importante para a história norte-americana e transformou profundamente a manufatura, possibilitando inclusive uma produção em massa no setor automobilístico, o que representou um assombroso movimento de capital nos EUA. Entretanto, é necessário problematizar afirmações como a seguinte, onde Benedito, comentando a visão de Braverman pondera: Ademais de considerar o taylorismo, e sua forma desenvolvida, o fordismo, como caracterizadores da indústria moderna, seja qual for seu ramo e sua natureza técnica (MORAES NETO, 1995, p.13) Não somente em Braverman, como é levantado pelo próprio Benedito Moraes, a visão difundida do fordismo e do ohnoísmo, a qual o autor antagoniza, é de que: Ambos os conceitos teriam, segundo essa visão, poder para caracterizar a atividade industrial em sua totalidade. Procurar-se-á argumentar em sentido oposto, buscando a caracterização tanto do fordismo como do ohnoísmo como formas específicas de organização do processo de trabalho industrial (MORAES NETO, 1998, p. 2) Essa é a grande problemática em torno dos termos “Taylorismo-Fordismo”. Termos universais, que, por conseguinte, não conseguem explicar as coisas nas suas especificidades, como bem observou Kabat: A nuestro juicio, en la definición del taylorismo se conjugan elementos que son tendencias generales del capitalismo, siendo esto lo que permite que se lo encuentre en sus diversas etapas, con ciertos rasgos propios de la manufactura, como la división sistemática del trabajo. En esta conjunción radica la “universalidad” de este concepto pero también su equívoco fundamental: trasladar a etapas posteriores características propias de la manufactura, al tiempo que las particularidades del régimen de gran industria se difuminan hasta desaparecer. (KABAT, 2006, p.13) O taylorismo-fordismo como expressão máxima da manufatura Chegamos agora no ponto crucial do artigo, onde podemos expor a tese central. Através de estudos do Capital em Marx, e também de outros autores, marxistas e não marxistas, pudemos chegar à conclusão de que o “Taylorismo-Fordismo” só se dá na manufatura. Comecemos com o Taylorismo, já que apesar de observarmos as mesmas características em ambos os termos, é necessário respeitar suas especificidades. E para tanto, vamos a Taylor em seu livro Princípios da administração científica: Ora, entre os vários métodos e instrumentos utilizados em cada operação, há sempre método mais rápido e instrumento melhor que os demais. Estes métodos e instrumentos melhores podem ser encontrados, bem como aperfeiçoados na análise científica de todos aqueles em uso, juntamente com acurado e minucioso estudo do tempo. Isto acarreta gradual substituição dos métodos empíricos pelos científicos, em todas as artes mecânicas (TAYLOR, 1995, p. 33) No trecho retirado acima, Taylor está discutindo a atividade produtiva dos operários, momento este em que o autor faz a defesa de haver na empresa uma análise e uma intervenção científica, promovida pelos administradores, com o intuito de aperfeiçoar os tempos e movimentos operados pelo trabalhador, reduzindo o desperdício de energia, e atingindo maiores níveis de produtividade. A preocupação de Taylor, assim como veremos em Ford, é em relação à produtividade do trabalhador. Esses autores estão preocupados com a formulação de um método que melhor reduza o dispêndio de energia do trabalhador com coisas desnecessárias, tornando-o, consequentemente, mais produtivo. Vamos agora a Marx: E, como a habilidade artesanal permanece a base da manufatura e o mecanismo global que nela funciona não possui qualquer esqueleto objetivo independente dos próprios trabalhadores, o capital trava uma luta constante com a insubordinação deles. (Marx, 2017b, P. 442) Fica claro em Marx, ao destacar características da manufatura, que a base desta é a atividade artesanal, e que, portanto, em última instância, a produção é completamente dependente do corpo social produtivo, os trabalhadores. Isso faz com que haja espaço para que a produtividade dos trabalhadores oscile irregularmente no processo produtivo, colocando, em certo nível, barreiras para o valorização do capital. Com isso Marx aponta também limitações, mostrando que "A queixa sobre a falta de disciplina dos trabalhadores atravessa então todo o período da manufatura" (MARX, 2017b, p. 442). Chegando a afirmar que "Sua própria base técnica estreita, tendo atingido certo grau de desenvolvimento, entrou em contradição com as necessidades de produção que ela mesmo criara." (MARX, 2017b, p. 442). Se, por um lado, os limites da manufatura se dão na dependência sobre a produtividade do homem, por outro, a maquinaria surge enquanto solução para esse problema. Para Marx "A partir do momento em que a ferramenta propriamente dita é transferida do homem para um mecanismo, surge uma máquina no lugar de uma mera ferramenta." (MARX, 2017b, p. 448). Em miúdos, as ferramentas, que na manufatura dependiam do manejo do homem para realizar alguma tarefa, na maquinaria se tornam independentes, já que "A máquina-ferramenta é, assim, um mecanismo que, após receber a transmissão do movimento correspondente, executa com suas ferramentas as mesmas operações que antes o trabalhador executava com ferramentas semelhantes" (MARX, 2017b, p. 447-448) Moraes Neto é essencial neste sentido. O autor compreendeu em Marx o caráter do trabalho na manufatura, que é diferente do trabalho no maquinário. Caracterizando o trabalho na maquinaria o autor escreve: a máquina surge da manufatura e a nega, arrancando o instrumento de trabalho das mãos do trabalhador e colocando-o em um mecanismo, fazendo com que o processo de produção seja agora uma aplicação tecnológica da ciência. O ritmo do processo de trabalho, a qualidade do produto não tem nada mais a ver com o trabalho humano e sua ferramenta, mas sim com as especificações, com a qualidade, com a natureza da máquina. O trabalho humano intervém de vez em quando, o trabalho humano vigia, passa a ter funções absolutamente sem conteúdo; ocorre uma perda radical de conteúdo do trabalho vivo (MORAES NETO, 1986, p.32) Confirmando o que havíamos observado em Marx. E, agora, quando descreve o trabalho na manufatura, Benedito mostra que: em vez de se retirar a ferramenta das mãos do trabalhador e colocá-la em um mecanismo, ocorre o contrário; mantém-se a ferramenta nas mãos do trabalhador e vai-se, isto sim, dizer a ele como deve utilizar essa ferramenta; ou seja, ao mesmo tempo que se mantém o trabalho vivo como a base do processo de trabalho, retira-se toda e qualquer autonomia do trabalhador que está utilizando a ferramenta. (MORAES NETO, 1986, p.32) Trouxemos um trecho da principal obra do Taylor, e a que muito embasa o que hoje é chamado de Taylorismo. Logo após apresentamos a caracterização de Marx da manufatura e também da maquinaria, diferenciando principalmente, de que forma se dão as relações de trabalho em cada uma das formas de produção. Fizemos esse caminho para apresentar a questão, embasada na tese de Benedito Moraes, e também de Kabat, que o “TaylorismoFordismo”, com suas respectivas diferenças, que ainda devem ser destacadas, é restrito à manufatura. Ao discutir sobre como se dá a forma de exploração no Taylorismo, Benedito afirma que isso se dá de forma despótica, sob o controle dos passos do trabalhador (MORAES NETO, 1984, p. 23). Ou seja, é o controle do trabalho vivo, traço característico da manufatura, como vimos em Marx. Outro autor importante que nos permite entender esse caráter inerente à manufatura, de necessidade de controle do trabalhado vivo no “Taylorismo-Fordismo”, é o próprio Harvey. Atentemo-nos a esse trecho: A subsequente mobilização da época da guerra também implicou planejamento em larga escala, bem como uma completa racionalização do processo de trabalho, apesar da resistência do trabalhador à produção em linha de montagem e dos temores capitalistas do controle centralizado. (HARVEY, 2008, p. 123) Marina Kabat nos apresenta um ponto para refletirmos sobre essa afirmação. De acordo com a autora, como já abordamos nos capítulos anteriores, o conceito de Taylorismo é impreciso, e muito abrangente para ser usado enquanto explicação para determinadas formas de produção. Entretanto, Kabat concorda "que sus elementos principales responden a las características de la etapa manufacturera." (KABAT, 2006, p.13). E afirma que: En síntesis, la división del trabajo, la creación del obrero parcelario y la puesta en práctica del principio de Babbage, constituyen elementos típicos de la manufactura, los cuáles son desarrollados por el taylorismo hasta el extremo de sus posibilidades. El taylorismo es, entonces, la máxima expresión de la manufactura.(KABAT, 2006, p. 17) Novamente no texto de Moraes Neto, quando o autor defende que "Estamos bastante distantes da forma descrita por Marx de ajustamento da base técnica às determinações de capital" (MORAES NETO, 1984, p.23), e afirma que, para Marx: o capital reage de uma forma diferente: ao invés de subordinar o trabalho vivo através do trabalho morto, pelo lado dos elementos objetivos do processo de trabalho, o capital lança-se para dominar o elemento subjetivo em si mesmo. Esta 'façanha' do capital significa, em uma palavra, a busca da transformação do homem em máquina (MORAES NETO, 1984, p.23) Benedito descreve aqui a forma de exploração do trabalho na maquinaria, que, com Marx, é necessariamente diferente da exploração na manufatura. E Kabat reafirma pontos de convergência com essa tese: Si nos encontráramos frente a un régimen de gran industria, sería innecesario el desarrollo de toda una estructura gerencial para disociar el proceso de trabajo de la pericia del obrero, puesto la existencia de un sistema de máquinas invalidaria de por sí esa pericia, por eso Marx habla de subsunción real, frente a la subsunción formal propia de la manufactura." (KABAT, 2006, p. 18) De acordo com a autora, na grande indústria, não se faz necessário os dispêndios da administração para subsumir o trabalhador à estrutura produtiva da fábrica, a própria máquina cumpre esta façanha. Chegando ao final do capítulo, resta uma diferenciação adiada, e uma nota explicativa acerca da tardia especificação e separação dos termos. É compreensível que qualquer leitor afiado no assunto, que estude mesmo que um pouco do tema, tenha se incomodado com a utilização de Taylorismo e Fordismo, como se fossem a mesma coisa. Entretanto, em nossa defesa, e também para explicar o caráter, de certa forma marginal, que a distinção desses termos ganhou no texto, temos a dizer que, por mais importante que sejam as particularidades do Taylorismo e do Fordismo, quando se trata do foco de nossa análise, os termos apresentam mais coisas em comum do que divergências. Portanto, longe de ser irrisória a especificidade que cada termo ganhou, maior caracterização exige um estudo mais profundo. O fordismo é popularmente conhecido, e amplamente difundido enquanto a forma de organização de produção que, através da linha de montagem, conseguiu aplicar e aperfeiçoar as práticas de Taylor (MORAES NETO, 1984, p. 25). Independentemente disso, o que nos é fundamental, é o fordismo se apresentar enquanto avanço na chamada gestão de tempos e movimentos frente ao taylorismo, e ainda assim, se restringir à indústria. Assim, ao tentar desenvolver ao máximo a redução do dispêndio energético, o Fordismo, de acordo com Moraes Neto "caracteriza o que poderíamos chamar de socialização da proposta de Taylor" (MORAES NETO, 1984, p. 26). E para Kabat, o fordismo surge enquanto resposta para um constante problema para a manufatura, a comunicação (seja de informação, ou o transporte necessário propriamente para a conclusão do processo produtivo da fábrica) (KABAT, 2006, p. 23). Vejamos nas palavras da própria autora: En resumen, la cadena de montaje surge para subsanar un problema planteado por la manufactura a partir del aislamiento de tareas. Por otra parte, podemos plantear que en esta primera etapa se inicia el pasaje hacia la manufactura moderna, al introducir un elemento mecánico dentro de un proceso de trabajo realizado fundamentalmente en forma manual. (KABAT, 2006, p. 24) Conclusão Marx nos deixou uma grande herança: a importância de analisar a realidade, para a partir dela tirar possíveis conclusões. Ignorar essa forma de compreensão é negar o pensamento em Marx. Ao longo da pesquisa abordamos o que se diz sobre o taylorismo-fordismo, e pudemos chegar à seguinte conclusão: os termos “taylorismo-fordismo”, sob uma análise hegemônica dentro da esquerda (já que nossa pesquisa se restringiu aos autores situados neste espectro político) funcionam como abstratos universais, categorias com pouco poder explicativo sobre a realidade. E difundidos enquanto abstratos universais, quando usados, os conceitos “taylorismo-fordismo”, apresentam dois erros principais. O primeiro de colocar o taylorismofordismo enquanto forma de organização do trabalho de determinado ciclo de acumulação, enquanto o mesmo está presente somente em setores específicos da produção. E o segundo é em generalizar características do taylorismo-fordismo, que são próprias da manufatura, para o modo de produção capitalista como um todo (KABAT, 2006). Nessa interpretação, eleva-se a manufatura enquanto principal forma de produção no capitalismo. E Marx deixa claro que o capital, já no século XIX, apresentava umacerta tendência que apontava para a maquinaria como a principal forma de exploração do capitalismo. Nosso estudo busca trazer para a academia brasileira, uma discussão crítica acerca dos termos, que aparecem constantemente em trabalhos acadêmicos, sem muito critério, como verdades absolutas. É um trabalho para apresentar a questão, compreendendo todas as limitações que um artigo impõe, de não ser o espaço mais interessante para debater tema tão extenso. Portanto esperamos ter contribuído para o debate. Bibliografia A FOICE E O MARTELO. O toyotismo, as novas formas de acumulação de capital e as formas contemporâneas do estranhamento (alienação). Disponível em: . Acesso em: 14 jun. 2018. BRAVERMAN, Harry. Labour and monopoly capital: the degradation of work in the Twentieth Century. 25th anniversary ed. Nova York: Monthly Review Press, 1998. 338 p. CHANDLER, Alfred D.; HIKINO, Takashi. Scale and scope: the dynamics of industrial capitalismo. 1 ed. Massachussets: The Belknap Press of Harvard University Press, 1990. 760 p. CHANDLER, Alfred D. The visible hand: The Managerial Revolution in American Business. 1 ed. Massachussets: The Belknap Press of Harvard University Press, 1977. 608 p. HARVEY, David. Condição pós-moderna: Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 17 ed. São Paulo: Loyola, 2008. 349 p. KABAT, Marina. Del taller a la fabrica: Processo de trabajo, industria y clase obrera en la rama del calzado (Buenos Aires 1870-1940). 1 ed. Buenos Aires: RyR, 2006. 248 p. MARX, Karl. Miséria da filosofia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2017a. 216 p. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política – livro I: o processo de produção do capital. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2017b. 894 p. MORAES NETO, Benedito Rodrigues. Automação e trabalho: Marx igual a Adam Smith? Estudos econômicos. São Paulo, V. 25, n. 1, P. 1-19, 1995. Disponível em:. Acesso em: 14 Jun 2018. MORAES NETO, Benedito Rodrigues. Fordismo e ohnoísmo: trabalho e tecnologia na produção em massa. Estudos Econômicos. São Paulo, V. 28, n. 2, p.317-349, abr./jun. 1998. MORAES NETO, Benedito Rodrigues. Maquinaria, taylorismo e fordismo: a reinvenção da manufatura. ERA – Revista de administração de empresas. Rio de Janeiro, V. 26, n. 4, p. 31-34, out./dez. 1986 MORAES NETO, Benedito Rodrigues. Marx, Taylor, Ford: uma discussão sobre as forças produtivas capitalistas. 1984. 148 f. Tese de doutorado em Marx- Instituto de Economia. Unicamp, Campinas TAYLOR, Frederick Winslow. Princípios de Administração Científica. 8 ed. São Paulo: Atlas, 1995. 112 p. TEIXEIRAS, Aloísio. Estados Unidos: a “curta marcha” para a hegemonia. In: FIORI, José Luís (org.). Estados e moedas no desenvolvimento das nações. 1 ed. Petrópolis: Vozes, 1999. P. 155-190.
- Marx e o problema dos salários: comentário sobre o texto "salário, preço e lucro"
por Warlen Nunes Diante da crise do capital, os capitalistas não hesitam em diminuir os salários dos trabalhadores, haja vista que esse mecanismo é uma poderosa contratendência para tentar reverter a queda na taxa de lucro média. Dessa maneira, retomar algumas lições do famoso folheto de Marx, Salário, Preço e Lucro, pode ter alguma importância teórica para os trabalhadores que estão em luta neste momento histórico contra o sistema de exploração do capital. Na quadra histórica de 1865 irrompe na Europa uma epidemia de greves e a Associação Internacional dos Trabalhadores tem que se posicionar sobre esse importante acontecimento. Coube a Marx apresentar um relatório no conselho geral da Associação Internacional dos Trabalhadores contra as teses de John Weston. Este dizia que a luta pelo aumento de salários por parte dos trabalhadores era inútil porque os capitalistas iriam compensar esse aumento, aumentando os preços das mercadorias. Ademais, é nesse texto que Marx expõe sua teoria do valor e da mais-valia e demonstra que os preços não podem ser fixados pela vontade dos capitalistas, pois essa vontade tem que estar submetida a determinadas circunstâncias objetivas. Marx começa demonstrando que o argumento de Weston se resume a dois pontos: 1º) que o volume da produção nacional é algo fixo, […]2º) que o montante dos salários reais, isto é, dos salários medidos pelo volume de mercadorias que permite adquirir, é também uma soma fixa […]. (MARX. 2010.p.41). [1] Para Marx, o argumento do Weston é falso, pois devido às contínuas mudanças que se operam na acumulação de capital e nas forças produtivas do trabalho, o montante da riqueza é alterado (MARX. 2010.p.47) ou seja, a simples observação da acumulação capitalista e das forças produtivas demonstram que o volume da produção nacional não é uma grandeza fixa, mas variável e essa variação é constatada tanto anualmente como diariamente se quisermos. Mas, se aceitássemos a tese de Weston de que o montante da produção é fixa, isso não significa que suas partes não possam variar. Marx dá o exemplo que se o montante total é 8, esse pode ser dividido em 6 de lucros e 2 de salários, que poderiam aumentar até 6 e o lucro baixar até 2, que o número resultante não deixaria por isso de ser 8. (MARX. 2010.p.48). Desta maneira, o volume fixo da produção jamais conseguirá provar que seja fixo o montante dos salários. Nesse sentido, Marx argumenta que Weston não nega que os trabalhadores possam obter aumento de salários, todavia eles agiriam como tolos se assim o fizessem pois, como o montante de salários é fixo, haveria uma reação por parte dos capitalistas que compensaria esse aumento com o aumento dos preços das mercadorias. Nessa ótica, o argumento de Weston só caminha em uma direção (contra a luta por aumento de salários). Por outro lado, ele sabe também que os capitalistas podem, do mesmo modo, impor uma baixa de salários e tanto assim, que o estão tentando continuamente. (MARX. 2010.p.48). Portanto, se os capitalistas reagem ao aumento de salários é mais que acertado que os trabalhadores se unam para reagirem a sua baixa. Uma das formas de se evitar a redução dos salários é a luta dos trabalhadores. Para negar essa conclusão Weston teria que negar sua premissa e admitir que os salários por serem fixos não podem subir, mas podem abaixar sempre que aprouver a vontade dos capitalistas. Nesta altura do texto, Marx se indaga se os preços das mercadorias são determinados pela vontade dos capitalistas ou por leis econômicas e circunstâncias que se faz prevalecer a essa vontade? Ele responde, que a vontade é um princípio muito arbitrário para explicar ou para se elevar ao estatuto de lei da economia política. Em suma, o argumento do Weston se resume a dizer que qualquer aumento de salários conquistados pelos trabalhadores será respondido com um aumento no preço das mercadorias por parte dos capitalistas. Por exemplo, se os trabalhadores pagavam antes do aumento 4 no valor das mercadorias de primeira necessidade, depois do aumento passariam a pagar 5. Marx vai pressupor para seu argumento que não há alteração nas forças produtivas, no trabalho e no capital investido e nem no valor do dinheiro em que estão expressos os valores dos produtos, embora só haja mudanças nas taxas de salários. Assim, ele indaga: de que maneira poderia esta alta de salários influir nos preços das mercadorias? Somente influindo na proporção real entre a oferta e a procura dessas mercadorias (MARX. 2010.p.45). Vejamos então as variações entre oferta e procura levando em consideração que só a taxa de salários aumentou. Marx começa constatando que a classe operária gasta grande parte de sua renda em artigos de primeira necessidade. Assim sendo, o aumento de salários levaria a um aumento da procura e esse aumento da procura levaria ao aumento dos artigos de primeira necessidade. Logo, estaria comprovado que o aumento dos salários leva a um aumento dos preços das mercadorias. Porém, o que aconteceria com os capitalistas que não produzem artigos de primeira necessidade? Estes não poderiam aumentar o valor de suas mercadorias já que a procura por elas havia caído. Diminuída a sua renda, menos teriam para gastar em artigos de luxo, com o que também se reduziria a procura recíproca de suas respectivas mercadorias. Qual seria a consequência desta diferença entre as taxas de lucro dos capitais colocados nos diversos ramos da indústria? O capital e o trabalho se deslocariam dos ramos menos remunerativos para os que o fossem mais. E este processo de deslocamento iria durar até que a oferta em um ramo industrial aumentasse a ponto de se nivelar com a maior procura e nos demais ramos industriais diminuísse proporcionalmente à menor procura. Uma vez operada esta mudança, a taxa geral de lucro voltaria a igualar-se nos diferentes ramos da indústria (MARX. 2010. p.46). Quando se constata que uma taxa de lucro é maior em um determinado ramo da economia, opera-se uma redistribuição do trabalho e do capital. Quando isso ocorre, os capitais migram para aquele setor que está obtendo maiores taxas de lucro. Isso posto, se aumenta a oferta deste setor gerando, por conseguinte, a diminuição dos preços relativos das mercadorias e o aumento temporário de preços volta ao seu estado de equilíbrio ou abaixo do seu valor. Portanto, como todo esse desarranjo obedecia originariamente a uma simples mudança na relação entre a oferta e a procura de diversas mercadorias, “cessando a causa, cessariam também os efeitos, e os preços voltariam ao seu antigo nível e ao antigo equilíbrio.” (MARX. 2010.p.46). O que se mostrou a partir da pressuposição de Marx é que o aumento da taxa de salários não produz uma elevação dos preços de forma duradoura no conjunto da economia, já que Marx pressupôs que não houve alteração nas forças produtivas. Agora, se nós pressupormos que os trabalhadores não consomem só artigos de primeira necessidade “seria inútil que nos detivéssemos a demonstrar que seu poder aquisitivo havia experimentado um aumento real. Em síntese, não haveria aumento da procura, visto que o incremento da procura de um lado seria contrabalançado pela diminuição da procura do outro lado” (MARX. 2010.p.47). Logo, não haveria aumento geral de preços. O que o aumento da taxa de salários produz nessas circunstâncias é a diminuição da taxa de lucro. Segundo Marx, todo o argumento de Weston assim se resume: todo aumento da procura se opera sempre à base de um dado volume de produção. Portanto, não pode fazer aumentar nunca a oferta dos artigos procurados, mas unicamente fazer subir o seu preço em dinheiro (MARX. 2010.p.51). Após expor que os meios de pagamento monetário (notas promissórias, letras de câmbio, papel-moeda) variam e se adequam com as necessidades da circulação de mercadorias, Marx diz: Deveria ter-se informado das leis que permitem aos meios de pagamento adaptar-se a condições que variam de maneira tão constante em lugar de converter a sua falsa concepção das leis da circulação monetária em argumento contra o aumento dos salários (MARX. 2010.p.55). 2.Oferta e procura: o dogma dos economistas Oferta e procura é o dogma máximo dos economistas e do senso comum. Basicamente, é ela que é utilizada para explicar os preços tanto das mercadorias, quanto do “trabalho”, embora o que não se explica, é qual a lei econômica que regula oferta e procura. De acordo com Marx, seria errado acreditar que oferta e procura regulam o preço do trabalho ou de qualquer outra mercadoria. O que oferta e procura fazem é tão somente regular as oscilações temporárias dos preços no mercado. Elas explicam porque o preço de um artigo no mercado se eleva acima ou desce abaixo do seu valor, mas não explicam jamais esse valor em si mesmo (MARX. 2010.p.57). Em suma, quando a curva de oferta se equilibra com a curva de procura, a saber, como dizem os economistas, quando chegamos ao ponto de equilíbrio, cessa a capacidade explicativa dessa lei. Se ela me explica as oscilações do valor das mercadorias, ela nada tem a dizer sobre o próprio valor. Por conseguinte, se queremos investigar o caráter deste valor, não nos devemos preocupar com os efeitos transitórios que a oferta e a procura exercem sobre os preços do mercado. E outro tanto caberia dizer dos salários e dos preços de todas as demais mercadorias (MARX. 2010.p.57). Vai dizer Marx, que todo argumento de Weston pode ser resumido no seguinte dogma: “os preços das mercadorias são determinados ou regulados pelos salários". Isso posto, significa dizer: “Como o salário não é mais do que uma denominação do preço do trabalho, queremos dizer com isso que os preços das mercadorias se regulam pelo preço do trabalho” (MARX. 2010.p.59). Weston se move em meio ao círculo vicioso, em virtude de, ora colocar que o valor do trabalho determina o valor das mercadorias, ora o valor do trabalho é determinado pelos preços das mercadorias que ele pode comprar. O dogma de que " os salários determinam os preços das mercadorias" equivale a dizer que "o valor se determina pelo valor". Visando fugir dessa falta total de lógica, Marx no restante do manuscrito passará a expor sua teoria do valor e da mais-valia. 3. A Teoria do Valor e da Mais-valia Destarte, Marx diz que é chegada a hora de entrar no verdadeiro tema da contenda – o que é o valor de uma mercadoria e como se determina esse valor? Primeiro, devemos diferenciar o valor da mercadoria do seu valor de troca. Este, é só a proporção de determinada quantidade da mercadoria que será trocada por outras mercadorias. Por exemplo: x da mercadoria A, que se troca por y da mercadoria B. Portanto, para início de conversa devemos distinguir, ou melhor abstrair, das mercadorias, suas propriedades físicas e químicas, para encontrar algo que seja comum às mercadorias, posto que do ponto de vista da qualidade, as mercadorias são distintas e também apresentam proporções distintas que se expressam nas trocas. Marx usa o exemplo do trigo: x de trigo equivale a y de seda, z de ferro etc. mas, na troca, elas expressam algo de igual. Como os valores de troca das mercadorias não passam de funções sociais delas e nada têm a ver com suas propriedades naturais, devemos antes de mais nada perguntar: Qual é a substância social comum a todas as mercadorias? É o trabalho. Para produzir uma mercadoria tem-se que inverter nela ou a ela incorporar uma determinada quantidade de trabalho (MARX. 2010.p.62). Após abstrair as propriedades naturais da mercadoria só resta nela que é dispêndio de trabalho humano, mas não simplesmente de qualquer trabalho, mas trabalho social. Quanto mais trabalho tiver uma mercadoria mais valor ela terá. Mas, como se medem as quantidades de trabalho? Pelo tempo que dura o trabalho, medindo este em horas, em dias etc. Alguém poderia dizer que quanto mais preguiçoso e demorado for o trabalhador nos seus afazeres mais valor ele acrescentará à mercadoria. Errado, por trabalho social Marx entende o trabalho que está condicionado por certo desenvolvimento das forças produtivas, i.e., trabalho necessário para produzir essa mercadoria num dado estado social e sob determinadas condições sociais médias de produção, com uma dada intensidade social média e com uma destreza média no trabalho, de tal forma que, se uma indústria, com o nível de desenvolvimento médio da produtividade do trabalho, leva duas horas para produzir uma cadeira, seu tempo de trabalho socialmente necessário, que expressará seu valor, será independente se um economista liberal leve a vida toda para produzir o mesmo objeto. Além disso, para calcularmos o valor da mercadoria, temos que acrescentar o trabalho passado que está materializado nas matérias-primas, nas máquinas, em suma, os objetos que são desgastados no ato da produção e transferem seu valor para o produto final. Em síntese, o valor das mercadorias é determinado pela substância social cristalizada nelas, ou seja, o trabalho. Já seu valor de troca é determinado pela quantidade dessa substância social medida pelo tempo médio de sua duração. Enfim, o preço é só a expressão em dinheiro do valor das mercadorias. Se oferta e demanda se equilibra, as mercadorias serão vendidas pelo seu valor, ou como vai dizer Marx no livro III d’ O Capital: pelos seus preços de produção. Se oferta e demanda não se equilibram, as mercadorias podem ser vendidas abaixo ou acima de seu valor. Mas, no longo prazo, tendem a se equilibrar. Dessa forma, o capitalista se enriquece vendendo a mercadoria pelo seu valor. Afinal, se ele vendesse acima de seu valor e todos os outros capitalistas fizessem o mesmo, o que ele ganharia na venda perderia na compra. “As verdades científicas serão sempre paradoxais, se julgadas pela experiência de todos os dias, que somente capta a aparência enganadora das coisas” (MARX. 2010, p.68). Após determinar o valor das mercadorias pelo tempo de trabalho socialmente necessário, Marx pergunta o que determina o “valor do trabalho”? Marx começa advertindo que o que o trabalhador vende não é o seu trabalho e sim sua força de trabalho, cedendo ao capitalista o direito temporário de uso dessa força de trabalho. Se não fosse assim, o regime capitalista teria restituído a escravidão. Para que os capitalistas encontrem no mercado homens livres só possuindo sua força de trabalho para vender, Marx diz ser preciso investigar o que os economistas chamam "acumulação prévia ou originária", mas que deveria chamar-se expropriação originária. Remeto o leitor que quer se aprofundar nessa temática para o capítulo XXIV do Livro I d’ O Capital. Na sociedade burguesa, os produtores diretos foram expropriados dos seus meios de produção. Em razão disso, a mercadoria força de trabalho se encontra em abundância no mercado. O que nos interessa aqui, é como determinar o valor dessa mercadoria? O valor da mercadoria força de trabalho é determinado como o de qualquer mercadoria pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção e reprodução. Nesse viés, ele precisa de certa quantidade de meios de subsistência para si e sua família, condição para que sua prole se reproduza como trabalhadores. Distintas forças de trabalho levam distintos tempos de trabalho social para serem produzidas e reproduzidas. Logo, elas têm distintos valores, já que umas levam mais tempo do que as outras para serem produzidas. Desse modo, elas têm distintos preços. Marx conclui essa parte, dizendo: “Pedir uma retribuição igual ou simplesmente uma retribuição justa, na base do sistema assalariado, é o mesmo que pedir liberdade na base do sistema da escravatura” (MARX. 2010. p.71). De posse destes desdobramentos, podemos ter a compreensão da mais-valia. Como o que o trabalhador vende é a sua força de trabalho durante determinado período de tempo, ou seja, durante uma jornada, vamos pressupor que nosso operário trabalhe 6 horas para si e isso corresponda ao valor de 10 reais, o necessário para comprar as mercadorias para reproduzir sua força de trabalho diária. No entanto, o capitalista comprou a força de trabalho para uma jornada de 12 horas. Nesse sentido, ele trabalha mais 6 horas e agrega mais 10 de valor ao longo da jornada. “Além das 6 horas necessárias para recompor o seu salário, ou o valor de sua força de trabalho, terá de trabalhar outras 6 horas, a que chamarei horas de sobre trabalho, e este sobre trabalho irá traduzir-se em mais-valia e em sobre produto” (MARX.2010 p. 79). O capitalista desembolsou 10 de salário e se apropriou de um valor de 20. Se somarmos a isso, que o capitalista gastou com meios de produção: máquinas, matérias-primas e instalações, um valor de 10, seu produto final valerá 10 de salários e 10 de meios de produção, que terão seus valores transferidos ao produto final e 10 de mais-valia que foi agregado pelo trabalhador ao longo da jornada. A esse 10 de mais-valia, o capitalista não pagará equivalente algum. Aqui, o mecanismo da força de trabalho é revelado e a origem do lucro do capitalista se mostra: a força de trabalho é a única mercadoria que, ao ser consumida, produz mais-valor do que ela própria vale. “Este tipo de intercâmbio entre o capital e o trabalho é o que serve de base à produção capitalista, ou ao sistema de salariado, e tem que conduzir, sem cessar, à constante reprodução do operário como operário e do capitalista como capitalista” (MARX. 2010, p. 79). Nessa sociedade é possível calcular o grau de exploração dos trabalhadores. Marx chamou de taxa de mais-valia, no nosso exemplo, a relação entre o valor do salário 10 sobre a mais-valia 10. Temos, assim, uma taxa de exploração de 100%. Na sequência, após explicar o que é a mais-valia, Marx retorna à expressão “valor do trabalho” e demonstra porque essa expressão é enganosa e mistificadora. No capitalismo, se criou a ilusão de que o capitalista, ao pagar a força de trabalho, está pagando pela totalidade do trabalho e o que a análise da mais-valia expõe é que o capitalista se apropria, de forma gratuita, do sobre trabalho ou, como as traduções contemporâneas do capital utilizam, do mais-valor. Marx faz um comparativo da sociedade capitalista com a escravidão. Na escravidão, o trabalho forçado oculta que o senhor de escravos tem que pagar a parte da jornada referente à reprodução da força de trabalho do escravo. O trabalho aparece o tempo todo como trabalho não pago. Marx salta para o camponês da idade média. Nesta, o camponês tem que trabalhar três dias para si e três dias para o senhor feudal. Uma parte da sua produção fica com ele e a outra parte ele é obrigado a entregar de graça ao Lorde. Os liberais ficam indignados moralmente com este fato, como fala Marx, já que no caso da sociedade feudal o trabalho pago e o não pago aparece visível, embora “no primeiro caso, o trabalho não remunerado é visivelmente arrancado pela força. No segundo, parece entregue voluntariamente. Eis a única diferença” (MARX.2010, p. 82). Por isso, a expressão “valor do trabalho” é enganosa e equivocada, haja vista que ela oculta que na sociedade capitalista o mais-valor, que se tornará o lucro, é apropriado pelo capitalista totalmente de graça. Enfim, o capitalista obtém lucro vendendo a mercadoria pelo seu valor. Nesta altura da exposição, já podemos determinar que o que comumente nós chamamos de lucro, juros e renda [2 não passa de formas em que a mais-valia é dividida na sociedade burguesa. Aqui, Marx critica a teoria vulgar dos fatores de produção, segundo a qual o trabalho se remunera pelo salário, a terra se remunera pela renda e o capital pelo lucro. Como podemos ver, essa é uma teoria fetichista que atribui, às coisas, propriedade social, ocultando que essas partes são as formas que a mais-valia assume ao longo das relações capitalistas. “Por isto, desta relação entre o empregador capitalista e o operário assalariado depende todo o sistema de salariado e todo o regime atual de produção” (MARX. p. 86). À guisa de conclusão Marx, ao final do texto, passa a falar da luta pelo aumento de salário e contra sua redução. Desse modo, começa retomando a definição de valor da força de trabalho e os 2 vetores que a determinam: são esses o físico, a quantidade de meios de subsistência que deve consumir e o outro, de caráter histórico e social. A luta de classes tem peso na definição de quanto os capitalistas devem nos pagar pela exploração diária, visto que “o capitalista está tentando constantemente reduzir os salários ao seu mínimo físico e a prolongar a jornada de trabalho ao seu máximo físico, enquanto o operário exerce constantemente uma pressão no sentido contrário” (MARX.2010. p. 99). Marx vai dizer que, em 99% dos casos, a luta pelo aumento de salário se faz para mantê-lo de pé e impedir que ele abaixe ao mínimo. Portanto, “ao mesmo tempo, e ainda abstraindo totalmente a escravização geral que o sistema de salariado implica, a classe operária não deve exagerar, a seus próprios olhos, o resultado final destas lutas diárias. Não deve esquecer-se de que luta contra os efeitos, mas não contra as causas desses efeitos” (MARX.2010. p. 102). Vale salientar: “em vez do lema conservador de: "Um salário justo por uma jornada de trabalho justa!", deverá inscrever na sua bandeira esta divisa revolucionária: "Abolição do sistema de trabalho assalariado!". NOTAS 1, Estamos usando a edição online de Trabalho Assalariado e Capital. Salário, Preço e Lucro. Editora: Expressão Popular. Ano: 2010. Conservação estado de novo. Edição:2; Páginas:142; Edição online. A paginação difere da do livro físico. 2. No livro III d’ O Capital, Marx faz uma análise pormenorizada do capital portador de juros e da renda terra. REFERÊNCIAS MARX, Karl. Trabalho Assalariado e Capital. Salário, Preço e Lucro. Editora: Expressão Popular. Ano: 2010. Conservação estado de novo. Edição:2; Página:142; Edição “on line”.
- Lukács contra Adorno: a crítica do formalismo na música
por Arthur D'elia Juan Gris - Guitar and Newspaper UM BREVE E NECESSÁRIO AGRADECIMENTO: Preciso aqui dizer que o presente texto não seria possível sem as contribuições e pontos levantados pelo meu querido amigo Eduardo Galeno. Sobretudo no que tange a canção Disparada que foi aqui analisada e acima de tudo acerca dos limites do pensamento de Adorno. INTRODUÇÃO A partir do pensamento de Lukács no que tange a estética musical, é possível contrapor o modo como opera Adorno. Demonstrando assim a necessidade de se afirmar o realismo estético e o caráter desfetichizador da obra de arte. No pensamento de Adorno há uma regressão a uma concepção que, ao invés de criticar a tendência ao fetiche na música no interior do modo de produção capitalista, enaltece (de modo consciente ou não) tal tendência que é marcada pelo formalismo e completo desligamento perante os conteúdos da realidade social. Que este texto, caso consiga ser efetivo do ponto de vista ontológico, possa contribuir para futuras análises envolvendo a música. A ESTÉTICA MUSICAL DE ADORNO Em Adorno, a música constitui a manifestação imediata do instinto humano (ADORNO, 1996). Seria um modo privilegiado de formalização do que não se deixa expressar diretamente, ou seja, a música possui uma distância para com o horizonte conceitual do mundo dos objetos (SAFATLE, 2007). Porém, uma grande problemática surge no momento em que a música adentra na sociedade impetrada pelo modo de produção capitalista. Nela, em dado momento do século XX, o indivíduo passa a ser mero espectador passivo e desinteressado com relação àquelas obras que se condicionam ao padrão costumeiro (ADORNO, 1996). Com relação a esse fator, ligado a alguns tipos artísticos, de modo complicado à ideologia burguesa, como observa Horkheimer e Adorno: Formas fixas como o sketch, a história curta, o filme de tese, o êxito de bilheteria são a média, orientada normativamente e imposta ameaçadoramente, do gosto característico do liberalismo avançado. (HORKHEIMER e ADORNO, 1985, p. 63) Com isso, dentre outras coisas, o indivíduo consome o que é “sucesso”, conhecido por todos (por conseguinte, o que é posto pelos trustes do mercado da arte) e, assim, existe um desprezo pelo valor inerente da música. Diante disso, tem-se o predomínio daquilo que é mero entretenimento, atrativo e que recusa as reflexões trazidas pela arte como forma autônoma (ou não). Assim sendo, há, nesse fenômeno, uma regressão auditiva, fruto da degeneração oriunda da massificação da música enquanto resultado da Indústria Cultural. Sobre os ouvintes, tem-se que: (...) os ouvintes aprenderam a não dar atenção ao que ouvem, mesmo o próprio ato da audição. Tal observação é contestável quanto ao valor publicitário da música. Mas é essencialmente verdadeira quando se trata da compreensão da própria música (ADORNO, 1996, p. 67). Configura-se, nesse caso, uma distração por parte do ouvinte e, mais especificamente, sua liberdade subjetiva é abalada pela coação coletiva, que molda o seu gosto particular enquanto indivíduo. É o que Adorno chama de ouvinte de entretenimento. O comportamento valorativo musical torna-se, assim, mera ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas (ADORNO, 1996). Acerca da canção de sucesso, importante notar que: O mais conhecido é o mais famoso, e tem mais sucesso. Consequentemente, é gravado e ouvido sempre mais, e com isto se torna cada vez mais conhecido. A própria escolha das produções-padrão orienta-se pela “eficácia” em termos de critério de valor e sucesso que regem a música ligeira ou permitem ao maestro de orquestra famoso exercer fascínio sobre os ouvintes de acordo com o programa (ADORNO, 1996, p. 75). Tem-se com isso que a cultura de massas, subordinada às leis do consumo que as mass media imbuem à sociedade de classes, acarreta na regressão da capacidade auditiva dos ouvintes de se atentarem à musicidade, à prosódia e à poética de dada canção. Trata-se da forma musical, então, como mera mercadoria, como valor de troca. É essa “inutilidade” estética que caracteriza o produto de massas ao ser destinado tão somente ao consumo e entretenimento. Sendo assim, o agradável não passa de uma imagem de um imperativo que se esconde sob o manto da dominação classista, que vai além, chegando até ao cume da cognição, da relação que determinado indivíduo tem para uma música. Além da produção de massas (que Adorno, erroneamente, fala com o conceito de música ligeira. O mais correto, e o utilizado neste artigo, é produção de massas), existe, por outro lado, o que Adorno denomina de música “séria”: [...] Assim como a música séria, desde Mozart, tem a sua história na fuga da banalidade e como aspecto negativo reflete os traços da música ligeira, da mesma forma presta ela hoje em dia testemunho, nos seus representantes mais credenciados, de sombrias experiências, que se prefiguram, carregadas de pressentimentos, na despreocupada simplicidade da música ligeira (ADORNO, 1996, p. 72). Adorno demonstra como originalmente a música séria se caracterizava pela fuga da banalidade. Tal coisa diz respeito ao que comumente se chama de música erudita. No entanto, ainda que consiga romper com todo o aspecto banal, ela acaba levando consigo elementos da música ligeira por estar submetida à lógica do consumo, do mercado e padronização (ADORNO, 1996). Assim como a forma-canção, a música de erudição, que trabalha com aspectos diferentes de criatividade, também se viu como herdeira da mistificação da arte, na qual se pode falar, sem pestanejar, mercadológica. Diante do que foi exposto até aqui, considerando o processo de liquidação do indivíduo mediante o consumo da música submetida à lógica do mercado, no qual se tem um comodismo com o que é barato e de fácil absorção, pode-se falar rapidamente sobre o que seria a solução adorniana para essa comunicabilidade mutilada pela Indústria Cultural. A música subversiva, conhecida como arte autônoma na teoria adorniana, se opõe ao conformismo e não foi criada para ser mero objeto de prazer ou entretenimento (ADORNO, 1996). Um exemplo desse tipo de música que se volta a esse estado de coisas é a de vanguarda, cabendo ressaltar Arnold Schönberg. Duarte nos diz acerca dele que “[...] simboliza a recusa da música erudita em compactuar com o nascente sistema de industrialização e comercialização em massa dos bens culturais [...]” (DUARTE, 2007, p. 106). Segundo Adorno, Arnold Schönberg se coloca na contramão da banalidade advinda do culto pela canção da moda ou até mesmo pela música erudita, que iria virar, no século passado, expressão do mais profundo preconceito provindo das classes sociais dominantes. Na década de 20, em Viena, é criado o dodecafonismo, resultado das mais diversas relações e contradições ideológicas da sociedade burguesa na arte contemporânea. Não à toa, a música dodecafônica vai, junto com a poesia aleatória de Stéphane Mallarmé e a filosofia de Ludwig Wittgenstein, de encontro às inovações ideológico-societárias trazidas pelo pós-1848, o ano do primeiro combate armado entre burguesia e proletariado. O dodecafonismo de Schönberg preza a substituição da hierarquia de notas (sistema tonal) pela ordenação dodecafônica, numa escala em que uma nota não pode ser utilizada até que todas as outras tenham sido também. Isso significa, pela mediação do “gosto” comum, que, ao contrário da canção de sucesso marcada pela repetitividade, sua obra não pode ser degustada ou consumida como valor de uso dentro do universo coercivo do império do mercado da cultura. Sendo assim, a chamada arte autônoma, configurada em termos que desatam a sociedade do seio da criação artística, fazendo com que o feitor de dada obra se recalque do contexto do prosaísmo social, se desloca como condição primeira para a emancipação dessa comunicação extremamente defasada cuja identidade encontra-se no cancioneiro de massas, como nos gêneros brasileiros funk, sertanejo universitário e axé music (para falar de modo sucinto, há um problema gigantesco em chamar esses tipos de gêneros que, um dia, não sofreram a degeneração mercantil de hoje. Mas esse assunto não é o deste artigo). Importante frisar que esse fenômeno não significa necessariamente uma busca pela art pour l'art, mas apenas a demarcação da arte como causa sui, isto é, autolegislada, como teoriza o uspiano: [...] em prol da noção de autonomia como advento de uma forma capaz de reconfigurar os modos naturalizados de determinação da sensibilidade, abre-se espaço para a redefinição do que devemos entender por agência livre e emancipada. (SAFATLE, 2020, p. 190) O que a citação está lutando contra, em muitos casos, é em relação ao fetiche outorgado e imanente no bojo da industrialização dos bens culturais. O que caracteriza o fetichismo é justamente a relação fragmentária/orgásmica que o ouvinte tem em sua própria experiência de ouvir música. Significa uma incapacidade de captar a totalidade da obra artística, submetendo toda uma sociedade ao jugo do místico, do isolado, da incapacidade de reter uma significação para si enquanto humano. Tal como o fetichista, que destrói de maneira metonímica a mulher para poder gozar dos traços isolados de seu corpo, o ouvinte moderno se encontraria na posição de gozo fascinado por momentos parciais, o que o desobrigaria de reconstruir a totalidade. (SAFATLE, 2007, p. 378) Tem-se que o total perde seu caráter de importância, gerando um dilaceramento da feitura, por exemplo, de uma canção que perde sua tonalidade formal em prol de sua veia letrista (ou vice-versa). Esse fator se dá de tal modo que, se isolar uma parte da obra, sua integralidade fica descaracterizada. Por consequência, entre os ouvintes da cultura de massas, impulsionados a consumirem canções marcadas pelo repetitivo e maçante, por certo imediatismo de escuta de elementos que desintegram tanto a subjetividade do ouvinte como a objetividade da obra, implicando no distanciamento que aliena a audição. O ouvinte vítima da regressão auditiva se acostumou com entretenimento barato; sendo aterrorizante para ele qualquer esforço mais elaborado que exija maior reflexão e concentração no que tange a obra artística (ADORNO, 1996). MÚSICA E FETICHE DA MERCADORIA Mediante o que foi dito até o momento, o que caracteriza o fetichismo é a desfiguração, tornando a relação com o objeto artístico alienante e fazendo com que se abra um leque de possibilidades que separam valor de troca e obra de arte autêntica. Não somente como entretenimento, mas como ouvinte de consumo cultural é que se dá essa problemática, como nos casos das pessoas que ouvem música erudita por determinação de prestígio social, resultando no preconceito e afastamento de tudo aquilo que cheire popular (não especificamente massificante). Acerca desse fator, tem-se que: Este é o verdadeiro segredo do sucesso. É o mero reflexo daquilo que se paga no mercado pelo produto: a rigor, o consumidor idolatra o dinheiro que ele mesmo gastou pela entrada num concerto de Toscanini. O consumidor “fabricou” o sucesso (...) não porque o concerto lhe agradou, mas por ter comprado a entrada (ADORNO, 1996, p. 78). Portanto, o caráter fetichista da mercadoria reside na veneração do que é autofabricado na qualidade de valor de troca, no qual se aliena tanto do produtor quanto do consumidor. Nesse âmbito, o valor de uso é retirado dos homens na medida em que o valor de troca veste a fantasia de um objeto de prazer. Pode-se afirmar que os consumidores se tornam escravos dóceis das mercadorias. Ainda sobre o caráter fetichista, Adorno coloca que: O conceito de fetichismo musical não se pode deduzir por meios puramente psicológicos. O fato de que “valores” sejam consumidos e atraiam os afetos sobre si, sem que suas qualidades específicas sejam sequer compreendidas ou apreendidas pelo consumidor, constitui uma evidência da sua característica de mercadoria (ADORNO, 1996, p. 77). Importante notar que Adorno relaciona o fetiche a uma espécie de veneração pelo valor de troca que impossibilita a captação das qualidades da obra como mercadoria e de reconhecer o seu valor de uso. No entanto, essa compreensão do fetiche da mercadoria não corresponde ao que foi elaborado por Karl Marx em sua obra O capital. As categorias de valor de uso e de troca serão expostas a seguir, bem como o fetiche da mercadoria no texto marxiano. A utilidade de uma coisa torna-a um valor de uso. No interior da mercadoria, essa utilidade se efetiva no uso ou consumo, condicionada por suas propriedades (MARX, 2017). Já o valor de troca aparece inicialmente como uma proporção em que valores de uso de um tipo são trocados por valores de uso de outro tipo (MARX, 2017). Para que um objeto vire valor de uso é necessário que, por meio da troca, ele seja transferido a outrem, para quem vai servir como valor de uso (MARX, 2017). Importante notar que as propriedades físicas das mercadorias são frutos do trabalho humano. O trabalho é responsável por conferir valor às mercadorias. Na mercadoria enquanto valor de troca, os valores de uso são abstraídos, restando apenas o fato de serem produtos do trabalho humano (MARX, 2017). Tem-se, por fim, um trabalho abstrato como aquele que confere valor (MARX, 2017). É preciso ressaltar também que na relação entre valor e valor de uso, necessariamente nenhum objeto pode ser valor sem ser valor de uso. Já o contrário acontece. Se uma coisa fruto do trabalho humano é inútil, também o é o trabalho nela contido, não possuindo assim valor (MARX, 2017). Sobre o outro aspecto, note-se que propriedades naturais como o ar não possuem valor, mas ainda assim constitui valor de uso por sua utilidade (MARX, 2017). Não é o objetivo do presente texto explicitar profundamente o que está na obra O capital, mas apenas explicar o que comparece na reflexão sobre o modo como a música aparece na sociedade capitalista. Com relação ao fetichismo da mercadoria, Marx aponta que: O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores (MARX, 2017, p. 147). Dá-se com o fetiche da mercadoria que as relações entre homens aparecem a eles como mera relação entre coisas. Ao passo que os produtos do trabalho aparecem dotados de vida própria. Não se deve entender o fetiche apenas como uma “veneração” no sentido religioso com que Charles de Brosses, escritor francês que utilizou o termo para exemplificar as religiões feiticistas da costa africana, mas como um fato real que comparece na sociedade capitalista concretamente. Para entender como se dá o processo descrito por Marx, Lukács explica que: (...) no ser social, antes de tudo na esfera da economia, cada objeto é, por essência, um complexo processual; este se apresenta, contudo, no mundo fenomênico, com frequência como objeto estático, claramente definido; com isto o fenômeno torna-se aqui fenômeno justamente ao permitir desaparecer para a imediaticidade o processo ao qual deve sua existência como fenômeno (LUKÁCS, 2018, p. 317). Importante notar que esse “aparecer” inerente ao fetiche da mercadoria se caracteriza justamente pelo plano mais imediato fazer desaparecer a essência que seria a relação social entre seres humanos no interior da esfera produtiva (LUKÁCS, 2018). Ainda que o fenômeno só venha a ser devido à já citada essência (LUKÁCS, 2018). Tem-se com isso que o “aparecer” corresponde aos momentos reais no interior da sociedade capitalista, que são os da coisificação dos homens e da naturalização de aspectos sociais frutos do trabalho nos objetos produzidos. A essência refere-se aos momentos de continuidade (LUKÁCS, 2018). Dessa maneira, o fenômeno corresponde aos momentos efêmeros, de ruptura com o processo (LUKÁCS, 2018). A partir do que foi exposto, percebe-se que tal “aparência” nada tem a ver com “veneração” ou alguma ilusão subjetiva, mas se caracteriza como um momento da realidade, como aquilo que é efêmero no interior do movimento do real. No caso do fetichismo, o fenômeno vem à tona de modo imediato. Após explicitar o caráter do fetiche da mercadoria, pode-se agora demonstrar, em oposição a Adorno, o papel desfetichizador da música mesmo fazendo parte do jogo mercadológico capitalista. Primeiramente, é preciso externar o posicionamento de Theodor Adorno em linhas rápidas. Em um vídeo do YouTube de uma entrevista sua na década de 1960, Adorno polemiza ao enunciar que a canção de protesto, aquela que remete diretamente a um problema social (normalmente vindo de um governo autocrático), seja inócua em essência: Na verdade, eu acredito que as tentativas de reunir protesto político e música popular – ou seja, música de entretenimento – estão arruinadas desde o início pelas seguintes razões: toda a esfera da música popular, mesmo onde se reveste de roupagem modernista, é de tal modo inseparável do caráter de mercadoria, da míope fixação com o divertimento, do consumo, que as tentativas de atribuir-lhe uma nova função permanecem inteiramente superficiais. E tenho de dizer que quando alguém se envolve e, por qualquer razão, acompanha os choramingos musicais cantando uma coisa ou outra sobre a Guerra do Vietnã ser insustentável... Eu acho que, na realidade, é essa canção que é insustentável. Porque, ao pegar o horrendo e torná-lo de alguma forma consumível, ela acaba arrancando dele algo como qualidades consumíveis. (1) Obviamente que, no século XX – o século da canção –, houve uma gama de fundamentos que possibilitou as ideias concebidas na fala de Adorno, como nos casos em que a barbárie foi comercializada em formas artisticamente concebidas como agressivas e socialmente vistas como protestos (os casos de bandas de punk, metal e etc., por exemplo, detidamente transformadas em consumo rentável para a indústria fonográfica em larga escala na história). Mas o conceito adorniano é generalizante e um tanto funcionalista. Sabe-se que a canção propriamente não subsiste apenas pelos mesmos elementos que a engendraram: ela, apesar de ser fruto explícito e condição necessária, no Brasil e em outros lugares, de autenticação do Estado-nação, superou e continua superando as particularidades burguesas através da crítica dos costumes, da política, da economia, enfim, da sociedade humana como tal. Pode-se dizer que, apesar de acertada a noção de Adorno de que a canção (a arte, no geral. Ou, para ir mais fundo, tudo, já que não é necessário nem mencionar que até ícones revolucionários, Mao Tsé-Tung e Che Guevara, foram postos, juntos com sopas enlatadas e estrelas no cinema estadunidense, como propostas de quadros da pop art de Andy Warhol e vendidos com preços na casa dos milhões) pode ser comercializada e comercializar a luta humana contra a barbárie do capital, deve-se perceber que nem sempre (ou quase nunca, a depender) ela usufrui do aparato qualitativo comercial capitalista. Podem-se vislumbrar exemplos claros no período da ditadura militar-empresarial, como na canção Disparada, escrita por Gerado Vandré e Théo de Barros e interpretada por Jair Rodrigues, acompanhado pelo Trio Marayá e o Trio Novo, no Festival de Música Popular Brasileira de 1966. Nela, por meio de sons da viola e do barulho ensurdecedor da plateia, Jair ganhou o prêmio de 15 milhões de cruzeiros. Segue a letra integral da canção: Prepare o seu coração Pras coisas que eu vou contar Eu venho lá do sertão Eu venho lá do sertão Eu venho lá do sertão E posso não lhe agradar Aprendi a dizer não Ver a morte sem chorar E a morte, o destino, tudo E a morte, o destino, tudo Estava fora do lugar E eu vivo pra consertar Na boiada já fui boi, mas um dia me montei Não por um motivo meu Ou de quem comigo houvesse Que qualquer querer tivesse Porém por necessidade Do dono de uma boiada Cujo vaqueiro morreu Boiadeiro muito tempo Laço firme, braço forte Muito gado e muita gente Pela vida segurei Seguia como num sonho Que boiadeiro era um rei Mas o mundo foi rodando Nas patas do meu cavalo E nos sonhos que fui sonhando As visões se clareando As visões se clareando Até que um dia acordei Então não pude seguir Valente lugar-tenente De dono de gado e gente Porque gado a gente marca Tange, ferra, engorda e mata Mas com gente é diferente Se você não concordar Não posso me desculpar Não canto pra enganar Vou pegar minha viola Vou deixar você de lado Vou cantar noutro lugar Na boiada já fui boi Boiadeiro já fui rei Não por mim nem por ninguém Que junto comigo houvesse Que quisesse o que pudesse Por qualquer coisa de seu Por qualquer coisa de seu Querer mais longe que eu Mas o mundo foi rodando Nas patas do meu cavalo E já que um dia montei Agora sou cavaleiro Laço firme, braço forte De um reino que não tem rei De início, sua temática aponta para a interpretação de uma pessoa, homem do sertão, que vê a morte (o destino) sem chorar, cuja forma era costumeira naquele lugar onde habitava. E que, com a apresentação do eu-lírico, quando tudo estava fora do lugar, ele estava ali para consertar. Prepare o seu coração Pras coisas que eu vou contar Eu venho lá do sertão Eu venho lá do sertão Eu venho lá do sertão E posso não lhe agradar Aprendi a dizer não Ver a morte sem chorar E a morte, o destino, tudo E a morte, o destino, tudo Estava fora do lugar E eu vivo pra consertar No próximo momento, depois da explícita introdução, o eu-lírico, que provavelmente vive em um lugar e espaço diferentes daquele onde a narrativa se passa, diz ter feito parte de um grupo cuja qualidade era a mesma de uma boiada. Por pura necessidade, assim, ele monta a si mesmo e parte para o mesmo lugar de onde o antigo vaqueiro estava, dando a entender que se transformava em “cuidador” dos bois. Na boiada já fui boi, mas um dia me montei Não por um motivo meu Ou de quem comigo houvesse Que qualquer querer tivesse Porém por necessidade Do dono de uma boiada Cujo vaqueiro morreu No terceiro caso, já posto como boiadeiro há muito tempo, se sentia como um rei. Mas a particularidade dessa estrofe é distinta das outras: o eu-lírico agora não fala sobre boiada, posição que homogeneizava um grupo e que ele já fez parte, mas sobre "gado" (animal) e "muita gente" (humano), dando a entender que sua consciência já estivesse distinta mesmo com a posição atual. Boiadeiro muito tempo Laço firme, braço forte Muito gado e muita gente Pela vida segurei Seguia como num sonho Que boiadeiro era um rei Na estrofe seguinte, com um tempo da música mais rápido (como um galope de cavalo) e agressivo e com o canto marcado pela expressão de gritos de ordem, o personagem, depois do mundo girar bastante, se vê com as visões clareando, até que, por fim, um dia ele acorda do sono em que estava sonhando. Mas o mundo foi rodando Nas patas do meu cavalo E nos sonhos que fui sonhando As visões se clareando As visões se clareando Até que um dia acordei Por conseguinte, em total contraposição ao seu estado como substituto no processo de líder da boiada (de gado e gente), se vê desistindo de tudo o que fez porque não podia mais seguir adiante vendo aquela situação de tratamento dos humanos como gados. Então não pude seguir Valente lugar-tenente De dono de gado e gente Porque gado a gente marca Tange, ferra, engorda e mata Mas com gente é diferente No diálogo que o eu-lírico tem com quem escuta sua canção, diz ele que não pode cantar mentiras e, se caso não acreditasse no que tanto falava de modo dramático, ele iria contar sua história vivida em outro lugar. Se você não concordar Não posso me desculpar Não canto pra enganar Vou pegar minha viola Vou deixar você de lado Vou cantar noutro lugar Na penúltima estrofe, o homem que já foi boi e boiadeiro, cita que sua transformação não foi porque quisesse nem por causa de outrem, mas por necessidade e algo maior que todos. Na boiada já fui boi Boiadeiro já fui rei Não por mim nem por ninguém Que junto comigo houvesse Que quisesse o que pudesse Por qualquer coisa de seu Por qualquer coisa de seu Querer mais longe que eu Na última parte, talvez o ponto mais crucial da narração, o narrador-personagem, não mais boi nem boiadeiro, mas agora cavaleiro, dá seu veredito sobre os problemas supracitados da narração. Mas o mundo foi rodando Nas patas do meu cavalo E já que um dia montei Agora sou cavaleiro Laço firme, braço forte De um reino que não tem rei Por razões óbvias, sabe-se que a significação semiótica de uma canção perpassa pela heterogeneidade de interpretação do ouvinte, do crítico, do músico etc. Variando o grau, por exemplo, de consciência de determinada pessoa acerca de um texto, de seu intertexto e contexto, se dá a razão sígnica subordinada àquele aparato formal (letra, canto, harmonia, melodia etc.). Assim, para fornecer os devidos apontamentos sobre a Disparada, cujo sucesso foi estrondoso nos anos 60 e ainda hoje é um marco histórico para a Música Popular Brasileira, precisa-se, em primeiro momento, falar sobre o conteúdo do sentimento cultural e artístico daquela época. Importante mencionar, para isso, o conceito de Raymond Williams de estrutura de sentimento. Segundo Ridenti, comentando a forma com que o autor marxista britânico analisa a cultura, diz que “uma estrutura de sentimentos daria conta de significados e valores tais como são sentidos e vividos ativamente” (RIDENTI, 2006, p. 230). Isto é, na década de 1960, mais especificamente a partir da década que a precede (1950), artistas e intelectuais sabidamente de esquerda seguiram o rumo de uma visão romântica para com os problemas advindos do capitalismo, do valor de troca, da cega expansão do mercado mundial em países periféricos, como o Brasil, onde estavam inseridos. Nessa estrutura de agir e pensar o Brasil, com a busca por uma brasilidade do povo, atitude agressivamente nacionalista e antiimperialista, a esquerda se viu, muito antes até do golpe dos militares e empresários em 1964, com uma forte hegemonia na cultura e na arte, levando o romance, a poesia, o teatro, a música popular, a pintura, a arquitetura, o cinema etc., já formados com muitos toques do modernismo de 1922, a patamares superiores e jamais vistos em termos de agitação no país tupiniquim. Os orixás e os mitos brasileiros, os caboclos, as pessoas escravizadas pelos colonos europeus, enfim, todos os grupos étnicos que participaram da formação brasileira no período pré-capitalista, junto com seus costumes, sentimentos e pensamentos, entram na linha de combate à aberração imperialista que assolava o mundo inteiro, em específico à América Latina. Geraldo Vandré, um dos compositores mais importantes desse período, admirador dos guerrilheiros que acabaram com a ditadura de Fulgêncio Batista em Cuba, não estaria longe desse sentimento-pensamento que emerge nas fileiras do Partido Comunista, dos centros de cultura populares e do movimento estudantil. Não à toa, como o leitor já deve ter percebido toda a relação entre a letra e o período histórico em que ela foi feita, a canção Disparada segue um modelo de composição de problemas da esquerda nacional-popular e romântica. Muito provavelmente, nela, o que está sendo narrado, apesar das muitas interpretações, é a evolução de consciência (e, consequentemente, do agir) de um sertanejo pobre, que, como boi de uma boiada (alegoria que compara a vida de um boi e uma pessoa como igual, dado o tratamento que ambos têm no sertão marcado pelo latifúndio e o atraso dos tempos coloniais), segue como boiadeiro (explorador tanto do boi em si como da boiada alegorizada [muita gente]), chegando a ser cavaleiro (dono de si mesmo) num reino que não tem rei (aqui se pode verificar uma imagem que pode significar o resultado de um ato revolucionário, possivelmente em comunhão com o conceito de extinção do poder, isto é, da destruição da força que o boiadeiro tem contra a boiada). Para uma crítica a Adorno, conforme situada a explicação da obra de Vandré e Barros, interpretada por Jair, pode-se objetivar que, se a música popular de protesto ganha qualidades mercantis ao entrar no mundo do mercado da cultura e da arte, fazendo dela um fenômeno inútil, então, em consequência a isso, nada do que a sociedade produz contra, hoje, à barbárie capitalista, pode ser positiva. Até mesmo revoluções como a de Cuba, que, por infelicidade causal, acabou sendo capitaneada ao jogo da comercialização da luta e de ícone revolucionário, encontrando tal exemplo no perfil de Ernesto Guevara estampado nas camisetas, fruto da exploração laboral que cada vez mais amplia o trabalho abstrato para o horizonte humano. É mais do que certo que a proporção da crítica adorniana encontra seu respaldo na realidade, coisa já indicada neste artigo. Porém, o que se discute aqui são sua generalização e seu funcionalismo que nada dizem de exato a essas questões de cultura resistente, acabando, querendo ou não, para a defesa de fetiches ainda mais problemáticos. Tem-se, então, que a canção reflete seu tempo e seu espaço, obtendo êxito em refletir os problemas humanos ou não a partir de sua formalização. O reflexo estético da realidade se caracteriza pela tendência a dissolver fetiches ou complexos fetichizantes que comparecem no curso da evolução humana, os quais se tornam operantes nas práxis cotidianas (LUKÁCS, 1970). O modo como a música vai realizar o processo de desfetichização será descrito de forma mais acurado posteriormente. Importa aqui agora uma explicação sobre a dupla mimese musical. A ESTÉTICA MUSICAL DE LUKÁCS A música se caracteriza por uma objetividade indeterminada em relação ao mundo externo. Isso significa que sua distância à vida, o fato de seu meio criativo não ter nada a ver com a realidade objetiva dada, pode aparecer imediatamente como mimese, isto é, como mímica não diretamente refletida pelo aparato objetivo (mundo). No entanto, ao mesmo tempo, existe proximidade com a vida na medida em que aparentemente expressa sem mediação a essência mais íntima e subjetiva do ser humano (LUKÁCS, 1970). Diante disso, o meio criativo da música pode fazer vigorar os afetos e sentimentos humanos sem qualquer impedimento, exprimindo-lhes com uma pureza única. Esse processo é viabilizado pelo caráter da música como modo humano autônomo, que se separa de outras artes logo no momento em que essa mimese dos sentimentos provocados pela vida cotidiana, ou seja, essa reprodução de uma reprodução, é ativada para representar o objeto específico de sua própria natureza, cuja transformação é intimamente própria, destacada do vínculo direto que a une à ocasião real que a suscita. Como já explicado, a música busca a vida interior humana, o mundo afetivo, sentimentos, pensamentos e emoções. Porém, tais coisas sintetizadas na música não são aquelas encontradas na vida cotidiana, e sim uma reprodução artística desses sentimentos que supera os encontrados na cotidianidade (XAVIER, 2018). Ainda com relação a esse fator: No reflexo de caráter afetivo importa menos a própria realidade objetiva do que as reações do sujeito frente a ela: importa mais as impressões do indivíduo sobre o mundo do que o mundo em si; a vida interior mais do que a exterior. Portanto, já que voltado para o sujeito, o mundo afetivo atua mais como reflexo do próprio reflexo que o sujeito faz da realidade do que como reflexo da realidade em si. (XAVIER, 2018, p. 73) Há de se notar que os sentimentos e emoções são mimeses espontâneas da realidade objetiva, enquanto o reflexo estético é mimese consciente (XAVIER, 2018). Desse jeito, a música se configura como uma mimese da mimese, uma imitação da imitação da vida cotidiana. Ainda acerca da problemática: Uma vez que os sentimentos e emoções têm prioritariamente a dimensão subjetiva do indivíduo como centro organizador, a vida interior como objeto, o consequente “afrouxamento” de suas ligações com o mundo externo faz com que a realidade objetiva refletida no mundo afetivo não seja uma objetividade determinada. (XAVIER, 2018, p. 73) Dessa maneira, está posto o caráter de objetividade indeterminada. A negação de uma reprodução direta e imediata da realidade objetiva por parte do reflexo artístico visa trazer à tona uma dimensão da realidade que mostra uma particularidade especificamente humana (XAVIER, 2018). Portanto, a mimese musical não trabalha com objetos imediatos ou diretamente com a realidade objetiva, fazendo surgir uma objetividade indeterminada. Para tanto: Na música não é possível encontrar um paralelo direto entre determinado conjunto de notas ou outros elementos da forma musical (os princípios de organização das notas, as melodias e harmonias, o ritmo, os timbres, as dinâmicas etc.) e determinado objeto ou situação da realidade objetiva (XAVIER, 2018, p. 78). De acordo com o que foi exposto até aqui, pode-se considerar o seguinte: é essa distância da música com relação à realidade o fator que mais irá aproximá-la do real. Como já foi mencionado anteriormente, a mimese musical parte dos sentimentos e emoções humanos perante a realidade concreta. Trata-se de, pela via sensível, de modo imediato como as demais obras de arte, expressar aquilo que melhor representa a essência humana. Aqui, a essência humana surge de modo imediato. É o comparecimento do aspecto fenomênico da essência (XAVIER, 2018). De modo a aprofundar o caráter desfetichizador da obra de arte, especificamente o caso da música, torna-se fundamental explicar as categorias de espaço e tempo. Na música, existe o predomínio completo do aspecto temporal. Nisso se põe uma impossibilidade de encontrar, objetivamente, sua presença no espaço. Tem-se assim uma distinção, por exemplo, com relação às esculturas. Nestas há um predomínio do aspecto espacial (LUKÁCS, 1970). Porém, é importante notar que, na música, segundo a perspectiva lukácsiana, apesar de não se circunscrever propriamente em um “espaço”, há uma categoria que é unicamente subjetiva, ainda que preserve sua origem objetiva: o quase-espaço (HENRIQUE, 2015). (...) a experiência musical, com o transcorrer do tempo, resguarda características de movimento, em que o momento exato da audição, não simultâneo, traz em seu interior as determinações do passado, assim como constrói o chão daquilo que é futuro, sendo também simultâneo e possibilitando uma série de sínteses que estabelecem na estrutura uma noção quase-espacial. Funda-se aí uma referencialidade recíproca entre momentos temporalmente separados, que evocam no receptor, uma dialética contraditória entre o sucessivo e o simultâneo. Devido a essa unidade contraditória ser baseada na reverberação da estrutura da música na subjetividade, não se configura uma espacialidade real, mas um quase-espaço subjetivo, inerente ao meio homogêneo temporal e relacionado à experiência sensível de recepção da música (HENRIQUE, 2015, p. 11-12). No interior da experiência musical, então, a relação entre sucessivo e simultâneo pode ser descrita do seguinte modo: dada a passagem temporal que sinaliza a presença das características do movimento, no momento exato, imediato e não simultâneo da audição, entram em cena os aspectos que pertencem ao passado e, também, a construção do que está para vir-a-ser (ou futuro). Nesse caso, considerando a passagem temporal presente na experiência musical, tem-se a vigência do que é simultâneo, trazendo à tona através de sínteses uma noção quase-espacial em sua estrutura. A partir do que foi exposto até aqui, importante notar que há uma “referencialidade recíproca entre momentos temporalmente separados”. Isso significa que, na experiência musical, no decorrer da sucessão temporal, opera a simultaneidade, constituindo uma evolução que se liga a um fator da vida, que é o da irreversibilidade do tempo (HENRIQUE, 2015). É devido a esse aspecto evolutivo que confronta o presente com o passado e leva à baila um momento futuro que a música pode cumprir com seu potencial desfetichizador, não se tratando assim de um puro e simples movimento. Na sucessão temporal presente na recepção da música, ocorre uma tendência à realização de cada aspecto particular, de cada momento do tempo, de modo simultâneo. Presente, passado e futuro, representados na música, são justapostos como experiência vivida sem que sua essência originária seja destruída, tornando-se uma totalidade temporal que representa a superação do subjetivismo sobre o tempo (LUKÁCS, 1970). É essa “superação” que marca o processo de evolução já mencionado. Acerca dessa utilização da música na homogeneização temporal, importante notar que: (...) dado o caráter autoconsciente da arte, as bases desse movimento irreversível se fazem nela representados, sensíveis, de modo que a simultaneidade criada pelo quase espaço e vivenciada como momento torna possível a realização plena da dialética que permite comparar o simultâneo e o não simultâneo latente, a passagem do tempo, a mobilidade que se impõe de modo absoluto e ilimitado. (HENRIQUE, 2015, p. 12-13) Trata-se de um processo de iluminação das relações entre o antes, o agora e porvir, potencializando seus significados. O processo de desfetichização, portanto, ganha corpo a partir da categoria de quase-espaço. Ela contribui para a ação que ressalta que a possibilidade da audição imediata e a experiência temporal bastem como reflexo desfetichizador da realidade. Isso porque ocorre a restituição da inteireza do mundo em sua própria estrutura, tendo assim a possibilidade de uma reconfiguração estética dos sentimentos humanos do mundo que nos rodeia e dos efeitos deste sobre nosso interior (HENRIQUE, 2015). O que permite considerar, assim, a música como uma arte mimética (HENRIQUE, 2015). A música como arte mimética é possível na medida em que se tem o reconhecimento de um conteúdo alcançado pela percepção do que é e não é simultâneo por meio do quase-espaço. Isso não implica afirmar que se trata de uma reflexão direta dos objetos concretos existentes no mundo que rodeia o ser humano, mas sim na conformação da realidade já refletida em sua vida interior; construída pela estrutura musical, que é agora forma e conteúdo, reflexão mimética do humano e das relações dinâmicas da existência (HENRIQUE, 2015). Após a exposição de como se dá o processo desfetichizador na música segundo Lukács, pode-se agora retomar a perspectiva adorniana e demonstrar seus equívocos com relação ao papel da música enquanto arte no interior do capitalismo. A começar pela rejeição, por parte de Adorno, da teoria do reflexo, significante a não se voltar às exigências empíricas do mundo exterior (TERTULIAN, 2010). OS PROBLEMAS DA TEORIA ADORNIANA AO REJEITAR A TEORIA DO REFLEXO A mimese, segundo Adorno, está ligada à realidade social mutilada (SAFATLE, 2007). Com isso, a crítica imanente no interior da obra deve buscar a não-identidade através da confrontação com os materiais fetichizados (SAFATLE, 2007). Tem-se, dessa maneira, uma concepção totalmente distinta de Lukács. A música na estética adorniana não possui a função de trazer aspectos essenciais humanos presentes no devir humano, mas sim de não reproduzir artisticamente o real. Trata-se de uma postura radicalmente negativa perante a possibilidade de reprodução e superação estética dos momentos fenomênicos a partir da evidenciação do que é mais essencial ao devir humano. Considerando as distintas abordagens dos já mencionados autores, pode-se agora analisar de que modo a música no interior do sistema capitalista se encontra. (...) o que Lukács está destacando como o caráter alienador da música no capitalismo não é outra coisa senão essa tendência a não superação da singularidade dos sentimentos e emoções na experiência estética da música. É nesse sentido que o filósofo se refere a – irromper a particularidade (Partikularität). Para ele, a produção musical nas condições capitalistas possui uma tendência em considerar a subjetividade imediata e circunscrita ao âmbito da vida privada de um indivíduo o centro da organização da obra artística e do efeito dessa obra, promovendo, assim, uma falsa elevação desse mundo afetivo meramente singular à condição de particularidade estética (Besonderheit). Isso faz com que a experiência estética não seja uma aproximação do indivíduo à riqueza afetiva do gênero humano, mas sim um reencontro, no interior da obra, da vida afetiva meramente singular com ela mesma. (...) (XAVIER, 2018, p. 108). Desse modo, no capitalismo, ao invés da fruição da riqueza do gênero humano, há uma experiência que ressalta os afetos de um indivíduo singular no interior de sua vida cotidiana, que é marcada pelo fetiche. Ainda com relação a essa tendência: (...) a produção musical do período capitalista possui como uma de suas tendências e inclinação a uma elaboração artística relativamente despreocupada com os problemas concretos da vida interior humana (conteúdo), gerando assim uma obra que não eleva esse conteúdo às máximas possibilidades, mas sim o estagna, na medida em que se atenta somente às problemáticas da forma (XAVIER, 2018, p. 109). Além de trazer aspectos referentes à vida cotidiana de um indivíduo singular, a música no capitalismo assume uma postura de hipervalorização da forma, desprezando as grandes questões que fazem parte da interioridade humana, tornando-se vazia de conteúdo. São necessárias mais algumas considerações para posteriormente se discorrer sobre como é possível haver dentro do capitalismo um processo de desfetichização por meio da música. Mais adiante, será retomada também uma questão levantada por Adorno, a saber, sobre a “regressão” da audição. Para respondê-la, será utilizada a investigação de Marx acerca da sensibilidade humana nos seus Manuscritos econômico-filosóficos. No que tange ao problema do fetichismo musical, Lukács assinala para a tendência ao formalismo. Há de se notar que tal fato diz respeito à desvinculação da música da vida real humana, que é a base na qual emerge a música (XAVIER, 2018). Para melhor evidenciar isso: Uma das principais maneiras que podemos encontrar o fetichismo na música é através do formalismo, isto é, por meio da perspectiva de que o conteúdo da música não tenha relação com qualquer outra coisa senão com os próprios elementos da forma musical; de que a música possa ser uma forma ― pura, ou de que seu conteúdo emane exclusivamente do trabalho formal com os componentes da música. Um dos motivos para que isso ocorra deriva da própria natureza da mimese musical, especialmente sensível às problemáticas da forma. Sua peculiaridade estética, a de erigir seu conteúdo a partir da negação do reflexo de qualquer elemento imediatamente encontrado na vida exterior humana, faz com que sua forma pareça completamente desligada da realidade objetiva (XAVIER, 2018, p. 111). Desse modo, o formalismo se caracteriza pela perspectiva dos elementos formais da música, dos seus componentes como ritmo, harmonia etc. trazerem por si mesmos o conteúdo da própria obra musical. Sua peculiaridade estética residiria justamente naquilo que Adorno defende, a saber, a negação do reflexo de qualquer elemento que se possa encontrar na sociedade do valor de troca. Trata-se da já mencionada rejeição da teoria do reflexo. Essa tomada de posição é intitulada por Lukács como um fetichismo na música. A posição de Adorno tem por base o entendimento de que na modernidade, com a Indústria Cultural, se enfrente uma dominação ideológica por meio do consumo de bens culturais massivamente distribuídos, pseudodemocraticamente diluídos na sociedade, inclusive entre as massas (FIANCO, 2017). Sendo assim, a obra de arte, para ser efetiva, deve buscar uma não-identidade com essa realidade social marcada pela submissão dos bens artísticos à Indústria, reduzindo estes a mero entretenimento. A crítica adorniana à sociedade moderna se constitui como um movimento de total rejeição. Bem como a negação da ideia de progresso que é tão ligada ao iluminismo. Trata-se, nesse âmbito, de uma posição em comum com Nietzsche. Tanto Adorno quanto Nietzsche, segundo Fianco, não conseguem perceber alguma “positividade” presente na modernidade (FIANCO, 2017). De acordo com o que foi exposto, tem-se que a arte deve opor-se a tudo que indique figuração e representação. Mas, no entanto, sua autonomia reside na fuga à mera imitação (CAIRES CORREIA; PERIUS, 2017), não exatamente à adoção de um ponto de vista que seja exterior à sociedade. Adorno, quanto a isso, é bem claro: A arte é obrigada a confrontar-se com o fetiche devido à realidade social. Ao mesmo tempo em que ela se opõe à sociedade, ela não é, no entanto, capaz de adotar um ponto de vista que seja exterior à sociedade (ADORNO, 1973, p. 201). Não tão longe dessa investigação acerca do modo de produção capitalista está a análise da sensibilidade humana. Já foi exposta a preocupação de Adorno com relação ao que ele denomina de regressão da audição. Essa regressão, se liga ao processo de massificação da música em que a liberdade subjetiva do indivíduo é perdida por uma falsa democracia cultural. Tem-se também o fato de que a música submetida à lógica do mercado converte-se em mero entretenimento, tendo em si o comodismo, repetitividade, imediatismo e a fácil absorção. Não é errada a preocupação envolvendo a sensibilidade humana, principalmente em se tratando do modo de produção capitalista na qual a reificação assume um patamar mais generalizado. Marx realizou alguns apontamentos de tal modo que percebeu o seguinte: um indivíduo destroçado pelo seu trabalho ou com excessivas preocupações não conseguirá fruir do mais belo espetáculo (MARX, 2010). Sua sensibilidade estética encontra-se atrofiada devido ao cotidiano social coisificador, como é o caso na sociedade burguesa. Do mesmo modo, poder-se-ia dizer que um comerciante de minerais não consegue perceber a beleza natural do mineral ou sua particular natureza, mas sim vê apenas nele um bem de valor mercantil (MARX, 2010). Considerando os apontamentos de Marx, pode-se afirmar que, para a fruição estética (como de uma música), é necessário certo desenvolvimento da sensibilidade humana. Após a exposição dos argumentos marxianos, é possível agora analisar o processo de regressão da audição adorniano. Inicialmente, se destaca o processo de massificação da música, na qual Adorno vê com maus olhos. No entanto, tal desenrolar é fruto da universalização criada pelo mercado. As músicas no interior do sistema capitalista tornam-se também mercadoria e, por isso, para que chegue aos “ouvintes”, é necessária a mediação via mercado. Basta recordar como o advento do mercado mundial também, de certo modo, unificou a humanidade (LUKÁCS, 2018). Conectada à inserção da música na lógica de mercado, está o processo de maior demanda para com determinadas músicas, abafando outras. Isso significa também que a música de “sucesso” ou o álbum de “sucesso” tornam-se requisitadas por certa “coletividade” que a admira. Nisso, está a posição que Adorno traça em que a coletividade sufoca a liberdade subjetiva devido a seus imperativos. Uma errônea posição, visto que o desenvolvimento da sensibilidade de determinado indivíduo pode ser dificultado pelas relações promovidas pela lógica capitalista. Basta recordar a anterior menção a Marx com relação à sensibilidade e como esta é prejudicada pela incessante jornada de trabalho ou pela lógica do lucro. Considerando a já explicada perspectiva adorniana em que a música submetida à lógica do mercado tem como características o imediatismo, comodismo, repetitividade e fácil absorção, tais coisas, já demonstradas na análise sobre Disparada e sobre a demonstração de como uma feitura cancioneira (ou música) pode quebrar o fetichismo da forma-mercadoria, não podem ser vistas como necessariamente corretas. Ainda segundo Adorno, a tendência da individualidade no interior do capitalismo dominado pela Indústria Cultural é a de uma fuga para com músicas mais complexas e demonstração de certa impaciência para absorção de algo que exija maior reflexão. Mediante estas considerações, Adorno conecta o que seria uma “obra de arte” com a necessidade de possuir certo nível de complexidade e requisitar de quem a “acessa” maior nível de reflexão. Essa postura condiz com sua recusa à teoria do reflexo que acaba por lhe jogar ao já citado formalismo. Isso porque, nas músicas em que o conteúdo é inexistente, resta apenas tentar captar o que está em jogo pelo entendimento das estruturas formais, o que requisita do indivíduo maior capacidade conceitual e reflexiva. Adorno nega o papel da categoria de quase-espaço que é o de criar a possibilidade da audição imediata mais à experiência temporal como forma de reflexo desfetichizador da realidade. Pelo contrário. Adorno recorre a uma posição contrária àquela que se poderia chamar realista na estética em decorrência que, para ele, a aquisição do conceito estético requer a posse de conceito não-estético (ZANGWILL, 2017). CONSIDERAÇÕES FINAIS Para aqui agora contrapor à visão adorniana, é preciso ressaltar que o desenvolvimento histórico-social é desigual e contraditório. Isso é evidente na medida em se atenta para o seguinte: tendencialmente, a música que pode ser considerada uma obra de arte na sociedade marcada pelo modo de produção capitalista aparece como mercadoria. Porém, tal como já foi explicado, a função da música enquanto obra de arte é realizar o processo de desfetichização, promovendo assim um salto qualitativo na sensibilidade humana, fazendo o indivíduo ir em direção a uma dimensão afetiva autenticamente humana. Em segundo lugar, partindo do que acaba de ser dito, é possível perceber a relação entre aparência e essência que marca a música enquanto obra de arte. Se, por um lado, ela aparece como mercadoria; por outro, a sua essência corresponde ao que se tem de mais autenticamente humano. Ainda com relação a isso, importante destacar que tal obra de arte que inicialmente aparece como mercadoria consegue ir de encontro aos próprios fetichismos da vida cotidiana e da lógica reificadora da sociedade capitalista que a transforma em mercadoria por meio de sua essencial função enquanto obra de arte. Além disso, é válida também a contradição envolvendo o desenvolvimento da sensibilidade humana para fruição estética na sociedade capitalista, de modo que, com a difusão em larga escala das obras de arte pela universalidade do mercado, e nisso se inclui a música, tem-se uma maior possibilidade de acesso a tais obras à totalidade do gênero humano. No entanto, como já foi dito, os imperativos do capital que começam a fazer parte da totalidade da reprodução social na sociedade capitalista, coisificando tudo que for possível por meio da transformação em mercadoria, acaba por dificultar o desenvolvimento da sensibilidade humana (sensibilidade alienada). Basta citar novamente o cansaço promovido pelas longas jornadas de trabalho, as preocupações oriundas de uma péssima condição de existência e a sobreposição da necessidade de reprodução do capital acima dos interesses de toda a humanidade. Dessa maneira, se, de um lado, o surgimento e a unificação promovida pelo mercado mundial culminaram numa maior possibilidade de acesso às obras de arte mesmo que aparentemente como mercadorias e, por conseguinte, de um desenvolvimento sensível dos indivíduos. Por outro lado, há os imperativos do capital que dificultam o desenvolvimento da sensibilidade humana. Pode-se dizer, diante disso, que, por mais que a tendência seja a de obstrução da sensibilidade, existe ainda assim a possibilidade de um desenvolvimento sensível. Outra contradição presente é a que envolve a superação do capitalismo por meio de uma revolução de caráter comunista, com o ser humano não ficando mais alienado de si mesmo e sua generidade for colocada como ampla. Contraditoriamente a isso, está o cotidiano alienado da sociedade burguesa que impede o gênero humano de se tornar para si ou consciente de si (LUKÁCS, 2018). Alienação essa que pode ser definida como um obstáculo ao devir humano (LUKÁCS, 2018). Sendo assim, a arte seria um meio em que os indivíduos poderiam fruir de tal universalidade (XAVIER, 2018). Esse processo de encontro com a generidade humana através da arte, Lukács denomina catarse. A catarse pode ser caracterizada como uma experiência de verdadeira realidade da vida humana. Quando confrontada com a experiência da vida cotidiana, ocorre a purificação das paixões ou uma reconfiguração estética dos sentimentos humanos REFERÊNCIAS ABREU, Thiago Xavier de. Música e educação escolar: contribuições da estética marxista e da pedagogia histórico-crítica para a educação musical. Doutorado, educação escolar, Universidade Estadual Paulista, 2018. ADORNO, Theodor. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996. 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- A função da crítica: engajamento ou resignação?
Sísifo, de Tiziano, 1549 O destino do Brasil se configurou em uma incurável patologia que se engendrou ao longo de décadas. O esforço cambaleante das agitações sociais progressistas, noutra via, não é o significante de uma “massa crítica” em ação; o que significa, em verdade, é sua falência. Seu conteúdo esvaziou. A opacidade do discurso antibolsonarista, até aqui, apenas serviu para oferecer o medo da verborragia do tal fascismo, que sequer pisou nas terras tupiniquins (1). A resignação vigora como suspiro derradeiro de uma morte premente (2). Durante décadas, correu-se do lado oposto da crítica para não “fazer o jogo da direita”. Enquanto a direita, sempre atabalhoada e cínica, mas sabendo o que jogar, tomou para si a tarefa crítica que a esquerda deixou-lhe escapar: não ter medo em dizer seu próprio nome. Eis um ato de resignação que a esquerda se adentrou. Com isso, a luta pela construção de uma sociedade pautada na supressão do capitalismo hoje se tornou um sonho distante para nossa engajada esquerda. A crítica que outrora era ponto de chegada, não é mais que um composto amargo e subjetivo da postura militante. A resignação não é o subjacente à ausência crítica, mas a crítica demonstra a clareza necessária para entender a resignação. Enquanto o “engajamento” se afirma diante da necessidade da ação, esse momento apenas serve para espelhar a si próprio, refletindo paradoxalmente tal incorporação da resignação. A pessoa engajada precisa se valer de seus interesses pessoais ou coletivos (na prática cotidiana ideologicamente direcionada) para compelir o ímpeto revolucionário. Sua tarefa é estar a serviço da revolução, ainda que ela esteja tão distante quanto o entendimento de nosso fracasso. É o diagnóstico de Schwarz: Quase todos estamos empenhados, suponhamos, na administração pública, nalgum partido, num departamento da universidade, numa firma de pesquisa, num sindicato, numa associação de profissionais liberais, no ensino secundário, num setor de relações públicas, numa redação de jornal etc., com o objetivo nem sempre muito crível de usar os nossos conhecimentos em favor de alguma espécie de aperfeiçoamento e modernização (3). Por outro lado, há aqueles que recusam o papel da crítica, pois ela não estaria à serviço de um engajamento. Talvez exija por esperarmos a “hora certa” de criticar, já que há muito o que fazer por agora. Essa recusa da crítica, entretanto, já pressupõe o cinismo distorcido, que efetivamente valida a justificação dessa falência. O erro da anticrítica, consistirá, sobretudo, em pensar que suas ideias estariam num grau de plausibilidade maior do que outras – ou de necessidade da sua crença própria. O que importa, no final, é o “engajamento”. A esquerda, no seu ínterim, ao permanecer na derrota, ratifica seu preconceito em reconhecer que o formalismo liberal é o corolário de seus problemas. Ao pintar conjuntamente a “revolução” como inviável ou dependente de uma “etapa” – como se a revolução fosse uma “escalada” da “dialética real” ou da “correlação de forças” (sic) –, nossa esquerda, agora resignada, reconfigura a si mesma como um mero perfume em merda. É a partir dessa forma de se manipular, por meio da forma social capitalista, cuja recolocação dos pressupostos contrários às suas aspirações mundanas se figura: dessa vez, agora, já obsoletas – e o que resta é o “engajamento”. Se a revolução social seria coisa do passado (a despeito do engessamento da burocracia socialista do séc. XX), mesmo que nossa realidade insista em dizer o contrário para os sujeitos engajados, restou-nos o abstrato espaço da “luta por direitos” – agora cada vez mais esparsos. Por isso, a crítica faleceu: porque virou um predicado sem sujeito, pois aquilo que dava sua dinâmica vital enquanto potência, perdeu-se no ato da resignação. A ironia resulta da subjetividade reconhecida entre um conteúdo aparente, inicialmente vazio. O que resta não é somente a derrota, mas o vazio da crítica – uma negatividade crônica numa sociedade, cujo fardo histórico lhe sobrou apenas sua recusa de ver o estado de coisas, reavivando uma “estetização da vida”. (4) Perdemos não porque a chancela da derrota foi protocolada, mas porque protocolamos a chancela da derrota. Não seria mais conveniente efetuar da potência crítica à práxis ao invés de insistir na ação de sua falência? Doravante a má fé na burocracia, no Estado, nos partidos de esquerda, etc. seriam o meio de sobrevivência nos conflitos sociais postos e mediados, mas que hoje a sobrevivência se tornou o entrave da mediação postulada. As fraseologias sem conteúdo apresentam cada vez mais um horizonte inalcançável. Em resumo, a crítica perdeu seu real espaço, porque foi substituída pelo engajamento profundo das “análises” políticas pautadas pela reabsorção do que há de mais podre na República: suas instituições. Portanto, decretar a falência da crítica não nos coloca na posição privilegiada de um crítico resignado, apenas mostra que a crítica precisa de uma posição desprivilegiada diante daqueles valentes engajados. Quem sabe ela ficou lá em 1964, e agora, em “2022”, voltará? Até lá, a crítica não será ressuscitada, a menos que ela aguente a nova derrota. E os engajados que se cuidem: há sempre algo pior para vir. Se o socialismo é uma possibilidade histórica, não menos o será quando os erros passados nos forem apontados e também do desfecho catastrófico do “socialismo real” no final do séc. XX fique evidenciado. Com isso, compreende-se tanto no marxismo enquanto teoria, quanto na análise do objeto, isto é, no empreendimento de transformação social, possam remete-se à crítica, e não em defesa esteticamente apaixonada de simulacros da vida social reificada (5). A crítica sofre, enfim, sua derradeira falência: visando sempre o “menos pior”, terceirizaram-na para um Brasil compostos por gestores da anunciada catástrofe, enquanto o papel real da crítica espera seu próximo avião da salvação. Usando das palavras de Schwarz: “Acredito aliás que a crítica independente, sem patrocinador nem interesse direto à vista, é o que mais nos está fazendo falta” (6). Eis o papel da crítica: ela não se submete ao interesse caricatural do militante, pois ela mesma não se resigna diante disto. É a sua antítese. Será preciso dizer que quem se resigna diante do quadro conjuntural atual não é aquele que promulga o “engajamento” (uma recusa prática do papel da crítica)? Se crítica tem uma função, um papel que lhe é próprio atualmente, de fato ela dispensará tamanho engajamento. Diante da imediaticidade tacanha, têm-se aos montes aqueles que desistiram do projeto da revolução social, bem como os que desordenadamente lutam por ela sem saber o caminho. Sobre ambos, a sociabilidade do capital surge como barreira intransponível. A resposta, no entanto, não está no bradar da revolução, mas em saber qual é o caminho para ela. O papel da crítica não é apenas rejeitar a sociabilidade do capital, pois a tarefa é de caráter positivo: precisamos construir um projeto socialista factível, nos despir das fraseologias e apresentar com toda a clareza: qual sociedade queremos, como faremos para construí-la e como essa se sustentará. Um projeto dessa magnitude exige uma crítica radical às relações sociais do capital, tarefa difícil, mas sem a qual não sairemos do lugar. Assim, quando a função da crítica voltar a exercer seu papel, toda superstição deixará de fazer sentido (7). NOTAS 1. Não se quer dizer que no Brasil nunca tenha havido alguns pequenos grupelhos de delinquentes, relevantes apenas quando aparecem no jornal por terem cometido algum crime abominável, sendo recebidos com completa desaprovação, adeptos ao nazifascismo de Hitler e Mussolini. Fora esses facínoras desprezíveis, não há vestígios de fascismo no Brasil, ao menos de forma relevante, a ponto de apresentar-se como uma via de desenvolvimento do capital por aqui nas terras tupiniquins. 2. Ver: ADORNO, Theodor. “Resignação”. Tradução e apresentação Felipe Catalani. São Paulo, Cadernos de Filosofia Alemã, v. 23, n. 1, 2018. 3. SCHWARZ, Roberto. “Nunca fomos tão engajados”. In. __________. Sequências Brasileiras: ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 1999, p. 176. 4. KURZ, Robert. A indústria cultural no século XXI. Disponível em: < http://www.obeco-online.org/rkurz406.htm?fbclid=IwAR1SKCHOWErfCEZ_iF1zdyoI42uUbprI1ni2Q_gtuv6U3e1tOqeC_BuZDdk >. Acesso em: 24 de março de 2022. “A ideologia da estetização tornada forma de vida real não deve ser confundida com a estética em si. A questão não é que cada conteúdo encontre a sua adequada forma de expressão ou de exposição, para o que podem ser desenvolvidos critérios. Em vez disso, é a forma estética que se autonomiza como se viu contra o conteúdo e rebaixa este à sua forma de manifestação acidental e não essencial. É esta inversão, implantada e consumada pela forma totalitária da mercadoria na arte e na cultura, que constitui o programa da estetização”. 5. SOUSA, Wesley. “As duas faces da revolução”. Fortaleza, Cadernos do GPOSSHE On-line, v.6, n. 1, 2022, p. 57. 6. SCHWARZ, Roberto. “Nunca fomos tão engajados”, 1999, p. 176. 7. LUKÁCS, György. “Conversando com Lukács”. Tradução Giseh Vianna. São Paulo: Instituto Lukács, 2014 REFÊNCIAS ADORNO, Theodor. “Resignação”. Tradução e apresentação Felipe Catalani. São Paulo, Cadernos de Filosofia Alemã, v. 23, n. 1, p. 107-115, 2018. KURZ, Robert. A indústria cultural no século XXI. Disponível em: < http://www.obeco-online.org/rkurz406.htm?fbclid=IwAR1SKCHOWErfCEZ_iF1zdyoI42uUbprI1ni2Q_gtuv6U3e1tOqeC_BuZDdk >. Acesso em: 03 de abril de 2022. LUKÁCS, György. Conversando com Lukács: Entrevista a Leo Kofler, Wolfang Abendroth e Hans Holz. Tradução Giseh Vianna. São Paulo: Instituto Lukács, 2014. SCHWARZ, Roberto. “Nunca fomos tão engajados”. In: ______________. Sequências Brasileiras: ensaios. São Paulo: Cia das Letras, p. 172-177, 1999. SOUSA, Wesley. “As duas faces da revolução: introdução à György Lukács e Rosa Luxemburgo como teóricos do socialismo”. Fortaleza, Cadernos do GPOSSHE On-line, v. 6, n. 1, p. 29-60, 2022.
- JK e a Reversão da Taxa de Lucros
Por Igor Dias Domingues de Souza O presente texto sintetiza os aspectos teóricos e conclusões centrais do trabalho de pesquisa “As Metas da Acumulação: o governo JK (1956-1961) e o crescente das Taxas de Lucros na acumulação do pós-guerra” 1.1- De 1929 a 1950: uma breve trajetória da economia mundial No início do século XX, a Europa se encontra como centro do capitalismo mundial, principalmente devido à sua posição histórica enquanto incubadora do modo de produção capitalista (MARX, 2017a, p. 785-834). Tal colocação se torna de suma relevância para a compreensão da dinâmica econômica que se desenvolverá a partir de 1945 com o fim da Segunda Grande Guerra, uma vez que, tendo seu território sido devastado pelo conflito, bem como pelo elevado número de baixas ocorridas de 1939 a 1945, a burguesia dos países europeus perde sua hegemonia global, emergindo os Estados Unidos da América como grande potência econômica capitalista em oposição à União Soviética, que deixa os anos de guerra fortalecida no assim chamado bloco socialista. O enfraquecimento das economias dos países capitalistas na Europa Ocidental se torna, dessa maneira, uma ameaça para a sustentação da influência norte-americana sobre os países europeus (SOUSA, 1947), de modo que em 1947, os EUA lançam o Plano Marshall para a recuperação econômica desses países (ALLEN, 1948), que investiria cerca de 11 bilhões de dólares em suas economias para a reestruturação do capitalismo no Velho Mundo (BALDISSERA, 2012). A influência do Plano Marshall na reestruturação econômica mundial no pós-guerra é perceptível, no entanto é necessário olhar mais a fundo os processos ocorridos no período. A tendência à queda das taxas de lucro é fundamental para compreendê-los. Não apenas da influência política soviética surge o pacote de assistência econômica norte-americano; com o contínuo desenvolvimento das forças produtivas por meio do avanço tecnológico durante a guerra, decorreu-se o consequente cumprimento da lei tendencial; uma vez que a tecnologia permitia que se investisse menos capital variável na produção em decorrência da menor necessidade de trabalhadores para executar as etapas da produção agora realizadas por intermédio de maquinarias (MARX, 2017b, p. 249-268). Uma das evidentes soluções para a queda da taxa de lucros em andamento era o comércio exterior (MARX, 2017b, p. 271-279), mas como efetivá-lo levando em conta que com o fim da guerra as economias europeias encontravam-se devastadas, uma vez que eram estas essenciais parceiras comerciais para os EUA? O Plano Marshall atua no sentido de garantir parceiros comerciais para as empresas norte-americanas objetivando conter a queda da taxa de lucros na margem Oeste do Oceano Atlântico. Verifica-se, no entanto, que os programas de recuperação da economia no imediato pós-guerra levados a cabo pelo governo americano (não apenas o Plano Marshall, como também o Plano Colombo, de influência no continente asiático) serão mais efetivos neste sentido nos países sob influência dos programas que nas empresas propriamente norte-americanas, o que se torna perceptível se observarmos as taxas de lucro líquido à partir do período de implantação destes projetos ; Marshall em 1947 e Colombo em 1951 (Figura 1). Como demonstra Lenin: A exportação de capitais influencia o desenvolvimento no interior dos países em que são investidos, acelerando-o extraordinariamente. Se, em consequência disso, a referida exportação pode, até certo ponto ocasionar uma estagnação do desenvolvimento nos países exportadores, isso tem lugar em troca de um alargamento e de um aprofundamento maiores do desenvolvimento do capitalismo em todo o mundo. (LENIN, 2012, p. 96) Este processo de recuperação econômica global que ocorre do período de 1945-1973 caracteriza-se como o “boom” econômico do pós-guerra (BRENNER, 2006, p. 41-96), tal fato se deve ao papel exercido pela Segunda Guerra Mundial em termos econômicos, atuando como força destruidora de capitais necessária para a superação da crise de 1929, bem como pela internacionalização da economia e do mercantilismo orientado para a exportação, além da intensificação da acumulação de capital por meio do investimento estatal em suas economias nacionais. Neste momento, observa-se, com maior clareza que em momentos anteriores a posição do capital financeiro (bem como o acionário) na relação de mercado do capital entre potências imperialistas, principalmente por meio do modo em que se expressará a dominação imperialista norte-americana, seja esta a dominação do mercado através do mercado por suas empresas e indústrias, bem como por ação de seus bancos. Temos nessa fase que: O capitalismo da livre concorrência, com o seu regulador indispensável, a Bolsa, passa à história. Em seu lugar apareceu o novo capitalismo, [...] que representa uma mistura da livre concorrência com o monopólio. (LENIN, 2012, p. 66) Figura 1: Taxa de lucro líquido nas empresas: Estados Unidos, Alemãnha e Japão, 1948-99 Fonte: BRENNER, 2003, p. 83. 1.2- Imperialismo e liberalização da economia: a acumulação capitalista na década de 1950 brasileira Enquanto nos países europeus a grande questão no pós-guerra era primariamente da reestruturação da economia industrial, em inícios da década de 1950, cerca de 60% da População Economicamente Ativa do Brasil encontrava-se empregada no setor agropecuário, setor tal que absorvia 29% da renda nacional, sendo que, em 1955 a cafeicultura respondia a 70% do valor desta produção. Estes valores ganham tons mais vibrantes se observarmos que, neste mesmo ano, o café correspondia a 60% do capital nacional proveniente da exportação (FARO; SILVA in: GOMES, 2002, p.67-89). Não surpreende que a economia brasileira fosse, em muito, voltada para a produção e exportação de produtos agrícolas, considerando o Brasil enquanto país economicamente situado na Divisão Internacional do Trabalho como país exportador de produtos primários e commodities. No entanto, na primeira metade da década de 1950, a baixa produtividade das lavouras alimentares, aliada à grande lucratividade das exportações em decorrência do cenário global de crescimento econômico, criaram um cenário interessante para o desenvolvimento de pretensões industrializantes que hibernavam desde o fim da Grande Guerra. Em 1955, correspondendo ao cenário internacional, a Superintendência da Moeda e Crédito (SUMOC) pública a Instrução n°113, que, sob a justificativa de incentivar o desenvolvimento da indústria nacional, a abole o dispêndio de divisas no ingresso de equipamentos estrangeiros no país; no entanto, ainda que na aparência sua face fosse a de um fomento à indústria brasileira, efetivamente, demonstrou-se como uma abertura para o capital internacional em nossas fronteiras: Enquanto empresas genuinamente nacionais precisavam frequentar leilões de câmbio para conseguir importar, outras, associadas a capitais estrangeiros o faziam diretamente pela Instrução n°113. (FARO; SILVA in GOMES, 2002, p.70) Como já dito do capitalismo nesta fase particular, temos que o investimento de capitais internacionalmente é uma das formas de se expandir o capital das potências imperialistas, ainda que isso signifique uma relativa estagnação dessas economias (LENIN, 2012, p. 96). Pode-se dizer que a Instrução ditou os rumos da economia nacional na segunda metade dos anos 1950, portanto, uma vez que temos aqui presentes diversas causas contra-arrestantes à lei tendencial da queda da taxa de lucros expressas na realidade brasileira. Não apenas o barateamento dos elementos do capital constante por meio da queda dos preços - que, tendo em vista o baixo nível de desenvolvimento tecnológico nacional relativo à indústria internacional, obtinham uma queda dado o preço de mercado dos produtos importados, os quais tinham seu acesso facilitado pela Instrução nº113 -, mas, simultaneamente, o aumento do grau de exploração do salário e a compressão do salário abaixo de seu valor. Demonstra Brenner: Em particular, as ondas estendidas de acumulação de capital que fundaram a grande recuperação durante a década de 1950 foram condicionadas pelo alcance de taxas de lucro extraordinariamente altas, cuja premissa foi a supressão do trabalho e sua consequente aceitação de baixos e (em comparação com o crescimento econômico) lentos crescimentos salariais. (BRENNER, 2006, p.46, tradução nossa) Figura 2 Salário Mínimo Real em R$ Fonte: IPEA. Salário Mínimo Real: Mensal de 1940.07 até 2019.10. 2019. In: IPEA, 2019. Se investigarmos o Salário Mínimo Real (figura 2) e o crescimento da indústria no Brasil, aqui expresso pelo desenvolvimento da capacidade instalada de geração de energia elétrica (figura 3) – cujo desenvolvimento se faz necessário para o desenvolvimento tecnológico industrial pelo qual passava o país nos anos 1950 -,observaremos um crescimento salarial ascendente, porém lento ao compreender seu crescimento médio, frente a um desenvolvimento ininterrupto e quase constante da capacidade de geração energética. Apresenta-se, portanto, um crescimento na produtividade do capital ao passo que os salários em ascensão não significam uma redução da massa de mais-valor extraída. Figura 3 Capacidade instalada de geração de energia elétrica. Fonte: MME. Capacidade instalada de geração de energia elétrica do Brasil: quantidade. 2019. In: IPEA, 2019. A mão de obra no Brasil, por sua baixa especialização, possuía um custo reduzido em comparação à dos países centrais, o que permitia menor investimento em capital variável na produção industrial, tornando o país atrativo para sediar filiais de empresas estrangeiras, de modo a manter as altas taxas de lucro através do comércio exterior e promover maior acumulação de capital, expandida internacionalmente em todos os seus aspectos: demanda crescente de força de trabalho, diminuição relativa da parte variável do capital e formação de um exército industrial de reserva. (MARX, 2017a, p. 689-784) A interseção do incentivo para a entrada de capital estrangeiro produzido pela Instrução n°113 da SUMOC e a expansão do capital internacional pela necessidade da acumulação e da manutenção das altas taxas de lucro, com a posição brasileira na divisão internacional do trabalho, resultou, com o plano de metas, no crescimento e desenvolvimento da indústria de base, principalmente as de transformação e extrativas, tendo como principais investidores os países componentes do G7 (ver figuras 3 e 4). Figura 4 Investimentos Diretos Estrangeiros por país de Origem através da Instrução 113 e do Decreto 42.820 no período entre 1955 e 1963 (em milhões de US$). Fonte: SUMOC. Boletins, vários anos (1955-1964) in: CAPUTO; MELO, 2008, p. 10. Figura 5 Investimento direto estrangeiro entre 1955 e 1963 via Instrução 113 da SUMOC e Decreto 42.820 – Setores da economia (1 dígito). Fonte: SUMOC. Boletins, vários anos (1955-1964) in: CAPUTO; MELO, 2008, p. 11. De modo análogo, a escolha do governo JK em seu Programa de Metas no desenvolvimento preferencial do transporte rodoviário não se dá por acaso; Gounet nos demonstra a importância estratégica do setor automobilístico para o desenvolvimento do capitalismo, principalmente devido ao grande número de peças necessárias (em torno de 20 a 40 mil peças) na produção unitária o que pressupõe todo um sistema voltado para a produção automobilística, no entanto, o modelo de desenvolvimento deste setor industrial posto em prática no Programa não está voltado para o desenvolvimento de uma indústria nacional automotiva, mas sim para atrair filiais de indústrias internacionais, de modo que estimula a acumulação de capital neste setor a partir da exploração da mão de obra local (figura 5), que corresponde a 15% do comércio externo e 10% do Produto Nacional Bruto dos principais países do mundo (GOUNET, 1999, p. 13-53). --Figura 6 Investimento direto estrangeiro entre 1955 e 1963 via Instrução 113 da SUMOC e decreto 42.820 – Setores da economia (2 dígitos). Fonte: SUMOC. Boletins, vários anos (1955-1964) in: CAPUTO; MELO, 2008, p. 13. Tendo em vista os dados apresentados, me permito, em certa medida discordar da afirmação de Leopoldi: A conjuntura internacional constituiu o quadro maior dentro do qual se inseriu a política econômica brasileira do período. Ela teve um efeito muito importante sobre as escolhas políticas feitas então, mas não condicionou a tomada de decisão, como afirmaram algumas análises econômicas influenciadas pela CEPAL. (LEOPOLDI, Maria in: GOMES, Angela, 2002, p. 72, grifos do autor) Em certo nível, o que se demonstra é que a autonomia de JK e sua gestão com relação às políticas executadas em seu mandato (de 1956 a 1960) era relativa, de modo que não se apresentava apenas uma influência da economia internacional, mas um condicionamento que, é necessário esclarecer, não é necessariamente levado a cabo por vontade ou por projeto político, mas pela dinâmica da produção capitalista. Assim, tanto o Brasil é condicionado pelo processo global do capital, como também exerce o papel inverso, a partir de sua posição econômica no capitalismo global. Retorno, assim, a Leopoldi, que nos dá a chave que precisamos para fazer esta afirmação. Uma vez que, não fosse essa interdependência proporcionada pela fase imperialista do capitalismo, haveria o Brasil de ter solucionado seus problemas com a balança comercial, uma vez que sua produção encontra-se não apenas mais elevada, mas, também, mais desenvolvida (ainda que hegemonizada por empresas de capital internacional)o que não foi o caso; portanto: [...] áreas da política econômica de Juscelino Kubitschek que mais mobilizaram a atenção do governo, seus recursos técnicos e suas disponibilidades financeiras: a política dirigida para a consecução das metas industriais do Plano de Metas e as políticas cambial e de comércio exterior. Na primeira, o governo foi bem sucedido, conseguindo consolidar a infraestrutura energética, de transportes e de insumos básicos no país, implantando novos setores da indústria pesada e aliviando a importação desses itens. No setor da política cambial e comércio externo, contudo, o governo se defrontou com desafios internos e externos, e, a despeito de uma alta eficiência técnica, não conseguiu resolver o problema do baixo desempenho das exportações, aprofundando assim a escassez de divisas e tendo de recorrer ao endividamento como forma de captação de recursos para a viabilização do Plano de Metas. (LEOPOLDI, Maria in: GOMES, Angela, 2002, p. 76-77) 2- LONGOS CAMINHOS A TRILHAR: À GUISA DE CONCLUSÃO Os fatores anteriormente analisados nos apresentam um questionamento palpável aos êxitos do Programa de Metas, com a modernização da indústria de base brasileira, quem acumulou o referente a 50 anos em apenas 5? Quem se modernizou com o plano de desenvolvimento brasileiro? Lenin, anos antes de JK eleger-se a presidente do Brasil, nos aponta uma possível resposta: Enquanto o capitalismo for capitalismo, o excedente de capital não é consagrado à elevação do nível de vida das massas do país, pois isso significaria a diminuição dos lucros dos capitalistas, mas ao aumento desses lucros através da exportação de capitais para o estrangeiro, para os países atrasados. (LENIN, 2012, p. 94) Embora o Programa de Metas do governo JK não tenha se restrito unicamente às suas metas para a industrialização, mas compreendendo este aspecto como destaque entre os principais objetivos concernentes à modernização do Brasil na segunda metade dos anos 50 do século XX, o cenário nacional e global do capitalismo nos dá base para afirmar que o Programa de metas foi um projeto de modernização dependente para o Brasil. É improvável o “desenvolvimento” de um país de capitalismo hiper-tardio dentro do modo de produção capitalista, posto que este se encontra sob a lógica de uma divisão internacional da economia e exerce uma função necessária ao funcionamento do capitalismo global, no qual, tendo em vista a ausência de fronteiras para o capital, são relegados a estes países uma parte considerável dos processos de produção: a exploração de matérias primas, a montagem de mercadorias, etc., em função do baixo custo da força de trabalho, que, com a tendência à queda dos lucros e a intensificação da acumulação de capital, torna a produção em diferentes países economicamente viável e necessária para a reprodução do modo de produção. O Plano de Metas, assim, se estabeleceu como industrialização no Brasil realizada pelo capital de empresas internacionais que, investido no país, retorna ao capitalista individual, capital personificado, no processo de acumulação. Muito embora não tenha tido a pretensão de esgotar o debate quanto a essência do desenvolvimento brasileiro na segunda metade dos anos 1950, o retorno à crítica da economia política na História nos permite alguns avanços, principalmente no que tange à correção teórica e à possibilidade de compreensão da totalidade do movimento histórico, em oposição ao caráter fragmentário e subjetivista que impera na ciência contemporânea. Isso não significa, de modo algum, uma desqualificação da atual historiografia. Há que observar, porém, as possibilidades de desenvolvimento dos estudos históricos que foram abandonados sem que, no entanto, fossem efetivamente superados. Além disto, ao implementar um estudo em um espaço temporal prolongado, nos permite recuperar o caráter instrumental da ciência, usando do estudo categórico do passado para a compreensão da lógica que se opera também no presente. Paradoxalmente, apesar de a teoria das ondas de longa duração na história da economia capitalista ter sido claramente de origem marxista (seus precursores foram Paryus, Kautsky, van Gelderen e Trotsky), desde sua adoção por economistas acadêmicos como Kondratieff, Schumpeter, Simiand e Dupriez, os marxistas decididamente deram as costas a este conceito. Isso provou-se duplamente derrotista. Primeiro, tornou os economistas marxistas cada vez mais cegos ao que agora parece ser um aspecto chave do ciclo industrial: sua articulação com as ondas de longa duração e, portanto, sua amplitude variável. Segundo, impediu a maioria dos marxistas de pressupor importantes pontos de viragem na história econômica recente: o ocorrido em fins dos anos 1940, que envolveu um grande surto de crescimento econômico nos países capitalistas, e o não menos importante ponto de viragem do final dos anos 1960 e início dos anos 1970, que produziu um declínio acentuado na taxa média de crescimento da economia capitalista internacional. (MANDEL, 1995, p.1, tradução nossa) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Fontes IPEA. IPEADATA. Disponível em: . Acesso em: 25 out 2019. SOUSA, Egídio Câmara. Motivos em virtude dos quais Molotov rejeitou o Plano Marshall e o provável contra-ataque soviético. Microfilmagem, 15 jul. 1947. Disponível em: . Acesso em 23 nov. 2017. FGV, CPDOC. Bibliografia ALLEN, James S. O Plano Marshall: Recuperação ou Guerra? Problemas: Revista Mensal de Cultura Política, [S.L], n. 13, ago./set. 1948. Disponível em: . Acesso em: 26 nov. 2017. BALDISSERA, Felipe. A história da integração europeia: do pós-guerra ao Maastricht – tratados e instituições. Porto Alegre, 2012. Disponível em: . Acesso em: 26 nov. 2017. BRENNER, Robert. O Boom e a Bolha. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003. 304 p. ________________. The economics of global turbulence: the advanced capitalist economies from long boom to downturn, 1945-2005. 1 ed. Londres/Nova York: Verso, 2006. 398 p. CAMPOS, Márcia Aparecida Ferreira. A política econômica do governo Kubitschek (1956-1961): o discurso em ação. Dissertação (Mestrado em Economia) – UFRGS, Porto Alegre, 224 p. 2007. CAPUTO, Ana Claudia; MELO, Hildete Pereira de. A industrialização brasileira nos anos 1950: uma análise da Instrução 113 da SUMOC. Textos para Discussão, Niterói, n. 232, mar. 2008. Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2019. GOMES, Angela de Castro (Org.). O Brasil de JK. Rio de Janeiro: FGV, 2002. 223 p. GOUNET, Thomas. Fordismo e Toyotismo na Civilização do Automóvel. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 1999. 120 p. LENIN, Vladimir Ilyich. Imperialismo, estágio superior do capitalismo. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012. 176 p. MANDEL, Ernest. Long waves of capitalist development: a marxist interpretation. 2 ed. Londres/Nova York: Verso, 1995. 175 p. MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2017a. 894 p. ___________. O Capital: crítica da economia política: livro III: o processo global da produção capitalista. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2017b. 980 p. ANEXOS Figura 7 Exportações e Importações - em milhões de US$. Fonte: BCB. Saldo da balança comercial (FOB) (Antiga metodologia - BPM5). 2015. In: IPEA, 2019. Figura 8 Saldo da Balança Comercial - em milhões de US$. Fonte BCB. Saldo da balança comercial (FOB) (Antiga metodologia - BPM5). 2015. In: IPEA, 2019.
- Fundamentos econômicos e políticos do pós-modernismo:pós-modernismo e capitalismo tardio
por Mavi Rodrigues O texto que agora apresentamos é parte da tese de doutoramento de Mavi Rodrigues intitulada Michel Foucault sem espelhos: um pensador proto pós-moderno de 2006. Aqui publicamos um trecho do capítulo I, mais precisamente o tópico 1.2 Fundamentos econômicos e políticos do pós-modernismo e o subtópico 1.2.1 Pós-modernismo e capitalismo tardio. Nosso objetivo é contribuir para a divulgação desse trabalho científico seminal para a crítica do irracionalismo contemporâneo, que campeia livremente no atual estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista. Agradecemos, mais uma vez, à Mavi Rodrigues pela permissão que nos deu para publicar parte de sua obra na Barravento. Sua tese completa – que merece leitura atenta – encontra-se disponível no link . Fundamentos econômicos e políticos do pós-modernismo A emergência do pós-modernismo – adverte Harvey (1996: 65) - não se deu num vazio social, econômico e político. Embora esta premissa seja condição fundamental para processar a análise da cultura pós-moderna numa perspectiva teórico-metodológica que privilegia a totalidade, as abordagens marxistas sobre este tema se dividem entre uma tendência a considerar apenas os fundamentos econômicos e uma avaliação restrita aos seus fundamentos políticos (1). Se as análises de Jameson (1997) e as de Harvey (1996) estão mais próximas da primeira, as reflexões de Callinicos (1995) e Eagleton (1998) se identificam com a segunda. Entender a emergência do que se convencionou chamar de pós-modernismo requer empreender uma investigação da cultura contemporânea que permita superar esta cisão presente nas análises marxistas entre as abordagens econômicas e políticas. Em hipótese alguma esta proposição autoriza a refutação integral das teses sustentadas por Jameson, Harvey, Callinicos e também Eagleton. Ao contrário, superar a unilateralidade do estudo destes autores exige levar às últimas conseqüências os veios heurísticos que descortinaram, isto é, requer demonstrar que o pós-modernismo é tanto um produto da mercantilização da cultura na fase tardia do capital quanto do impacto do fracasso das lutas políticas empreendidas no período de 1968–76 sobre o projeto socialista revolucionário. Pós-modernismo e capitalismo tardio Embora a tese central de O Pós-modernismo: lógica cultural do capitalismo tardio busque situar as bases propriamente objetivas da constituição da cultura pósmoderna na economia política mandeliana, uma leitura mais atenta da obra de Jameson permite evidenciar o quão frágil é a sua compreensão acerca da fase tardia do capital. A princípio, a assertiva de Jameson (1997) sobre a integração da cultura à lógica mercantil parece se apoiar mais nas teses que o velho Lukács desenvolveu pouco tempo antes de falecer (2) do que em Mandel. O que, em última instância, não traria grandes problemas à investigação de Jameson, já que, a despeito de portarem concepções políticas distintas, as elaborações teóricas destes dois grandes pensadores marxistas - voltadas para dimensões particulares da fase tardia do capitalismo: em Mandel, confesso trotskysta, a economia política e em Lukács, leninista apaixonado, a cultura - não são colidentes entre si. Contudo, uma análise mais atenta das argumentações presentes em O Pósmodernismo: lógica cultural do capitalismo tardio permite evidenciar um problema de outra ordem. De sua tese central – o pós-modernismo como a lógica cultural dominante do capitalismo tardio – Jameson extrai uma assertiva inteiramente correta: a de que a fase tardia do capital correspondeu à dissolução da condição de relativa autonomia que a cultura gozava nas fases anteriores do capitalismo. No entanto, o equívoco parece residir na conclusão que o referido autor arranca deste fenômeno. Jameson sinaliza que a perda da autonomia relativa do domínio cultural não deve ser interpretada como extinção ou destruição da cultura. Ao contrário, “a dissolução da esfera autônoma da cultura deve ser antes pensada em termos de uma explosão: uma prodigiosa expansão da cultura por todo o domínio do social, até o ponto em que tudo em nossa vida social – do valor econômico e do poder do Estado às práticas e à própria estrutura da psique – pode ser considerado como cultural, em um sentido original que não foi, até agora, teorizado” (JAMESON, 1997: 74). Fica evidente que neste ponto Jameson está muito mais próximo de Baudrillard - autor pós-moderno que condenou a teoria marxiana ao obsoletismo ao sustentar que na atualidade o capitalismo tem se preocupado mais com a produção de signos do que com a produção de mercadorias – do que da reflexão mandeliana (3). Em Mandel, o capitalismo tardio é representado como o período no qual, pela primeira vez na história da humanidade, a industrialização se tornou generalizada e universal. Momento em que a padronização, a superespecialização e a fragmentação do trabalho - que antes determinavam apenas o âmbito da produção mercantil na indústria - abarcam agora desde a agricultura à esfera da circulação e o lazer. A industrialização da esfera da reprodução social é, segundo a análise mandeliana, o ápice deste processo (MANDEL, 1982: 271 e 272). A teoria mandeliana, portanto, permite afirmar que, na fase tardia do capital, a industrialização, envolvendo o todo da vida social, invade, inclusive, a esfera da produção e do consumo de bens culturais; mas nunca o contrário, como o fez Jameson. Ao sustentar que o capitalismo tardio corresponde à generalização e universalização da cultura, que passa a penetrar tudo, desde a produção e circulação de mercadorias até o cotidiano dos indivíduos sociais, Jameson, na verdade, inverteu a tese de Mandel e acabou, inconscientemente, fortalecendo os argumentos pós-modernos que insistem em identificar na expansão do setor de serviços os sinais do nascimento de uma sociedade pós-industrial. Afinal de contas, afirmar que capitalismo tardio corresponde a uma expansão generalizada da cultura não é o mesmo que sustentar que a produção material não tem mais centralidade na sociedade contemporânea?(4). Levar às últimas conseqüências a tese central de O Pós-modernismo: lógica cultural do capitalismo tardio, isto é, situar o pós-modernismo enquanto resultado da integração comercial da produção estética no terceiro estágio do capital, requer enfatizar a relação da arte e da cultura com o fenômeno da supercapitalização, o que Jameson não o fez nem indiretamente. O fenômeno de supercapitalização não é lateral na análise do terceiro estágio do capital, pois é ele que dinamiza o desenvolvimento da industrialização e da capitalização intensiva na esfera de reprodução social. Tal fenômeno – lógica básica do capitalismo tardio – consiste “em converter, necessariamente, o capital ocioso (que não consegue mais se valorizar na indústria) em capital de serviços e ao mesmo tempo em substituir o capital de serviços por capital produtivo (mercadorias)” (MANDEL, 1982: 285). A substituição do trabalho da faxineira, da cozinheira e do alfaiate - que não produzem mais-valia - pelos aspiradores de pó, as refeições précozidas e as roupas prontas são exemplos da supercapitalização. São também expressões deste fenômeno a substituição dos serviços de transporte por automóveis particulares; serviços de teatro e cinema por aparelhos privados de televisão e programas de TV e instrumento educacional por videocassete (5). A análise mandeliana demonstra, ainda, o quanto a lógica do capital tardio está associada à constituição de uma sociedade do consumo. Se uma grande diferenciação do consumo - especialmente do consumo dos assalariados e da classe operária - é um pré-requisito para a supercapitalização; é no capitalismo tardio que, embora não sendo o cenário originário deste processo (6), são intensificadas as fontes de diferenciação da demanda monetária efetiva do proletariado. A categoria de supercapitalização é uma fonte rica para a investigação dos fundamentos econômicos do pós-modernismo. É por meio dela que a mercantilização crescente da cultura é explicitamente tratada por Mandel. Ele aponta que as realizações culturais do proletariado (jornais, livros, esportes, educação, etc.) – genuinamente voluntárias e autônomas no período do imperialismo clássico – tendem, na fase atual do capital, a ser cada vez mais absorvidas pela produção e circulação capitalista. Reprivatizando a esfera do lazer das classes operárias, o capitalismo tardio põe, no lugar da imprensa socialista, a imprensa e a televisão burguesas; substitui as atividades recreativas organizadas, até então, pelas associações juvenis dos trabalhadores, por férias, excursões e esportes comercializados; troca os alfarrábios, antes publicados por cooperativas dos trabalhadores, por livros publicados por editoras comerciais (MANDEL, 1982: 275 e 276). A reflexão mandeliana também trata, embora de forma menos direta, de outros aspectos fundamentais à compreensão da virada da cultura para o pós-modernismo. Ao indicar que uma das tendências do capitalismo contemporâneo é expandir ou diferenciar o consumo de mercadorias inúteis e cafonas (o kitsch) e até mesmo prejudiciais à saúde, como resultado da pressão da publicidade e do conformismo, Mandel aponta três aspectos, comumente, relacionados ao fenômeno do pós-modernismo. O primeiro diz respeito à tendência apontada pela análise mandeliana da conversão dos bens de luxo para os bens de massa. Não por acaso, no âmbito da arte do pós-60 vai se afirmando como dominante o apagamento da fronteira entre a alta cultura e a cultura de massa ou comercial (7). O segundo aspecto apontado por Mandel é que a diferenciação e expansão do consumo no capitalismo, a transformação de bens de luxo em bens de massa, geralmente vem acompanhada de uma tendência crescente dos monopólios de alterar perpetuamente a forma das mercadorias e de baixar de forma sistemática a qualidade dos produtos. Aqui identificamos as principais características – a volatilidade, a obsolescência, a efemeridade, a promoção incessante de novidades - da lógica cultural que se torna dominante no capitalismo tardio e que são descritas por muitos autores (GULLAR, 1997; JAMESON, 1997; HARVEY, 1996; SANTOS, 2001; NETTO, 2004a e c e CONNOR, 1993). O terceiro aspecto diz respeito a indução para a expansão do consumo de mercadorias e serviços que, embora opere com um significativo peso no terceiro estágio do capital, é pouco ressaltado nas reflexões teóricas sobre o pósmodernismo. De acordo com Mandel, a compulsão para a compra de mercadorias e serviços adicionais não é produto apenas da ação manipulatória da publicidade e da mídia. Há também elementos de coerção econômica direta que devem ser levados em conta. Dentre estes, a reflexão mandeliana aponta a atomização da família proletária (sua desorganização enquanto unidade de produção e mesmo como unidade de consumo) como resultado do desenvolvimento do capital. No capitalismo tardio, o crescimento do ingresso das mulheres no mercado de trabalho e a escolarização cada vez maior da classe operária funcionam como coerções econômicas para substituir o que antes era uma atividade desenvolvida pela mulher – pela esposa, mãe ou filha do trabalhador - no âmbito do lar por mercadorias capitalisticamente produzidas ou por serviços capitalisticamente organizados. Aí estaria a razão para o crescente mercado de refeições prontas, alimentos enlatados, roupas feitas e toda a variedade de eletrodomésticos correspondentes ao declínio da produção de valores de uso imediatos no seio da família. Outro elemento indutor à expansão do consumo na fase tardia do capitalismo diz respeito à compulsão econômica direta para consumo de mercadorias e serviços adicionais, sem os quais seria impossível a reprodução material da força de trabalho. De acordo com Mandel, tal imposição social é produzida na fase tardia do capital por duas maneiras. Por um lado, o aumento substancial da intensidade do trabalho tornando necessário que o trabalhador, para repor a energia de sua força de trabalho, consuma mais mercadorias e mercadorias de melhor qualidade. Por outro, o crescimento das metrópoles que, aumentando exponencialmente o tempo de circulação entre a casa e o trabalho, gera uma demanda objetiva por bens de consumo que poupem tempo. É, sobretudo, este elemento que permite explicar o crescimento do uso de máquinas de lavar, de fornos elétricos, micro-ondas e até mesmo do automóvel particular em regiões onde a rede de transporte público é inexistente ou insuficiente. Uma leitura rigorosa da reflexão mandeliana não só permite corrigir os desvios da análise de Jameson (1997); também permite ratificar a tese de Harvey (1996) que relaciona o surgimento de uma condição pós-moderna com a ascensão, em fins do século XX, de um novo regime de acumulação de capital, denominado de acumulação flexível.Veremos a seguir que a compressão tempo-espaço produzida pela acumulação flexível e seus impactos na psicologia humana, investigados em Condição Pós-moderna, são perfeitamente compatíveis com as análises mandelianas presentes em O Capitalismo Tardio. Aliás, Bhering (1998) demonstra como, partindo de categorias fundantes da teoria social marxiana, Mandel antecipou as contradições internas e históricas que levaram à onda longa com tonalidade recessiva que o mundo passou a viver nas três últimas décadas do século XX. Além disso, a autora revela como a passagem do padrão de acumulação flexível, analisado por Harvey, pode ser interpretada como uma reação burguesa à crise que o capitalismo tardio experimenta a partir de 1974/75, quando se esgota o boom do pós-guerra e tem início um novo ciclo da onda longa recessiva, previsto por Mandel já na década de 60. Harvey teve muito mais sucesso que Jameson na investigação da relação entre a economia e a cultura pós-moderna. Atento às alterações processadas na produção capitalista nas três últimas décadas do século XX, ele pôde explorar com maior precisão e substância os fundamentos econômicos que tornaram possível a aparição de uma produção estética e de um discurso pós-modernos, no mundo ocidental dos anos 70. Além do mais, isso lhe permitiu romper com o véu da representação imediatista e pseudoconcreta da condição pós-moderna. Em Harvey, tal condição histórica não deve ser tomada como a constituição de uma situação social inteiramente nova com relação à modernidade. Ao contrário, ela é tratada como a reificação de alterações processadas dentro da moderna produção do capital no final do século XX. De acordo com Harvey, a virada cultural para o pós-modernismo está estreitamente articulada à constituição de um regime de acumulação flexível que - embora distinto daquele que vigorou entre os anos de 45 a 73: o regime de acumulação fordista-keynesiano - não altera as regras básicas do modo de produção capitalista, posto que a produção em função de lucros permanece sendo o princípio organizador básico da vida econômica. Marcada por um confronto com a rigidez do fordismo, a acumulação flexível produziu mudanças radicais em processos de trabalho e hábitos de consumo, nas práticas e poderes do Estado (8) e, sobretudo, a passagem para um novo ciclo de compressão tempo-espaço (9) na economia política do capitalismo do final do século XX. É justamente a análise deste último elemento – a compressão tempo-espaço – que, segundo Harvey, permite evidenciar como se tornou possível a construção de uma forma de ser, pensar e agir pós-modernas. Ao modificar as formas materiais de reprodução social, a acumulação flexível conduziu os usos e significados do tempo e do espaço (10) em direção à uma experiência do tempo e do espaço pós-modernista. As bases objetivas de tal experiência dizem respeito à aceleração do tempo de giro do capital na produção - obtida através da implantação de novas tecnologias produtivas (automação, robôs, etc.) e de novas formas organizacionais (subcontratação, just in time, etc.) – bem como a acelerações paralelas na troca e no consumo – possível graças a sistemas aperfeiçoados de comunicação e fluxos de informações acoplados à racionalização nas técnicas de distribuição de mercadorias (empacotamento, conteinerização, controle dos estoques, etc.) e ao aumento da rapidez do fluxo do dinheiro (bancos eletrônicos e cartões de crédito). Duas alterações no consumo, promovidas pela redução dos tempos de giro nas três últimas décadas do século XX, são destacadas por Harvey - ambas dizem respeito a tendências apontadas por Mandel de diferenciação do consumo no capitalismo tardio. A mobilização da moda em mercados de massa que propiciou a aceleração do ritmo do consumo não só de roupas, ornamentos e decoração, mas também de uma ampla gama de estilos de vida e atividades de recreação - estilos de música pop, hábitos de lazer, videogames, etc. E a passagem do consumo de bens para o consumo de serviços - pessoais, comerciais, educacionais e de saúde, bem como de entretenimento, espetáculos e eventos. A tendência em substituir o consumo de bens físicos por serviços, cujo tempo de vida é muito mais curto é, de acordo com o autor, o que estaria na raiz da rápida penetração capitalista ocorrida na metade dos anos 60 em diversos setores da cultura. Os ajustes espaciais, provocados pela transição do fordismo para a acumulação flexível, não foram menos dramáticos. A implantação dos sistemas de comunicação por satélite tornou o custo unitário e o tempo da comunicação invariantes com relação à distância. Associada à comunicação via satélite, a televisão de massa - possibilitando o acesso quase simultâneo a imagens de experiências reais ou simuladas a milhões de pessoas em distintos espaços do planeta - encolheu os espaços do mundo em sua tela. O barateamento do frete aéreo e a conteinerização reduziu o custo do transporte marítimo e rodoviário. Tudo isto possibilitou, segundo Harvey, a queda de barreiras espaciais e, principalmente, as condições para que os capitalistas pudessem explorar com maior proveito as minúsculas diferenças espaciais, quer seja em termos de oferta de trabalho ou de recursos e infra-estrutura. A aniquilação do espaço pelo tempo deu ao capital um domínio superior do espaço. Permitindo aos capitalistas utilizar a mobilidade geográfica e a descentralização como armas poderosas de luta contra a resistência dos trabalhadores, a acumulação flexível produziu a “fragmentação, (a) insegurança e (o) desenvolvimento desigual e efêmero no interior de uma economia de fluxos de capital de espaço global unificado” (HARVEY, 1996: 267). Na vida cotidiana, a aniquilação do espaço por meio do tempo alterou radicalmente o conjunto de mercadorias que compõem a reprodução diária. Incorporando inúmeros sistemas locais de alimentação à troca global de mercadorias, a acumulação flexível transformou significativamente o mercado de alimentos. Ao possibilitar a venda, a preços relativamente baixos, nos supermercados das grandes metrópoles, de comidas e bebidas das mais variadas regiões (maçãs canadenses, uvas chilenas, feijões do Quênia, etc.) – antes ofertadas apenas em lojas especializadas – a compressão tempo-espaço fez com que a cozinha do mundo inteiro estivesse presente num único lugar “de maneira quase exatamente igual à da redução da complexidade geográfica do mundo a uma série de imagens numa estática tela de televisão” (HARVEY, 1996: 270). A implicação geral desta nova experiência espacial, de acordo com Harvey, foi o de possibilitar a vivência vicária da geografia do mundo, como um simulacro. Reunindo no mesmo espaço e no mesmo tempo diferentes mundos (de mercadorias), o entrelaçamento de simulacros da vida diária “oculta de maneira quase perfeita quaisquer vestígios de origem, dos processos de trabalho que os produziram ou das relações implicadas em sua produção” (HARVEY, 1996: 271). A conseqüência mais expressiva da alteração da qualidade objetiva do tempo e do espaço na sociedade como um todo se deu, segundo Harvey, no âmbito da psicologia humana. Golpeando a vida cotidiana, a compressão tempo-espaço acentuou não só a volatilidade e a efemeridade de modas, produtos, técnicas de produção e processos de trabalho. Forçou as pessoas a lidar com a descartabilidade, a novidade e a perspectiva da obsolescência instantânea também de lugares, pessoas, valores e formas de agir e pensar. A dinâmica de uma “sociedade do descarte” – que tende a jogar fora não apenas bens produzidos, mas também "estilos de vida, relacionamento estáveis, apego a coisas" - descrita por Harvey (1996: 258), corresponde a passagem da destruição produtiva para produção destrutiva no desenvolvimento do capitalismo avançado, expressão da lei tendencial da taxa de utilização decrescente, analisada por Mészáros (2002), cujos traços essenciais e seus vínculos com o pósmodernismo serão apontados no capítulo seguinte desta tese. Um aspecto importante desta experiência pós-moderna do tempo e do espaço é a presença de um sistema de manipulação de gostos e opiniões, um sistema de signos e imagens (11) capaz de adaptar a volatilidade a fins particulares. Claro que, aqui, o autor se refere a um dos elementos centrais do capitalismo tardio apontado por Mandel nos anos 60 – a publicidade -, que, no entanto, teve seu papel exacerbado nas últimas décadas do século XX. Harvey revela que na acumulação flexível, a publicidade e as imagens da mídia jogam um papel muito mais integrador nas práticas culturais do que no passado. Estas não têm mais a função de informar ou promover os produtos, mas a de manipular desejos e gostos mediantes imagens que podem ou não ter relação com a mercadoria a ser vendida (12). Além de ter se tornado um elemento fundamental para concorrência na venda de mercadorias, a imagem passou a ser também “parte integrante da busca de identidade individual, auto-realização e significado da vida” (HARVEY, 1996: 260). São dois, segundo Harvey, os possíveis efeitos sociológicos disto tudo no pensamento e na ação diários. O primeiro condiz com uma postura em tirar proveito de todas as possibilidades divergentes, cultivando-se toda uma série de simulacros como espaços de escape, de fantasia e de distração. A ênfase na fragmentação, na dispersão, na colagem no pensamento social e filosófico mimetiza essa condição pós-moderna da alteração espacial e temporal. A outra postura, claramente oposta à primeira, diz respeito à procura de uma identidade coletiva ou individual, ou seja, à busca de comportamentos seguros num mundo cambiante, o que, em grande parte, explicaria o crescimento, desde fins dos anos 60, do revivalismo religioso, ou, ainda, do retorno dos interesses por instituições básicas, como a família e a comunidade. Contudo, tal como Jameson (1997), Harvey deu muito pouca atenção à conjuntura política do final do século XX. A referência que faz a 1968 e ao declínio do movimento operário nos anos 70 é extremamente episódica (13). Talvez isso explique porque em Harvey simplesmente não haja qualquer indício de alternativas concretas de enfrentamento da condição pós-moderna (14). NOTAS Dentre as análises marxistas sobre o pós-modernismo, consideraremos aqui em maior medida os estudos de Jameson (1997) e Harvey (1996). Mas, em menor medida, também as formulações de Callinicos (1995), Eagleton (1998) e Anderson (1999). A diferenciação da atenção dispensada a cada um desses autores não é arbitrária; ela corresponde, em grande medida, ao próprio grau de investimento intelectual que os mesmos, até o presente momento, dispensaram ao tema. Nos anos 60, o filósofo marxista já havia acentuado como uma das principais características do capitalismo contemporâneo a penetração em todas as expressões da vida social - desde as vendas de gravatas e cigarros até as eleições presidenciais - de um sistema de manipulação indutor a um consumo de massa (Cf. entrevista concedida, em 1966, a Leo Kofler in ABENDROTH, 1972). É no mínimo inquietante a forma pela qual Jameson aborda a teoria do valor em Marx, da qual a construção teórica de Mandel é legatária. Contrariando a orientação ontológica que acompanhou toda a obra marxiana, o autor não só comete o absurdo de dizer que este é o trabalho epistemológico mais interessante de Marx, como também afirma que a forma geral do valor corresponde a “uma idéia geral ou propriedade universal que então se materializa em um único objeto designado para servir de ‘standard’ para todo o resto” (JAMESON, 1997: 244 e 245). Tais imprecisões inquestionavelmente indicam uma leitura insuficiente da produção teórica mandeliana. Porém, talvez possam sinalizar também que a influência da leitura antropológica de Baudrillard acerca do valor de uso e do valor de troca sobre Jameson, não tenha sido tão circunscrita como supôs Anderson (1999: 63). Vale a pena reproduzir aqui os argumentos de Mandel que infirmam qualquer hipótese de associar a expansão de serviços ocorrida logo após a Segunda Guerra Mundial com a superação do capitalismo ou com o nascimento de uma sociedade pós-industrial: “Uma sociedade constituída apenas de serviços, onde o proletariado inteiro se transformou em trabalho social improdutivo (que já não produz mercadorias) também acabaria por confrontar-se com o problema de que os trabalhadores assalariados não poderiam usar seus salários apenas para comprar ‘serviços capitalistas’, pois primeiro teriam de comer, beber, vestir, conseguir moradia e garantir fontes de energia, antes de poder ir ao médico, consertar os sapatos ou fazer uma viagem de férias. O capital investido nas ‘empresas de serviços’ dificilmente conseguiria atingir a ‘valorização’. Se os bens que fossem inteiramente produzidos por processos automáticos já não fossem vendidos, mas distribuídos gratuitamente, então é difícil imaginar um motivo que levasse as massas, que dessa maneira teriam assegurado o seu padrão de vida, a alugar sua força de trabalho para as ‘empresas de serviço’. Em outras palavras, esses cenário não teria mais nada a ver com o capitalismo” (MANDEL, 1982: 285). Mandel (1982: 272) demonstra como esta tendência é triplamente útil ao capital monopolista. Em primeiro lugar, a supercapitalização por meio de quatro vias - a assunção parcial de funções produtivas do capital industrial propriamente dito, como no caso do setor de transporte; a aceleração do tempo de rotação do capital produtivo circulante, como no caso do comércio e do serviço de crédito; a redução dos custos indiretos da produção, como o que ocorre na infra-estrutura e a ampliação dos limites da produção de mercadorias por meio da substituição da troca de serviços individuais pela venda de mercadorias que contém mais-valia - acrescenta à massa de capital social investido uma quantidade maior de mais-valia. Além disso, o desvio de uma massa de capital ocioso e em expansão evita que estes, ingressando nos setores monopolizados, venham aumentar a concorrência ou ameaçar os superlucros dos monopólios. Por fim, se houver garantia de lucratividade, o capital monopolista pode participar ativamente deste processo. Nesta condição, os conglomerados de capital tendem a combinar a produção (de aço, de margarina, de cerveja, etc.) com a posse de unidades de distribuição (hotéis dominados por fábricas de cerveja, postos de gasolina dirigidos por trustes de petróleo, etc.) e, ainda, iniciativas em grande escala na esfera das lojas de departamento ou dos sistemas de transportes (companhias de aviação, de navegação marítima, lazer, férias, etc.). Mandel demonstra que a diferenciação do consumo se desenvolveu gradualmente a partir da segunda metade do século XIX, quando no Ocidente o Exército Industrial de Reserva experimentou uma baixa secular. Assim sendo, em contraposição ao alto modernismo, “os pós-modernismos têm revelado um enorme fascínio pela paisagem ‘degradada’ do brega e do kitsch, dos seriados de TV e da cultura do Reader’s Digest, dos anúncios e dos motéis, dos late shows e dos filmes B hollywoodianos” (JAMESON, 1997: 28). Em contraposição ao padrão de acumulação fordista-keynesiano, o regime de acumulação flexível se apóia na flexibilidade dos processos e mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se, ainda, pelo surgimento de novos setores de produção, de novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e taxas altamente intensificadas de inovações tecnológicas, comercial e organizacional. Envolve também rápidas mudanças nos padrões de desenvolvimento desigual tanto entre setores como entre regiões geográficas. Segundo Harvey, o que ocorreu no último quartel do século XX foi uma outra rodada da aniquilação do espaço por meio do tempo, que sempre esteve no centro da dinâmica capitalista. Neste sentido, o pós-modernismo não difere da natureza do modernismo que também fora, segundo o autor, uma reação às alterações processadas no espaço e no tempo pela crise de 1846-47, considerada por ele como a primeira crise patente de superacumulação capitalista. De acordo com Harvey, a teoria sobre a compressão tempo-espaço possibilita expressar não somente as qualidades objetivas do tempo e do espaço, mas também a maneira pela qual os homens são forçados a alterar radicalmente suas representações sobre o mundo (HARVEY, 1996: 219). É, portanto, por um viés claramente materialista – que em nada concede a uma interpretação antropológica e subjetivista do tempo e do espaço - que o autor em tela afirma que as qualidades objetivas de espaço e de tempo e suas representações são produtos, variáveis histórica e geograficamente, de práticas e processos materiais que servem à reprodução da vida social (HARVEY, 1996: 189). Ao buscar demonstrar o quão importante tem sido para a acumulação flexível de capital o investimento na construção da imagem, Harvey (1996: 259-263) se empenhou em depurar toda a influência de Baudrillard da discussão de Jameson sobre o simulacro e sobre a relação da produção estética com a tecnologia da fase tardia do capital - que se assenta em máquinas mais de reprodução do que de produção, como o computador e a televisão (JAMESON, 1997: 63). Embora seja extremamente louvável o esforço de Harvey, há no conjunto de suas argumentações afirmações que acabam por supervalorizar a importância da imagem na produção capitalista, chegando até mesmo a afirmar que “é factível que a acumulação se processe, ao menos em parte, com base na pura produção e venda da imagem" (HARVEY, 1996: 261). A manipulação é de tal ordem que diz Harvey (1996: 260): “se privássemos a propaganda moderna da referência direta ao dinheiro, ao sexo e ao poder, pouco restaria”. Poderíamos estender esta crítica do autor a grande parte dos produtos culturais da TV e do rádio do final do século XX e começo do XXI. Sem o apelo sexual explícito o que seria do “É o Tcham” e a moda atual do funk carioca? Não ficam de fora também desta tendência o próprio teatro povoado nos últimos tempos com peças do gênero “Monólogos da Vagina”. Ao longo de trezentos e vinte e seis páginas, Harvey dedica apenas breves linhas ao Movimento de Maio de 1968. Ele simplesmente sustenta que tal movimento pode ser considerado como "um arauto cultural e político da virada para o pós-modernismo" (HARVEY, 1996: 44). O mesmo ocorre quanto à relação entre a cultura pós-moderna e as organizações da esquerda, tema das quinze últimas páginas de sua obra (Idem, ibid., p. 311 a 326). A análise de Jameson sobre a cultura pós-moderna deixa a desejar não somente quanto à avaliação propriamente econômica do capitalismo tardio, ela desconsidera também um outro determinante fundamental da nova dominante cultural dessa etapa do capital: a esfera da política, em especial, as lutas de classes no último quartel do século XX. Falta-lhe, sobretudo, uma avaliação mais conseqüente do significado do Movimento de Maio de 1968 e da crise internacional do socialismo real, temas muito pouco explorados em sua grande obra sobre o pós-modernismo. Tal fragilidade se explicita quando Jameson busca elucidar a defasagem histórica entre o surgimento dos governos pelo mundo à fora acabou por provocar a evolução de manifestações e insurreições estudantis em diversos países da Europa (Cf. HOLZMANN & PADRÓS, 2003: 23 e 24). Cabe ressaltar, no entanto, que 1968 emergiu não só como uma postura de solidariedade aos vietcongues e ao Vietnã do Norte, mas também como contestação a todas as formas de intervenções conservadoras, antidemocráticas ou beligerantes das potências capitalistas contra aqueles países que eram considerados como pertencentes ao Terceiro Mundo. Em grande parte o antinorteamericanismo dos anos 60 foi determinado também pelo crescimento do terceiro-mundismo. Isto explica, afinal, o peso que a guerra contra a Argélia exerceu na radicalização da juventude francesa nos primeiros anos da década de 60.
- Lukács vai ao cinema: Breves considerações para uma reflexão estética sobre a arte cinematográfica.
por Ayrton Otoni “Não é a saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço, eles não existem, mas a de homens comuns, numa cidade comum, nem faço muita questão da matéria de meu canto ora em torno de ti como um ramo de flores absurdas mando por via postal ao inventor dos jardins. Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo, que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida, são duras horas de anestesia, ouçamos um pouco de música, visitemos no escuro as imagens - e te descobriram e salvaram-se.” “Canto ao Homem do Povo – Charles Chaplin” (Drummond) INTRODUÇÃO Os escritos de Lukács sobre a Estética, apesar de ainda pouco difundidos no Brasil por não contar com traduções completas para o português, são essenciais para a interpretação do objeto deste texto: o cinema - sua gênese, estrutura e questões filosóficas e sociais que o permeiam. No que tange a arte cinematográfica os escritos de juventude de Lukács influenciaram importantes teóricos como Béla Balázs, e seus ensaios de maturidade foram publicados em grandes periódicos onde se concentravam os debates centrais sobre a sétima arte como é o caso da revista Cinema Nouvo, que contava com a curadoria do crítico Guido Aristarco, como também suas entrevistas cedidas a revista Film Kultura. Os apontamentos presentes nos escritos na fase de “juventude” e “maturidade” de Lukács sobre a particularidade estética do cinema, apesar de seu nível abstrato de análise, abrem uma nova forma de compreender a arte cinematográfica através de uma análise filosófica rigorosa. Os textos Reflexões para uma estética do cinema (1913) (1) e da obra Estética I: Peculiaridades do estético (1963) (2) apesar de pertencerem a momentos distintos da produção teórica do autor, considerando que se tratam de publicações separadas por quase meio século, testemunham não somente as mudanças ocorridas no pensamento de Lukács mas, revelam a continuidade das preocupações com a temática do cinema, bem como a busca da formulação de uma estética que preserve a autonomia artística e revele o valor real dessa forma de arte (COTRIM , 2013). Em seus escritos de juventude, Lukács procura se distanciar das análises hegemônicas do período sobre o cinema que se encontravam em “um estado de confusão conceitual” onde “algo belo e novo surge em nossos dias, e em vez de ser recebido como tal, quer-se, classificá-lo de todas formas em categorias velhas e impróprias" (LUKÁCS, 2013, p.78). Estas formulações teóricas, carregadas pelas tendências pedagógicas e economicistas da época, acabavam por restringir a reflexão sobre a produção cinematográfica “ora como instrumento de aula ilustrativa, ora como uma concorrência nova e barata ao teatro” (LUKÁCS, 2013,p.78). Assim, o filósofo húngaro aponta a necessidade de tratamento do cinema como uma Nova Beleza e, por se tratar da representação de uma beleza de novo tipo, sua determinação e análise cabem à investigação estética, tendo em vista evidenciar “as possibilidades específicas desse gênero artístico” (COTRIM, Lívia, 2013, p. 55). Ainda em sua fase de juventude, Lukács esteve, como salienta Tertulian (2008), sob forte influência neokantiana, principalmente nas reflexões sobre o modo de se pensar o objeto artístico, na qual “assumia sem questionar, a tese da imanência da consciência” (LUKÁCS, 1999, p.92), fator que refletiu diretamente na cisão posta pelo autor entre arte e vida cotidiana, elaborando uma distinção entre existência cotidiana – inautêntica – e existência essencial – autêntica. Esta separação é o pressuposto da comparação entre o cinema e o teatro, e a possibilidade de realização do drama. Em Estética I: Peculiaridades do Estético, fase madura de Lukács, a filosofia marxiana ocupa lugar central no seu pensamento. Para o autor, a arte se torna uma forma específica de apropriação do mundo pelos homens e a busca do sentido artístico reside no seu encontro com a realidade e suas condições sócio-históricas (LUKÁCS, 1966). Sendo assim, “ao recusar uma suposta capacidade artística pré existente” (COTRIM, Lívia, 2013, p.63), Lukács se opõe às influências neokantianas (3) de uma estética subjetivista presentes em seu pensamento de juventude. A Peculiaridade do estético junto a especificidade do seu caráter mimético e antropomorfizador são desenvolvidas pelo filósofo nessa fase, a fim de distinguir e apresentar o caráter autônomo da atividade artística e a distanciar das demais formas de manifestação do ser social, como a ciência e a religião (LUKÁCS, 1966). Esse distanciamento, como afirma Miguel Vedda (2014, p.275), "é resultado de um prolongado desenvolvimento que levou a arte a independizar-se, por um lado, da ciência, por outro lado, do animismo da religião”. Reside na forma artística um movimento dialético da mimese, no qual sua gênese está intrinsecamente ligada ao real ao mesmo tempo em que se autonomiza, atingindo sua realização imanente. Se observa na arte “a capacidade de captar os fundamentos da vida social” (VEDDA, Miguel, 2014, p.275), portanto, as “relações entre arte e vida cotidiana aparecem bastante distintas das formulações apresentadas em 1913” (COTRIM, Lívia, 2013, p.63). No campo estético, a arte cinematográfica se insere em um caso específico de mimese artística e cabe diferenciar o reflexo fílmico das outras formas gerais de manifestação da mimese, tendo em vista que seu ponto de partida é constituído pelo reflexo desantropomorfizador. No pensamento lukacsiano de maturidade, essa característica advém da vinculação intrínseca do cinema à condição técnica que lhe é subjacente, bem como na sua forma peculiar de se relacionar com a vida cotidiana. Cabe salientar nesta breve introdução que os escritos sobre a Estética, de Lukács, não se apresentam de nenhuma maneira como um “manual de instrução” ou “tratado marxista” sobre a arte, ao contrário, a tomada de posição na análise estética do autor se opõe frontalmente as tentativas de enquadrar mecanicamente as expressões artísticas em esquemas teóricos pré estabelecidos. Não se trata, portanto, da formulação de algum tipo de “estética marxista do cinema”, mas de compreender as especificidades, potencialidades e limites estéticos do cinema, isso entretanto não significa tratar o objeto de análise apartado das condições materiais, como veremos nas considerações presentes neste texto. 1. O jovem Lukács diante de uma nova beleza. Em seu primeiro ensaio dedicado à questão da estética cinematográfica, denominado Reflexões para uma estética do cinema, o jovem Lukács se debruça sobre essa expressão artística ainda embrionária que não havia completado duas décadas de existência e estava à procura da sua forma poiética de expressão. Esse ensaio é demarcado por um contexto de influências do clima intelectual predominante na Hungria do Século XX, repleto de elementos do anticapitalismo romântico e da Sociologia alemã, assinalado por uma espécie de "visão trágica" que esteve presente nos escritos de Lukács do período de 1908 a 1916 (AITKEN, Ian, 2012, p.5 apud Goldmann, 1967, p.169). Neste período a tragédia, enquanto gênero artístico, é objeto fundamental do pensamento de Lukács e o lançamento de sua obra A alma e as Formas (1911) consolida essa fase, na qual o autor identificava os limites da vinculação entre arte e os aspectos imediatos da vida cotidiana sob a égide do capitalismo em ascensão, por considerar a “dificuldade de um drama autêntico desabrochar das condições da vida moderna, com seu caráter árido e repugnante” (TERTULIAN, Nicolas, 2008, p.34). Em Reflexões, Lukács busca compreender a peculiaridade estética contida no filme recorrendo à comparação com o teatro da época. Para o autor, devido a sua presencialidade, o teatro é genuinamente o campo de realização do drama, característica demarcada pelo “aqui e agora” da presença do ator. O palco é o lugar das pessoas presentes, vivas, e a raiz dos efeitos teatrais encontra-se “na força com a qual uma pessoa, a vontade viva de uma pessoa viva, derrama-se, sem mediação e sem direção inibidora, sobre uma multidão tão viva quanto ela” (LUKÁCS, 2013, p.79). O palco, portanto, é a efetivação da presença absoluta. A presencialidade, característica marcante do teatro se torna o fator essencial para a “expressão manifesta da destinação do drama” (LUKÁCS, 2013, p. 79), pois somente no presente em si, através do ser-interpretado, o drama se torna a consagração dos homens pelo destino. No teatro, o público é conduzido ao distanciamento da vida cotidiana imediata, e é convidado a viver efetivamente e do modo mais intenso os grandes dilemas humanos. O cinema se configura como a arte da ausência, na qual a falta de presencialidade da relação entre o ator e o público estabelece o modo como o cinema representa a realidade. Segundo Lukács, esse principium stilisationis – princípio norteador – confere à representação fílmica um caráter imperativo no qual os personagens se tornam representantes das ações imediatas da vida cotidiana e retratam “apenas movimentações e ações das pessoas, mas não são pessoas” (LUKÁCS, 2013, p. 80). Esse princípio não torna, em nenhuma circunstância, a representação fílmica menos orgânica ou viva do que a do palco, mas se converte num gênero completamente diferente, a fantasia (LUKÁCS, 2013, pp. 79-80) que, como aponta o autor: “[...] não é o contrário de vida vivente, ele é apenas um novo aspecto dela: uma vida sem presencialidade, uma vida sem destino, sem razões, sem motivos [...] O mundo do cinema é uma vida sem plano de fundo e perspectiva, sem diferenças de pesos e qualidades. Afinal apenas a presencialidade dá às coisas destino e peso, luz e luminosidade” (LUKÁCS, 2013, p.80) Evidencia-se, portanto, o lugar central ocupado pela dualidade da existência humana ordinária empírica e da vida autêntica, ou seja, se por um lado o teatro está ligado a uma esfera metafísica – autêntica - da realização artística que se distancia da relação cotidiana imediata, o cinema através de sua característica fantástica aproxima a representação da espontaneidade da vida inautêntica. Apesar de o teatro expressar através de seu conteúdo a relação do homem e seu destino, o fluxo das ações tais como elas se apresentam na vida cotidiana lhe é estranho, nesse sentido “é o filme, ao invés do drama, que se torna mais diretamente associado à verdade mais própria do homem cotidiano e a sua posição no universo” (AITKEN, I., 2012, pp. 19-20). Lukács destaca que a técnica cinematográfica imbuiu ao cinema uma nova relação temporal, na qual a sequência fílmica não exige nenhuma causalidade que conflua uma cena a outra, “ou mais precisamente sua causalidade não é inibida ou ligada por nenhum conteúdo” (LUKÁCS, 2013, p.80), assim, a arte cinematográfica se converte no campo das possibilidades ilimitadas. Essa infinitude de viabilidades seriam as bases do novo mundo criado pelo cinema “ao qual corresponde o conto de fadas e o sonho nos mundos da poiética” (LUKÁCS, 2013, pp.80-81). Diferente do teatro, a técnica cinematográfica é capaz de atribuir vivacidade ao plano de fundo e, através de sua realização fantástica, “o que é vivo na natureza alcança aqui pela primeira vez uma forma artística” (LUKÁCS, 2013, p.81). Do mesmo modo, através das conquistas da técnica moderna “completamente indiferentes para toda grande arte” (LUKÁCS, 2013, p.81) – mesmo que ainda incipientes no período - o cinema consegue captar e retratar de forma fantástica e viva a habitual dinâmica urbana e seus elementos, tornando-a poeticamente espontânea. Neste breve escrito, apesar do esforço para estabelecer as particularidades estéticas do cinema, é notável a angústia do jovem Lukács para a possibilidade de defesa do cinema enquanto uma “grande arte”. Para o autor, a “verdade natural do ‘cinema’ não está ligada a nossa realidade [...] o que veio até agora surgiu ingenuamente contra a vontade das pessoas”, se extraiu dos filmes apenas o "espírito da técnica do cinema” (LUKÁCS, 2013, p.82). A ainda incipiente arte cinematográfica, segundo Lukács, não havia encontrado seu organizador, ou em suas palavras: “seu grande poeta não veio, o qual teria interpretado e ordenado esse mundo, o qual teria convertido o seu fantástico casual, meramente técnico, na metafísica com sentido, no puro estilo” (LUKÁCS, 2013, p.82). Para operar este salto estético se fazia necessário abandonar o repouso do cinema enquanto lugar da diversão e da busca pelo sentimento agradável do público, através disto “o cinema verdadeiramente desenvolvido, adequado a sua ideia, pode preparar o terreno também para o drama” (LUKÁCS, 2013, p.83). Em Reflexões, Lukács aponta para a perspectiva de um cinema que caminha para o horizonte da realização completa, na qual seu desenvolvimento alcança a unidade entre forma e conteúdo e revela um gênero artístico próprio à sua representação. Apesar dos limites históricos e objetivos que se colocaram para a análise dessa manifestação artística ainda em sua gênese, principalmente por seu ainda embrionário desenvolvimento técnico, o jovem Lukács buscou apontar nesse ensaio uma série de preocupações estéticas que permaneceram e permearam suas análises décadas depois, confirmando a continuidade de suas formulações acerca do tema em sua fase de maturidade. 2. A maturidade e as peculiaridades estéticas do cinema. A obra Estética I: Peculiaridades do estético apresenta o desenvolvimento das formulações sobre estética de György Lukács em sua fase de maturidade, carregando elementos e concepções acerca da gênese e estrutura da arte e sua forma particular de expressão, tendo o autor dedicado à seção “Filme” (4) à investigação da peculiaridade do cinema. Categorias como vida cotidiana, que embora presente em seus escritos de juventude se mostrava como uma dimensão menosprezada em detrimento a uma concepção essencial e metafísica da realização artística, reaparecem em Estética como elemento central. Assim, para Lukács: El comportamiento cotidiano del hombre es comienzo y final al mismo tiempo de toda actividad humana. Si nos representamos la cotidianidad como un gran río, puede decirse que de él se desprenden, .en formas superiores de recepción y reproducción de la realidad, la ciencia y el arte, se diferencian, se constituyen de acuerdo con sus finalidades específicas, alcanzan su forma pura en esa especificidad -que nace de las necesidades de la vida social - para luego, a consecuencia. Prólogo de sus efectos, de su influencia en la vida de los hombres, desembocar de nuevo en la corriente de la vida cotidiana. Ésta se enriquece pues constantemente con los supremos resultados del espíritu humano, los asimila a sus cotidianas necesidades prácticas y así dar luego lugar, como cuestiones y como exigencias, a nuevas ramificaciones de las formas superiores de objetivación. (LUKÁCS, 1966, pp. 11-12) As influências marxianas e a adoção do “método” materialista dialético (5) alteram substancialmente as formulações de Lukács deste período. A caracterização da arte enquanto uma forma particular de apropriação do mundo se relaciona diretamente em classificar a esfera de criação e produção artística e sua relação como um processo de hominização do homem enquanto um elemento central na constituição do ser social (LUKÁCS, 2012), estabelecendo uma mediação entre objetividade cotidiana e a subjetividade objetivada (COTRIM, Lívia, 2013, pp.62-63). A adoção da concepção marxiana conduz o autor a tomar como princípio de sua fundamentação estética a premissa de Marx (2004, p.110) segundo a qual é apenas pela riqueza objetivamente desdobrada da essência humana que nasce a riqueza da sensibilidade humana subjetiva. Assim, Lukács compreende que as produções artísticas estão estritamente vinculadas às condições sócio-históricas, ao mesmo tempo em que, dialeticamente, se autonomiza dessas relações imediatas a fim de constituir uma esfera própria de sua realização, isto é, a origem da arte se encontra “em certas necessidades da vida cotidiana; que se diferencia progressivamente dela, mas que a ela volta continuamente para satisfazer as exigências do ‘homem inteiro’ [der ganze Mensch] da vida cotidiana” (VEDDA, Miguel, 2006, p.104), reconhecendo assim a arte como uma mimese antropomorfizadora, dimensão essencial para compreensão do modo peculiar de realização da arte cinematográfica. Cabe salientar que Lukács não se propõe a elaborar uma “estética marxista do cinema”, mas apresentar as particularidades desta forma artística e seu modo específico de relacionar-se com o mundo. O cinema se configura no pensamento lukacsiano de maturidade como “um caso específico de duplo reflexo” (LUKÁCS, 2013, p.83), que se diferencia das outras formas de manifestação da mimese artística, tendo em vista que seu ponto de partida é constituído por um primeiro reflexo desantropomorfizador – representado pela fotografia. Essa dimensão puramente tecnológica se orienta pela captura de uma realidade imediata, sua representação visa somente retratar um momento singular do objeto, sem considerar as relações que o permeiam. Dessa forma, somente por meio da técnica cinematográfica é possível a superação do caráter desantropomorfizador da fotografia. Como afirma Lukács: No filme a forma primária, não estética, puramente tecnológica nada mais é do que um reflexo visual da realidade, pela rápida movimentação, pela sequência continuamente vivenciável, ela transforma a imagem fotográfica em uma antropomorfização, aproxima-a das formas aparenciais do cotidiano. A duplicação da mimese, sua passagem para o estético, decorre desse fundamento; no entanto não deriva de maneira simples e evidente das possibilidades técnicas, mas deve ser conscientemente criada, em conformidade com sua missão social frequentemente implícita. (LUKÁCS, 2013, p.86) Ao afirmar a necessidade do emprego das técnicas cinematográficas para o alcance da realização estética do cinema, Lukács demarca a divergência com o que denominou “tendências anticapitalistas românticas”, (6) que identificavam na reprodutibilidade técnica a supressão da aura existente nas obras de arte. Para o autor, a produção cinematográfica traz consigo a necessidade do avanço técnico que permita sua abordagem estética, estando subordinada ao modo de produção sob a qual se desenvolve – o capitalismo altamente desenvolvido. Como consequência dessa condição, o cinema é, ainda, a forma de arte na qual “a influência do desenvolvimento técnico sobre o artístico necessariamente se manifesta de modo mais veemente e brutal, crítico do que em qualquer outra arte” (LUKÁCS, 2013, p.85), embora como aponta Cotrim “não são as forças produtivas desenvolvidas, a tecnologia, que hostilizam a arte e os homens, mas o caráter social que assumem no interior de relações sociais determinadas.” (COTRIM, Lívia, 2013, p.70) Para Lukács, o domínio técnico por si só não eleva o cinema a operar a transformação qualitativa alcançada pela segunda mimese, mas sim o agir consciente sobre essa técnica. O resultado desse domínio técnico consciente é, portanto, um novo universo que se difere da sua representação imediata da realidade e atinge a “nova forma de um conteúdo concreto determinado” (LUKÁCS, 2013, p 87). Essa expressividade surge a partir da decupagem fílmica (tipo de fotografia, do corte, montagem) mediante o trabalho orientado pelo todo social presente na produção (ator, operador, diretor etc.), onde a estilização é realizada mediante o equipamento. O cinema para Lukács, enquanto forma artística dotada de peculiaridades estéticas que se manifestam desde a sua gênese até o desenvolvimento de suas possibilidades técnicas de realização, carrega consigo a potência de exprimir com grandiosidade elementos da vida cotidiana capazes de apontar para as grandes questões da humanidade, revelando-se como “uma expressão arrebatadora e compreensível para as grandes massas de sentimentos populares profundos e universais” (LUKÁCS, 2013, p.96). Embora seja capaz de reproduzir as condições existentes, o filme, como a arte em si, não se limita à mera reprodução dessas condições, mas as revela de forma crítica, permitindo a passagem do homem inteiro do cotidiano para o homem inteiramente, contendo em si um salto sobre a simples vida cotidiana. Entretanto, a capacidade da ampla reprodução técnica do filme “está vinculada a sua base financeira no grande capital” e “graças a essa dependência do grande capital, o filme se adapta às mais vulgares e mais amplamente disseminadas necessidades das massas” (LUKÁCS,2013, p. 96). A labilidade do meio homogêneo do filme, ou seja, sua capacidade de refiguração do mundo por meio de uma “variedade inesgotável de sua aparência fenomênica” (LUKÁCS, 2013, p. 96) possibilita a grande indústria cinematográfica operar de forma manipulatória, satisfazendo as “necessidades mais particularistas, os ideais dos instintos medianos [...] ao qual podem ser inerentes tanto o mais kitsch happy-end como o sadismo mais sanguinário” (LUKÁCS, 2013, p. 96). Encontramos aqui o centro das dificuldades da realização estética da arte cinematográfica: a barreira entre o apassivamento e a justificativa de uma subjetividade cotidiana própria da forma social capitalista; e as possibilidades de ruptura com essa consciência através da elevação dos dilemas cotidianos para os grandes dilemas da humanidade. Para Lukács: “A maioria dos bons filmes evita, de fato, o largo caminho da trivialidade, trilhado pela massa dos filmes. Eles se elevam, no conteúdo e na forma, acima do nível da cotidianidade média, mas frequentemente pagam essa elevação com um distanciamento dos mais profundos sentimentos das massas, ou só alcançam perifericamente, com frequência apenas por desvios excêntricos” (LUKÁCS, 2013, p. 96-97). Para o autor as tentativas “que se esforçam por descobrir algo humanamente novo nessa selva das mais variadas possibilidades” demonstram que a cinema apresenta a capacidade de “[...] descobrir, nos fatos mais simples e cotidianos da vida, pelos quais passamos despercebidos antes sem prestar atenção, uma poesia profunda, uma autêntica humanidade, uma rica escala de sentimentos, da tristeza mais profunda ao riso mais libertador (Ladrões de bicicleta, De Sica). A elasticidade do meio homogêneo fílmico pode, de um lado, evidenciar uma cotidianidade plena de poesia, sem precisar reduzir ao naturalismo a riqueza de detalhes da vida cotidiana, e, de outro lado, consegue ir além da realidade cotidiana imediatamente dada.” (LUKÁCS, 2013, p. 98) O salto do homem inteiro imerso no cotidiano para a sua relação com o gênero humano – homem inteiramente – é atribuída por Lukács à função social da arte. A grande arte tem como propósito a desfetichização da vida imediata, de tornar aparente as reais contradições e os interesses humanos diante das relações reificadas construídas pela forma social capitalista. A arte pode operar como uma tomada de consciência da degradação social, e apontar para uma tomada de posição do sujeito diante a situação colocada. No cinema, por se tratar de uma arte de massas - ou uma arte popular -, poderia alcançar um êxito maior na sua função desfetichizadora, rompendo o invólucro místico que constituem as atuais relações sociais. Entretanto, devido a sua proximidade ao cotidiano, se faz mais recorrente a criação de filmes que atuam como produtos ideológicos, atuando enquanto produtos "artísticos" legitimadores da subjetividade estranhada que emerge da cotidianidade do capital. A arte cinematográfica se apresenta ora como uma potencialidade desfetichizadora, ora como um sintoma das relações sociais capitalistas. Das possibilidades da arte cinematográfica e seu caráter socialmente desmistificador trataremos nos próximos textos da Revista Barravento. NOTAS 1. ‘Reflexões' foi originalmente publicado na Hungria, em um jornal de língua alemã, em 1911 e, em seguida, republicado, em uma versão ligeiramente revisada, em 10 de setembro de 1913, no Jornal "Frankfurter Zeitung". (AKITEN, I., 2012, pp.29-30) 2. Planejada como uma obra em três partes, apenas a primeira foi concluída. Com o título Die Eigenartdes Äesthetiches, essa parte I da Estética foi publicada em 1963, pela editora Luchterhand, em Berlim. Em 1966 foi publicada em Barcelona, com o título Estética I: La peculiaridad de lo estético, em quatro volumes. (COTRIM, Lívia, 2013, p. 52) 3. Cabe ressaltar que Lukács, em seu pensamento de maturidade, ainda recorre a Kant para formular a teoria da autonomia da esfera estética, portanto está em “conformidade em relação com a teoria kantiana acerca do desinteresse estético (apesar de não deixar de guardar, diante dela, algumas reservas)” (VEDDA, Miguel, 2014, p.274) 4. O segmento Filme se encontra no Item V do capítulo 14 - Estética: Peculiaridades do Estético - Vol. 4 - Questões liminares da mimese. Aqui utilizaremos a tradução de Lívia Cotrim publicada em separado da totalidade da obra, pela editora EDUFRR, 2013. 5. Cabe ressaltar que “O materialismo dialético considera, ao contrário, a unidade material do mundo como um fato indiscutível. Todo reflexo é, portanto, dessa realidade única e unitária. Mas não decorre disso - exceto para o materialismo mecanicista - que toda reconfiguração dessa realidade tem que ser uma simples fotocópia dele.” (LUKÁCS, 1966, p 36) 6. Lukács se opõe às teses apresentadas por Benjamin em seu artigo “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”. Segundo o autor o artigo “traz, de fato, toda uma série de observações sagazes, as quais, no entanto, graças a sua orientação anticapitalista romântica, frequentemente obscurece o problema [...] essa posição errônea tem consequências também no que diz respeito ao filme”, sendo assim “Benjamin em sua reiterada e legítima polêmica contra as tendências do capitalismo hostis a arte, chega desfiguração do problema”. (LUKÁCS, 2013, p.84) REFERÊNCIAS AITKEN, Ian. Lukacsian Film Theory And Cinema. Manchester: Manchester University Press, 2012. COTRIM, Lívia. Apresentação de Lukács e o cinema. In: Rodrigo Chagas. (Org.). Cinema,educação e arte. 1ed. Boa Vista: EDUFRR, 2013, v., p. 77-112. LUKÁCS, György. Reflexões para uma estética do cinema. In: Rodrigo Chagas. (Org.). Cinema, educação e arte. 1ed. Boa Vista: EDUFRR, 2013, v, p. 78-83. Trad. Lívia Cotrim e Felipe Marineli. ______. Filme. In: Rodrigo Chagas. (Org.). Cinema, educação e arte. 1ed. Boa Vista:EDUFRR, 2013, v, p. 83-110. Trad. Lívia Cotrim e Felipe Marineli. ______. Pensamento vivido: autobiografia em diálogo. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem; Viçosa, MG: Editora da UFV, 1999. _____. Para uma ontologia do ser social I. Trad. Carlos Nelson Coutinho; Mario Duayer; Nélio Schneider. Revisão da tradução de: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012. ____. Estética 1: La peculiaridad de lo estético. Barcelona: Ediciones Grijalbo, 1966. 1 v. ____. Estética 1: La peculiaridad de lo estético. Barcelona: Ediciones Grijalbo, 1966. 4 v. MARX, Karl. Manuscritos Econômicos Filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, tradução e notas, Jesus Ranieri TERTULIAN, Nicolas. Georg Lukács: etapas de seu pensamento estético. São Paulo: Editora UNESP, 2008. VEDDA, M. La sugestión de lo concreto: estúdios sobre teoria literária marxista. 1 ed. Buenos Aires: Gorla, 2006. ______. Posição teleológica e posição estética: sobre as inter-relações entre trabalho e estética em Lukács. In: VAISMAN, Ester e VEDDA, Miguel (Org). Estética e Ontologia. São Paulo: Ala-meda, 2014. v, p. 273-290.
- Breve Coletânea de Fatos: EUA, Neonazismo e Bolsonarismo
por Rafael Jácome de Sousa Matos Imagem: Leo Orestes/ Estadão Conteúdo Uma das características comuns de grandes movimentos em ascensão, como foi – e é – o caso do nacionalismo adotado pela direita ao redor do mundo, logo após a derrocada da onda de governos reformistas, é que em meio a aglutinação massiva que esses movimentos constroem para ganhar força temos a presença de movimentos das mais variadas orientações. No combate aos movimentos de esquerda que esses movimentos têm por objetivo confrontar, grupos neonazistas têm sido recorrentemente incorporados nas conjunturas nacionais em que as tensões vêm se desenvolvendo. É preciso atentar que o crescimento do neonazismo nesse meio (apesar de não ter força para hegemonizar a disputa para além de casos esporádicos), mesmo diante da impossibilidade de reprodução do que foi o nazismo décadas atrás, possui uma rede de atuação que busca explorar as contradições conjunturais e se inserir nas tensões de maneira articulada. Sem cair em alarmismos, tal fenômeno deve ser objeto de pesquisa e atuação das forças de esquerda a fim de classificar e se munir da capacidade de reconhecimento dos obstáculos cotidianos para seu trabalho junto aos trabalhadores (ainda muito aquém do que necessitamos). Também para despir toda fraseologia sobre “democracia” (burguesa) da atuação real dos liberais e reformistas que disseminam essa demagogia. Ademais, gostaria de frisar que esse texto não pretende traçar grandes reflexões acerca do nazifascismo, as imbricações que o determinam no cenário histórico e na conjuntura atual. Este texto se trata tão somente de um primeiro movimento de organizar algumas informações (já bem conhecidas para o leitor minimamente atento), um exercício primordial para a tão necessária análise de conjuntura; análise de fatos aparentemente caóticos e bem conhecidos da grande maioria, traçando de maneira bem breve seu fio condutor. A profundidade do fio condutor que ligam esses fatos, fica a critério de uma compreensão geral dos movimentos de esquerda que tem por tarefa sempre urgente se debruçar sobre o tema. Portanto, vejamos uma breve coletânea de fatos a partir do Batalhão Azov que chegou a compor instâncias estatais na conjuntura ucraniana, bem como indícios da complacência estadunidense com tais grupos. Votos na ONU; “liberdade de expressão”. Em 2021 a ONU aprovou uma resolução para combater o que ela chamou de aumento da “glorificação nazista em alguns países”, destacando como ponto de partida a conjuntura do golpe que aconteceu na Ucrânia em 2014. Lembremos que o país que faz fronteira com a Rússia e passou por uma intensa onda de protestos e conflitos civis, é o mesmo país que foi palco do episódio macabro nomeado de “O Massacre de Odessa”. (1) Nesse massacre, sindicalistas e militantes de esquerda ucranianos, muitos ligados culturalmente à herança cultural da URSS, foram perseguidos, linchados e queimados vivos dentro do sindicato no qual buscaram se esconder da horda de supremacistas brancos que marchavam pelas ruas destruindo os símbolos que remetiam ao período soviético. Aqueles que, numa última tentativa para saírem da situação desesperadora em que estavam, tentaram pular as janelas para fugir das chamas no interior do prédio foram rapidamente alvejados pelos supremacistas, que esperavam medonhamente extasiados ao lado de fora. O massacre teve bastante repercussão, ainda que não tanto quanto deveria. O curioso é que na votação da medida proposta pela ONU para combater ideologicamente tais hordas fascistas, tanto Ucrânia (solo onde ocorreu o episódio), quanto EUA (país proeminente na OTAN), se destacaram por se contraporem sozinhos a tal proposta. Na totalidade, foram 130 votos a favor, 2 contra e 49 abstenções, sendo essas abstenções de países com vínculos econômicos com os EUA. (2) Os EUA, se valendo da desgastada justificativa da “liberdade de expressão” (argumento adorado pelos supremacistas brancos em todo mundo), se justificou por meio de um documento oficial. Vejamos: Hoje, no entanto, os Estados Unidos devem expressar oposição a esta resolução, um documento mais notável por suas tentativas veladas de legitimar narrativas de desinformação russas de longa data denegrindo nações vizinhas sob o pretexto cínico de impedir a glorificação nazista. A Suprema Corte dos Estados Unidos tem afirmado consistentemente o direito constitucional à liberdade de expressão e os direitos de reunião e associação pacíficas, inclusive por nazistas declarados, cujo ódio e xenofobia são amplamente desprezados pelo povo americano. Ao mesmo tempo, defendemos firmemente os direitos constitucionais daqueles que exercem seus direitos de combater a intolerância e expressam forte oposição ao odioso credo nazista e outros que defendem ódios semelhantes. (3) Como defendido pelos “monarkicos” liberais brasileiros, (4) a liberdade de expressão nos EUA permite a manifestação irrestrita de opinião até mesmo de supremacistas brancos, grupos racistas e outras orientações ideológicas de mesmo nicho. Podemos notar pelo seu posicionamento internacional e corresponde, juridicamente, à primeira emenda da Constituição dos Estados Unidos. Essa concepção se torna um tanto quanto preocupante ao analisarmos o cenário mundial e as movimentações dos grupos supremacistas protegidos por essa noção de “liberdade” que marejam os olhos dos liberais e ancaps pelo mundo. Afinal, nenhum discurso sobre liberdade é descolado de movimentações no campo das disputas reais e possuem efetivações práticas nesse solo, destacadamente, nas relações geopolíticas. Aprofundando sobre a “liberdade” americana, em 2015 o congresso americano retirou as restrições orçamentárias referentes ao financiamento de grupos neonazistas, preocupando inclusive alguns setores da política norte-americana. Soma-se a isso que alguns integrantes do B-Azov fazem elogios às contribuições norte-americanas para a especialização do agrupamento neonazista. Em entrevista a Will Cathcart e Joseph Epstein, um membro recorda “a experiência de seu batalhão com treinadores e voluntários americanos com muito carinho, mencionando até mesmo engenheiros e médicos voluntários americanos que ainda estão atualmente os auxiliando”. (5) O batalhão de Azov; a livre expressão dos neonazi ucranianos. O “Batalhão de Azov” se trata de uma milícia supremacista branca com orientações nazistas. Tal milícia teve participação direta no golpe que ocorreu na Ucrânia em 2014, bem como no massacre (Odessa) apontado no tópico anterior. (6) Além disso, estão a frente de diversos casos de violência extrema relatados em solo Ucraniano, como também de uma atuação bárbara no que tange a manutenção dos constantes ataques que ocorreram contra a população de Lugansk e Donetsk. O Batalhão de Azov tem suas origens na aglutinação de forças anti-Rússia que aconteceu em 2014, sendo posteriormente introduzido às forças armadas ucranianas que se organizaram para combater os separatistas pró-Rússia no leste do país e para dar respaldo militar ao novo governo que possui relações estreitas com OTAN. O B-Azov é composto basicamente pelos membros da “Assembleia Nacional-Social” e pelos “Patriotas da Ucrânia", dois grupos de supremacistas brancos ucranianos. (7) Hoje o B-Azov conta com mais de mil soldados e já teve até mesmo condecoração oficial de honra, dada pelo Estado Ucraniano, para um dos primeiros coronéis do batalhão, o nacionalista ucraniano Bietsky que, em 2015, foi convidado pelo parlamentar Jaromir Stetina a fazer discurso no parlamento, sem nenhum tipo de constrangimento legal. (8) Posteriormente Biletsky chegou a exercer mandato como deputado, mostrando claramente – no mínimo – a legitimidade que tal batalhão tem para o Estado Ucraniano. Soma-se a isso que o espaço político-militar dos supremacistas dado pelo governo ucraniano é tanto que o B-Azov foi incorporado à guarda nacional ucraniana (9) e sua atuação indica ser mais articulada do que parece, se estendendo para outras nações. Alguns episódios internacionais dão conta de que B-Azov fez recrutamentos em solo estrangeiro, gerando indisposição entre Ucrânia e Croácia. Cerca de 20 croatas, segundo algumas informações, foram integrados ao B-Azov. A ministra croata Vesna Pusić (Relações Internacionais) confirmou que existiam voluntários na Ucrânia, levando o governo russo a chamar a Croácia para dar explicações e retirar seus cidadãos do conflito. Dada a pressão russa, finalmente a Croácia se opôs a qualquer participação de cidadãos croatas no conflito e em resposta, o governo ucraniano alegou que os croatas recrutados estavam do lado "legítimo" da luta. (10) Tais episódios, porém, não se restringem à Europa. Azov em Hong-Kong; a livre expansão neonazi. A China é a principal oposição aos EUA dentro das relações do capitalismo, no cenário econômico global. Interessante que nos processos políticos de Hong-Kong (2019-2020), ainda com Trump na presidência, os EUA manifestaram irrestrito apoio aos manifestantes pró “liberdade de expressão”, “democracia” e afins, que se colocavam contra o governo chines. Biden deu sequência ao apoio, como era de se esperar (11), mas rostos europeus no meio desses românticos jovens idealistas destoavam dos rostos em sua maioria asiática. Para a surpresa (será?) dos jovens liberais anti-China dos protestos de Hong-Kong, alguns rapazes estrangeiros se solidarizaram com a causa e buscaram se inserir nas movimentações. Muitas lideranças estranharam aqueles rapazes europeus, tatuados com símbolos nórdicos e vestidos com o uniforme hooligan do “Honor”, grupo hooligan de extrema direita (12). Fato é que se tratavam de nomes que compuseram as fileiras do B-Azov em diversos momentos. Tal fato chegou a ser repudiado por uma página oficial de uma das lideranças dos movimentos (13), mas é interessante notar que tal aproximação não parece ter se dado de maneira aleatória. Logo o fato ganhou repercussão perante alguns canais e olhos mais atentos de indivíduos que acompanhavam e/ou estavam inseridos na conjuntura dos protestos, (14) se descobrindo que os ucranianos estavam em solo estrangeiro num processo de giro político possivelmente articulado por uma organização ucraniana. A página da organização, intitulada de “Free Hong Kong Center”, sediada na Ucrânia, logo saiu em defesa dos jovens, alegando que eles se desvincularam do B-Azov e de que queriam participar dos protestos para “ver de perto a verdade do que acontecia”, chamando-os de “simples ativistas jovens” (15). Numa pesquisa rápida nota-se que a página faz sucessivos posts, sendo o último datado de 8 de junho de 2020, traçando nexos entre a conjuntura de Hong Kong e os processos anti-Rússia que ocorreram na Ucrânia. Se os manifestantes e suas lideranças, inspirados em sonhos americanos de liberdade, sabiam de tal inserção, não fica evidente. Mas fato é que os membros do B-Azov presentes nos protestos, que manifestavam afinidade com a política norte americana como os manifestantes de Hong Kong, viam com bons olhos o movimento e estavam dispostos a “aprender” com os manifestantes que buscavam enfraquecer o rival do governo estadunidense; a China.(16) Nazistas verde e amarelo; os neonazi botam ovos no Brasil. Nos últimos anos, de acordo com Adriana Dias, pesquisadora da UNICAMP, em fala para uma reportagem para a Revista Época em outubro de 2021, indicou que segundo seus dados advindos de um acompanhamento permanente, tivemos desde de 2019 no Brasil um crescimento de 56% de células nazistas. Ainda na reportagem o fundador da SaferNet, associação privada que aglutina especialistas de diversas áreas, sob o pretexto de defender os direitos humanos de pessoas envolvidas em crimes virtuais e outras mazelas que encontramos no meio virtual, houve um crescimento significativo de denúncias referentes a conteúdos ligados ao nazifascismo. Se em 2019 foram recebidas 1.071 denúncias, esse número mais que quadruplicou em 2021, chegando ao total de 9.004 registros.(17) Não estranhamente, tal crescimento é notificado num período pós eleição de Bolsonaro, candidato que ascendeu ao poder como resultado de um longo processo que teve seus marcos eleitorais em 2016 (golpe em Dilma) e em 2018 (eleição de Bolsonaro). Fato é que hoje existem vários indícios de que os EUA tinham fortes articulações com as esferas judiciais brasileiras (18) que, ao impulsionar as articulações palacianas do golpe, desencadearam o crescimento de grupos nacionalistas de extrema direita. Ainda em 2016 a Polícia Federal desarticulou um grupo de estrangeiros que visava recrutar jovens para o conflito na região leste da Ucrânia. O curioso desta prisão é que ela indicou não somente uma tentativa isolada, mas sim indícios de uma atuação muito bem articulada e que visava o crescimento de uma rede de núcleos no estado do Rio Grande do Sul. Segundo a imprensa geral, tal grupo já existia há mais de 10 anos, mas naquela época começou um processo de articulação com o B-Azov para fortalecer as forças paramilitares que atuavam na Ucrânia (19). Esses casos não se restringem somente ao Rio Grande do Sul e poderíamos citar vários como este, incluindo os mais conhecidos em que lideranças da direita bolsonarista gritavam aos quatros ventos que iam “Ucranizar o Brasil”. Mas vamos aos números. A mesma pesquisadora Adriana Dias, mas agora em entrevista para o Fantástico, aponta que as células nazistas tiveram um crescimento de 270% de janeiro de 2019 a janeiro a maio de 2021. Tais células se concentram em maior parte na região Sul do país, mas chegam a estar presentes nas cinco regiões do Brasil. Além disso, um levantamento em 2021 apurou que o número de denúncias aumentaram consideravelmente, saltando de no máximo 20 até 2018, para 69 investigações do crime de apologia em 2019. Em 2020 a média saltou para um inquérito a cada 3 dias, sendo que 110 casos já vinham sendo investigados. (20) Notadamente o crescimento chama mais a atenção que a quantidade, mas, ao contrário dos que desdenham de um movimento pela quantidade de adeptos, podemos interpretar que estes não mais se constituem simplesmente como uma força que figura nos quadros de um antiquário. É preciso pensar que, mais do que se somarem às vozes do conservadorismo que cresce com o nacionalismo, tais posições estão presentes no cotidiano da classe trabalhadora e, de alguma maneira, ainda imprecisa, tem relativa atuação na disputa ideológica e nos entraves para um fortalecimento dos comunistas no Brasil e no mundo. Notas: 1. "Dois anos do massacre de Odessa: Ucrânia submersa pelas trevas": https://vermelho.org.br/2016/04/29/dois-anos-do-massacre-de-odessa-ucrania-submersa-pelas-trevas/ 2. “Somente EUA e Ucrânia votaram contra resolução da ONU de combate ao nazismo”: https://revistaforum.com.br/global/2022/2/25/somente-eua-ucrnia-votaram-contra-resoluo-da-onu-de-combate-ao-nazismo-110706.html 3. “Explicação da votação sobre uma resolução sobre a glorificação do nazismo”(em inglês): https://usun.usmission.gov/explanation-of-vote-on-a-resolution-on-the-glorification-of-nazism/ 4. "Para que serve a liberdade de expressão - e quais os seus limites":https://www.mises.org.br/article/3214/para-que-serve-a-liberdade-de-expressao--e-quais-os-seus-limites 5. “Congresso removeu a proibição de financiar neonazistas de sua conta de gastos de fim de ano (em inglês)”:https://www.thenation.com/article/archive/congress-has-removed-a-ban-on-funding-neo-nazis-from-its-year-end-spending-bill/ 6. “Batalhão de Azov, o grupo ucraniano de extrema direita na mira de Putin”: https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/Politica/noticia/2022/02/batalhao-de-azov-o-grupo-ucraniano-de-extrema-direita-na-mira-de-putin.html 7. Patriotas da Ucrânia: https://stringfixer.com/pt/Patriot_of_Ukraine //Assembleia Nacional Social:https://hmn.wiki/pt/Social-National_Assembly 8. "O eurodeputado tcheco Jaromir Stetina, incluído na "lista negra" na Rússia, convidou o comandante do batalhão voluntário ucraniano Azov, Andrei Biletsky, a fazer um discurso no Parlamento Europeu.”:https://br.sputniknews.com/20150729/1702721.html 9. "Os neonazistas e a extrema direita estão em marcha na Ucrânia"(em inglês):https://www.thenation.com/article/archive/neo-nazis-far-right-ukraine/ 10. "Pusic confirma: 'Há croatas lutando no exército ucraniano'" (em croata):https://www.rtl.hr/vijesti-hr/novosti/1509453/pusic-potvrdila-ima-hrvata-koji-se-bore-u-ukrajinskoj-vojsci/ 11. EUA solicita que Pequim pare de 'destruir' democracia de Hong Kong:https://noticias.r7.com/internacional/eua-solicita-que-pequim-pare-de-destruir-democracia-de-hong-kong-31032021 12. Hooligans de extrema direita da Ucrânia nos protestos de Hong Kong"(em inglês):https://medium.com/dfrlab/far-right-hooligans-from-ukraine-at-the-hong-kong-protests-baab52023580 13. "Hong Kong Hermit" (em inglês): https://twitter.com/HongKongHermit/status/1201488197638709248 14. "Hong Kong Hermit" (em inglês): https://twitter.com/HongKongHermit/status/1201491207001501703?s=20&t=26pMMp2Bo2l5UPNIewo9dA 15. Free Hong Kong Center (Facebook post): https://www.facebook.com/ufhkc/photos/a.468815556801405/1009071022775853/?type=3&permPage=1 16. "O que fascistas ucranianos estão fazendo nos protestos de Hong Kong?":https://www.vice.com/pt/article/zmjjey/o-que-fascistas-ucranianos-estao-fazendo-nos-protestos-de-hong-kong 17. Reportagem completa: https://outline.com/U6stGN 18. "’República de Curitiba’ pode responder por crime de traição à pátria":https://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/12/republica-curitiba-crime-traicao-patria.html 19. "Polícia do RS desarticula grupo neonazista que atuaria em guerra civil no leste europeu":https://www.youtube.com/watch?v=J15Ssa-YI8w 20. "Há uma onda neonazista no Brasil? Entenda o que dizem os números e especialistas no tema": https://www.brasildefato.com.br/2022/01/27/ha-uma-onda-neonazista-no-brasil-entenda-o-que-dizem-os-numeros-e-especialistas-no-tema












